Incidente Diplomático
(Adaptação de um manuscrito encontrado na residência do Emissário Português, missiva endereçada ao Ilustre Senhor Dom Miguel Fragoso de Astúrias e Bragança a respeito de um intrigante incidente diplomático havido nos idos de Mil Seiscentos e Dez do Ano do Nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo)
Senhor Dom Miguel Fragoso de Astúrias e Bragança,
Primeiramente devo esclarecer que me é de todo impossível identificar-me a vós com o meu nome natural de pia de batismo. Procedo dessa forma no intuito de evitar maiores traumas e delongas outras assaz duradouras. Assim, chamai-me simplesmente de Sr. M, Emissário Português numa das Terras da Coroa.
Como já é de vosso amplo conhecimento, procedo de distinta família composta - como diria o nosso bardo - por “armas e barões assinalados” provenientes diretamente dos antigos Condes de Bonifácios e Raphunzéis e Raphaéis e Barnabéis que no passado ocuparam altos postos no Reino, continuando ainda hoje a se fazer presentes nos Gabinetes e Secretarias de Portugal.
Convém então que eu não me identifique completamente, bem como a nenhum dos demais protagonistas com os quais me vi forçado a dividir parte deste acontecimento referente a um incidente diplomático ocorrido nos idos de Mil Seiscentos e Dez do Ano do Nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo.
Assim seja!
Dito isso, devo comentar que me encontro atualmente um bocadinho inchado, na verdade um tanto cheinho mesmo e para além do meu peso habitual. Carrego também um ticozinho de calva que aos poucos vai se me avantajando. Sou, finalmente, bastante conhecido e reconhecido tanto nos meios mais popularescos de nossa Coimbra quanto em quaisquer outras das mais cultas e finas sociedades lusitanas.
Venho, sim, de uma linhagem de gente assaz robusta. Por isto não é nem um pouco de se admirar que esteja eu de fato roliço feito um bacorinho. Considero-me, entretanto, bem feito de carnes e feições; e, mulheres em minha vida, tive-as a fartar e a arregalar-me. Vede bem que isto jamais representou qualquer tipo de dificuldade ou problema para mim.
Formei-me inicialmente em Direito pela Universidade de Coimbra e me dediquei em seguida ao estudo prodigioso da economia política, forma de pensamento muito em voga nos dias atuais e em todas essas terras. Vivemos atualmente a época da liberdade comercial na sua verdadeira força de expressão e toda essa ânsia de cultura disponibilizada redundou em mim em enormes vantagens, tanto pecuniárias quanto pessoais ou amorosas.
Decerto também que com todos esses predicados e antecedentes, não tive que fazer maiores esforços que não fossem aqueles de simplesmente seguir ao meu natural fado e destino inscritos em minha longa árvore genealógica. Assim acabei aceitando este cargo de Emissário Português numa das muitas terras que compõem as nossas fartas Terras portuguesas.
Igualmente certo – porém - fora que jamais passaria pela minha mente que um fato de uma grandeza tão tola quanto este que lhe vou relatar a seguir pudesse ou devesse provocar tamanho estardalhaço num meio intelectual que ao meu ver apresenta-se esplendidamente representado por embaixadores, diplomatas e outros homens da mais alta estirpe, cultura e distinção.
Não posso negar também que aquela sala de reuniões onde se aglomeravam os maiores representantes das principais nações européias contemporâneas não era o correto lugar onde devesse dar-se o que lhe vou revelar em seguida.
Entretanto, também não consigo conceber o motivo pelo qual um simples “pum” tenha causado tamanho incômodo e comoção entre os representantes das nações mais cultas e desenvolvidas do planeta, principalmente diante do fato de que nós nos achávamos ali reunidos para discutirmos idéias e questões da mais alta importância relativas ao novo e ao velho mundo.
Finalmente, devo dizer em minha defesa que almejei segurar o quanto pude todos aqueles borbulhos que se faziam dentro de mim e que nunca fui de fazer troça com palavras ou pensamentos alheios. Disto – bem sei! - ninguém jamais poderá me acusar.
Em verdade lutei e lutei e me esforcei e ainda voltei a lutar novamente e de modo tão aguerrido quanto jamais ousara fazê-lo em toda a minha vida pregressa. Ao final e, entretanto - mal sabeis vós o quanto sinto em isto vos contar - fui meramente derrotado e vencido pelas forças descomunais de meu intestino.
Assim, o que posso afirmar em minha honra e defesa é que de fato me mobilizei com toda a galhardia e esforços possíveis, mas que ao final - num dado momento difícil e crucial - tive a nítida sensação de que uma ímpia bolha de ar se movimentava exultante e se expandia com triunfo por dentro e para fora de mim.
Para dizer a verdade e não mais que toda a verdade, eu houvera banqueteado na noite anterior com um magnífico prato de lentilhas com alcachofras e devorado – ó dor nascida de tão terrível e inútil sensação de culpa que agora quase chega a me imobilizar a mão e a caneta! - não impunemente a duas fantásticas coxas de peru grelhado.
Então, quando me vi naquele momento em tais apuros, busquei me fazer o mais tranqüilo e natural que me foi possível. Fui liberando vagarosamente um pouco do inóspito ar que me habitava o ventre, percebendo mui satisfatoriamente que ninguém a minha volta parecia ter percebido qualquer coisa.
Bem: tudo poderia ter se findado por ai se o destino a meu favor estivesse. Mas as coisas nem sempre se dão de modo tão simples e da forma como gostaríamos que se dessem. Na verdade, mal houvera liberado parte daquele complexo gasoso excedente que se movimentava em todas as direções por dentro da minha ilustre pessoa, percebi imediatamente o remexer obtuso do nariz do Sr. Embaixador francês e escutei em seguida um muxoxo indignado advindo de um Ilustre Diplomata espanhol. Tudo isso chegara a me deixar deveras abalado e confrangido naquele momento. Em verdade ouvira algo semelhante a isso:
- No, su imposible…
Como nada mais se sucedeu nos instantes que se seguiram e como tudo parecia ter voltado a sua prudente normalidade, acreditei que as coisas se houvessem arranjado da melhor forma e da maneira mais justa possível. Parodiando Voltaire, diria talvez que estivéssemos vivendo o melhor da vida na plenitude dos mundos.
Daí a pouco, entretanto, senti um segundo ligeiro rebuliço no meu íntimo e – a partir deste momento - já não pude fazer mais nada, mal conseguia me conter ou conter o que se me explodia e se me avantajava por dentro. Foi aí então - para a minha mais completa tristeza e o meu franco desespero! – que aconteceu o previsível: deixei desabrochar por entre as minhas pernas e nádegas roliças um sonoro ruído que ecoou soturnamente por toda a sala, fazendo com que a maior parte daquelas agigantadas mentes européias se voltassem todas em minha direção.
O fato fora que aquele ruído me saíra tão repentino, esquisito e de maneira tão primeva que mesmo eu me vi assustado durante alguns segundos, sem sequer ter a correta compreensão do que de fato se sucedera.
Entretanto e tendo em vista seja eu um homem um tanto mais gordo do que o habitual das gentes – como mais atrás já lhe informei - e levando-se ainda em conta o excessivo peso de minhas nádegas esmagadas contra o assento aveludado daquela impiedosa cadeira, tudo isso colaborou para que as coisas se dessem exatamente da forma como se sucederam, provocando no recinto aquele inopinado eco totalmente inoportuno tanto para o lugar quanto para o momento.
E o pior – D. Miguel! - é que aquilo ocorreu exatamente no momento em que o prodigioso Diplomata de Espanha abria naquela manhã primaveril seu discurso inaugural referente a uns estudos encomendados por uma influente Universidade de Inglaterra acerca de um melhor aproveitamento econômico e comercial do solo nas terras recém descobertas.
Não acredito que o Douto Diplomata possa sequer por um mísero lapso de segundo ter imaginado ou suposto que este digníssimo representante do Império Português não estivera dando a atenção necessária e devida as suas sábias palavras.
Além disso, os Senhores Embaixadores e Diplomatas das outras nações principiaram comodamente a rir e a se remexer em seus assentos aveludados. Então, acredito que aquele Diplomata espanhol se acreditou finalmente como sendo o alvo da terrível risadaria de mofa que se fez presente no recinto.
Solicito, no entanto, que V. Senhoria se ponha por um segundo a pensar, ó Ilustre Dom Miguel: porque haveria o Emissário português de por se a fazer galhofas do Diplomata espanhol? Que razões eu poderia ou deveria ter para assim agir ?
Nenhuma! Decerto que absolutamente nenhuma!
Finalmente, faz bem que eu firme e me confirme perante Vossa Senhoria na idéia de que tentei de todas as formas me desculpar perante aquele Ilustre Representante de nossa nação irmã. Objetivei a isso de todas as maneiras e da melhor forma que foi possível, mas tudo aquilo pouco adiantou e resultou inútil.
É por este motivo que o presente Emissário envia-lhe esta tão longa missiva numa tentativa de se antecipar a quaisquer boatos, alusões e ou queixas que acaso venham a se formar contra este seu respeitoso súdito e mais sincero admirador.
Agradeço a compreensão que Vossa Senhoria possa ter por minha pessoa e família e ponho-me à inteira disposição para todos e quaisquer esclarecimentos que se fizerem necessários.
Beijo de cá as mãos de Vossa Senhoria e vos envio todo o meu muito saudar.
Aos Dezesseis dias do Quarto Mês do Ano de Mil Seiscentos e Dez do Nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo.
Sr. M.
(Emissário Português)