EU MORTO

Eu morri.

Sei que você deve estar achando isso uma loucura, como alguém que morreu pode estar escrevendo? Também sei que é fora da realidade, mas quem é que gosta de tanta realidade assim? A realidade estressa e a fantasia relaxa. Já a ficção descansa.

Bem, como eu ia dizendo, ou melhor, escrevendo. Morri, mas não precisa ficar com pena de mim, morri dormindo. O sonho de todos nós, não é mesmo? Já que temos que morrer um dia, que seja dormindo, tranqüilos em nossa cama ou sofá, para os excluídos. Pois é, eu tive essa sorte, acho que conquistada pelos anos vividos comendo na taba (impostos mil, salário minguado e abstinência de sexo). Vim a óbito na faixa dos oitenta, para quem pensava viver até cento e vinte foi um choque.

É provável que estivesse escrito que eu deveria morrer assim subitamente, pois nem deu tempo de me preparar. Tanto é que deixei cerveja no congelador da geladeira, tênis sujo debaixo da cama, cueca dependurada na porta do banheiro, bengala caída no meio do quarto, dentadura debaixo do travesseiro, vaso por dar descarga, e, umas poucas dívidas (qualquer prêmio acumulado da mega-sena pagaria).

Nem mesmo tive o prazer de despedir do meu cachorro, mas ele entendeu que não foi sacanagem minha, simplesmente aconteceu. O mandante da morte, lá de cima, sabe o que faz, e, sempre o que é melhor para nós simples mortais.

Só não sabia que eu era tão querido assim. Pena que tive que morrer para ver, mas nem tudo é perfeito na vida, não é mesmo? Existem os aleijados.

Meu velório estava no auge, diria até que no máximo, em termos funeráricos é claro; muita gente chorando e dizendo que eu era muito novo (que falsidade!) para morrer, que fora boa pessoa, humilde, prestativo com preservativo e coisa e tal (não sorri dentro do caixão para não assustar os presentes). Cara, tinha gente do lado do vento! Para começo de conversa toda a minha família e meus amigos estavam lá, alguns vizinhos, conhecidos e até alguns penetras. Muitas flores e velas, comes e bebes, forró a base de sanfona e estripitizes de gueixas orientais. Enfim um velório digno de alguém que era especial e que iria deixar saudades.

Não fique aí pensando que eu era/sou mórbido e insensível, já que estou morto, me resta ficar feliz em saber que era querido, logicamente que com ressalvas.

Eis que aconteceu algo de interessante!

Minhas ex-namoradas (cachos) foram chegando. Incrível! Uma após a outra. Logicamente não se conheciam, nem sabiam da existência uma das outras, muito menos haviam se visto.

A primeira a chegar foi ALENIKOVA, minha primeira paixão. Ela sempre foi rápida e objetiva (vai ser bom, não foi?), tinha que chegar do mesmo modo. Lembro que quando nos conhecemos foi ela que me pediu em namoro.

Chegou, se encostou ao caixão e chorou sobre meu corpo. E se lamuriou em sussurros audíveis.

- Cara você morreu ainda bem bonitinho, tem poucas rugas, e não ficou careca de todo. Se me visse agora, trinta quilos mais gorda, de peruca, ia me achar horrível. Quando você me chamava de gordinha sei que era de brincadeirinha e até riamos a valer. O dia mais feliz com você foi quando dançamos sem música, iluminados pelo luar na beira do córrego, lá no interior. Naquele dia nos entregamos um para outro, foi incrível... Queria ter te dito que me arrependi de ter trocado você por aquele bolha, só que ele tinha e tem alguns milhões de reais a mais. Vou sentir sua falta.

BARTIRANIKOVA estava chegando, ainda bem que ALENIKOVA já tinha se afastado. Veio daquele jeitinho de sempre, de mansinho toda delicada e com seu lencinho inconfundível. Derreteu-se em lágrimas e estertores. Como sempre, trouxe uma rosa branca que colocou do lado do meu esquife e começou a falar alto e grosso, mas manso, comigo.

- Que pena que você morreu, você era tão bacana, falava pouco, ficava quietinho na sua, independente da algazarra dos outros; sempre vestido com sua camisa vermelha, gravata de bolinha e sapato bico fino, mas sabia me fazer feliz. Foi uma pena que tive que viajar para a capital e te deixei por outros. Veja, trago sempre comigo aquele almanaque com a propaganda do apartamento financiado pelo SFH, o qual você dizia que a gente ia morar. Vou sentir sua falta.

Sentada a um canto do recinto, ALENIKOVA estava atônita, ela ouviu tudo que BARTIRANIKOVA falou e ficou pensando:

“O quê? Camisa vermelha, gravata? Como assim almanaque de propagandas? Apartamento? Ele odiava essas coisas, não tinha paciência e como quietinho? O cara não parava, acho que essa velhota está maluca, deve ter confundido o velório”.

Nesse momento chegou CARMINIKOVA, toda de preto, não que estivesse de luto, ela fazia parte dos “FOMOSKAIA”, grupo de rock pauleira da noite. A gata era uns sessenta anos mais nova do que eu, toda maluquinha e revoltada, mas um docinho de coco por dentro; e, nem chorou, só falou, alto e de bom tom para todo mundo ouvir:

- Tu é foda mesmo, tinha que morrer numa noite de sábado para estragar a minha balada. Até que você ia gostar da farra que eu estava, era tipo aquela do cabide que rolou lá em casa, lembra? Hei cara! A galera está toda aí, acenderam até um baseado em tua homenagem lá fora, tu vai fazer falta, seu babaca.

A essa altura ALENIKOVA E BARTIRANIKOVA estavam horrorizadas, e não podiam acreditar no que seus olhos estavam vendo nem o que os ouvidos estavam escutando. E pensavam.

“Como que ele gostava de drogas? Era totalmente contra. Dava sermões em todo mundo por causa destas festas com bacanais, era moralista e todo ciumento, a gente nem podia usar decote que ele ficava todo macho”.

Minha alma estava começando a ver a coisa pelo buraco da agulha.

DALILIKOVA chegou toda de branco, parecia vestida de noiva, quando na realidade tinha acabado de sair do plantão, era médica no HDT; estava com aqueles óculos escuros tipo raibam, aparelho de correção em dentadura postiça, cinta de sustentação de coluna e botas country, toda sexy e só para mim. Sempre a achei a pessoa mais inteligente que conheci.

No que chegou me cochichou no pé do ouvido, mas para quem quisesse que escutasse.

- Tudo em você sempre foi diferente, e eu sempre soube que até o seu fim seria algo insólito, como foi incomum o jeito que a gente se conheceu, na mata do Mutirama admirando os pivetes cheiradores de cola. Guardo aquelas fotos de nós dois nus chupando picolé e comendo quebra queixo, e meu marido nem sabe. Só hoje atinei que aprendi a beber pinga, ler horóscopo, ver novela e falar mal da vida alheia, com você. Sentirei sua ausência.

Que fossem todos para o inferno, mas não pude deixar de rir quando vi a cara das outras três, a pensarem.

“Como gostava do Mutirama, de pinga, horóscopo, novela, falar mal dos outros? Ele odiava tudo isto!!!!!!!!!”

E por fim chegou EVANIKOVA, para coroar aquela zorra. Primeiro por que não estava sozinha, vinha trazendo puxada pelas orelhas nossa filha FIONIKOVA. Segundo por que foi logo falando comigo como se estivéssemos só nós dois ali no local.

- É... você morreu, que pena que a FIONIKOVA não pôde conhecer você direito, nem vamos mais passearmos de mãos dados no shopping aos sábados à tarde (dia de futebol na televisão). Uma pena! Agente teve tão pouco tempo junto, vou contar para sua filha que você foi uma pessoa legal comigo, sempre me apoiou nas horas amargas e aproveitou as doces, nunca vou me esquecer dos buquês de flores que você me mandava. Vou sentir muito a sua falta.

As outras quatro olhavam uma para as outras... uma filha, como??!!! Que diacho de passear em shopping aos sábados? Flores? Como pode?

Nada combinava comigo, como era possível eu ter sido tão diferente com cada uma delas? Não parecia estarem chorando pela mesma pessoa. Acho que se eu já não estivesse morto elas iriam querer me matar uma de cada vez e cada uma do seu jeito.

Fui para o inferno...

É outra estória.

(abril/2002)

Aleixenko
Enviado por Aleixenko em 11/02/2011
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