Ligações invisíveis

Introdução.

Uma vida tranqüila, um futuro previsível, sem sobressaltos, uma família feliz.

Esses atributos são garantia de felicidade?

O amanhã é uma incógnita...

Pode alguém vislumbrar acontecimentos futuros, com precisão milimétrica?

LIGAÇÕES INVISÍVEIS

Naquela manhã nebulosa, semi-adormecida na ante-sala da UTI, Isabele aguardava notícias de Mel. Guilherme, o cunhado, tocou levemente seu braço para despertá-la. Ela acordou radiante e rapidamente lhe explicou a situação:

-Ela vai melhorar, Gui.. Acabei de ter uma visão, como num sonho. Eu a vi nitidamente, sem os tubos, totalmente livre!. Ainda adormecida, com seus lindos cabelos castanhos encaracolados, esparramados sobre um travesseiro branco, mas com o rosto corado, semblante tranqüilo, sem nenhuma expressão de dor. Parecia um anjo. Linda como sempre! Eu sei que isso foi um sinal. Ela vai se salvar. Estou tão feliz!

Enquanto falava, abraçava-o confiante e aguardava impaciente o chamado para a visita na UTI. Precisava conferir aquilo que já sabia. Sua irmã estava melhorando sensivelmente.

Mel era uma pessoa excepcional. Irradiava alegria. Havia casado com Guilherme há alguns anos e se mudara para São Paulo. Ali tivera dois meninos lindos e saudáveis. Era professora em duas escolas públicas onde era admirada pelo seu excelente trabalho.

Estava às vésperas de ter o seu terceiro filho. Este, ao contrário dos anteriorres, causava-lhe algumas preocupações. Mel voltara a sentir as enxaquecas que a acometiam na juventude. Sua pressão estava inconstante, além de outros problemas.

Por ocasião do sexto mês de gravidez, enquanto ministrava aulas, à noite, sentiu-se mal e fora levada às pressas ao hospital. O marido, acompanhou-a no atendimento de emergência e nos dias seguintes.

Constatou-se aneurisma cerebral. Os médicos recomendaram repouso absoluto por algumas semanas, uma vez que não seria possível submetê-la à cirurgia sem riscos para o bebê. Se o parto fosse antecipado, o feto não sobreviveria.Talvez o derrame retrocedesse, o sangue fosse reabsorvido pelo organismo, uma vez que a paciente estava consciente e sua boa saúde indicava prognósticos favoráveis.

A irmã mais ligada ao casal e que estivera presente nos partos anteriores, fora novamente chamada. Sua chegada, no entanto, coincidiu com o agravamento da situação clínica. A paciente tivera uma violenta recaída. Houve novo e grave sangramento cerebral pela reativação do aneurisma e ela precisou ser conduzida para a Unidade de Terapia Intensiva.

Isabele acompanhara os dramáticos momentos que antecederam a entrada de Mel na UTI.

Deitada, Mel conversava calmamente sobre os últimos acontecimentos, recomendando que, em hipótese alguma deveria ser autorizada a cirurgia no cérebro. Ela não queria correr o risco de ficar paraplégica. No quarto ao lado alguém havia sido operado de aneurisma e perdera a fala e movimentos.Isso a impressionara.

Repentinamente, sem mesmo terminar a frase, soltou um grito lacinante, parecendo o uivo de uma animal ferido.

Isabele saltara da cadeira em busca de socorro. Em poucos instantes entraram vários enfermeiros carregando um carrinho com equipamentos de ressuscitação e ela, trêmula, fôra empurarrada para o corredor. Lá de fora acompanhou, com o coração oprimido, os uivos continuados, até que finalmente, reinou a calmaria. Os enfermeiros sairam conduzind Mel numa maca até um quarto especial, ao lado da enfermaria, onde aguardaria a liberação de um leito na UTI.

Isabele foi-se esgueirando de mansinho e sem que ninguém o percebesse, colocou-se ao lado da cama, nesse outro quarto, velando o sono de Mel que, entubada e amarrada, de olhos cerrados e semblante comprimido, talvez pela dor, emitia alguns gemidos de tempos em tempos. Passados alguns minutos entrou o médico, insistindo para que Isabele saísse. Antes de sair, olhou mais uma vez para a irmã, tão carewnte, tão abandonada, sozinha num momento tão terrível. Pode vislumbrar, antes qwue a porta se fechasse, os olhos syuplicantes de Mel, já desperta e com o semblante aflito. Sem palavras, Isabele leu nos olhos da irmã um grito desesperado de socorro. Impotente, deixou-se cair numa poltrona, na sala de espera.

Foram dias terríveis, cheios de angústia, incerteza e ansiedade. Grupos de orações, visitas com tempo registrado em conta-gotas. Situação estável, traduzida uma frase perturbadora: estado gravíssimo.

Isabele não conseguia tirar da cabeça uma sensação inquietante. Ouvira, sem ser percebida, enquanto sua irmã aguardava para dar entrada na UTI, vários telefonemas da enfermeira chefe, insistindo para liberar um leito, argumentando que "essa paciente é jovem e tem mais condições de sobreviver... não podemos deixá-la sem atendimento, enquanto alguém já desenganado ocupa um leito..." Ficara a sensação de que alguém fora... marcado para morrer a fim de que ela se salvasse.

Isabele, inconformada, vagava pelos corredores seguindo de perto cada enfermeiro, médico, atendente que deixava a UTI, em busca de novidades. Recostava-se nas poltronas e dormia ali mesmo, sem coragem de ficar muito tempo longe daquela porta que engolira sua irmã. Desfiava rosários de orações, visitava constantemente a capela do hospital. Só se afastava para um rápido banho ou para alimentar-se. A presença de Guilherme amenizava um pouco o sofrimento pois ambos se irmanavam na dor.

Por várias vêzes Guilherme e Isabele discutiam com outros parentes se deveriam solicitar a tansferência de Mel para outro hospital melhor equipado. Havia ainda o agravante: médicos desse hospital estavam em greve, sendo substituídos por residentes nos procedimentos mais simples. Apenas a UTI funcionava com todos os profissionais. Isso causava insegurança quanto ao tratamento de Mel. Mas o médico responsável considerava a transferência um risco maior.

No sexto dia uma novidade tornou mais sóbrio o quadro da paciente: o bebê não dava mais sinais de vida. Os médicos consideravam que uma cirurgia para a retirada do feto agravaria mais o estado da paciente. Decidiram aguardar e se houvesse melhora fariam a cirurgia nas próximas horas.

Foi o momento de convocar todos os parentes, pois o estado crítico não alentava espoeranças. A cada pessoa que chegava, mais e mais os ânimos iam despencando. E cada vez menor era o tempo de visita para cada um. Olhares deprimidos se cruzavam, quase sem palavras.

Algumas horas depois a enfermeira de plantão constatou que o corpo inanimado da mãe expelira voluntaria emente o feto, sem que ninguém na UTI percebesse qualquer movimento ou gemido.

- Sábia Natureza... agindo sem a interferência médica, resolvendo por seus próprios meios, situações aparentemente insolúveis.

No dia seguinte foi realizado o enterro de Frederico. Numa minúscula caixinha... Durante o enterro, um misto de tristeza e esperança. Criança linda, feições perfeitas, até com cabelo... dedinhos sem unhas, mas perfeitos... O nome? Guilherme nem titubeou - a mãe já havia escolhido há várias semanas. Foi levado ao túmulo por um pequeno grupo de parentes sem maiores delongas.

Um raio de esperança, ainda tênue, se desenhava na mente de Isabele. O bebê não representava mais perigo de infecção ao corpo da mãe. Havia possibilidades... Talvez até pudesse ser feita a cirurgia salvadora. Na próxima visita iria esclarecer essas dúvidas.

Cirurgia contra indicada. A nova tomografia computadorizada revelou que o sangramento atingira uma área muito extensa e perigosa. Sem certeza do local exato a cirurgia não poderia ser feita. E a situação geral da paciente, com instabilidade de pressão e a baixa capacidade respiratória não davam boas expectativas. Ãnimos rebaixados. Esperanças reduzidas.

Sem alento para tecer novas expectativas, Isabele recostou-se na poltrona da sala de espera, enquanto aguardava a chegada de Guilherme, para a visita da manhã. Foi quando teve aquela pre-monição - ou visão: Mel deitada na cama branca, dormindo suavemente, com as faces rosadas e o cabelo solto no travesseiro...

Naquela tarde, diferentemente dos demais dias, a permissão para a visita foi mais demorada. Pareceram minutos intermináveis... pessoas saindo e entrando, até que, finalmente foi permitida a entrada, um a um, duas pessoas da família: Guilherme e Isabele, naturalmente.

O leit estava atrás do vidro. Não foi permitida aproximação. Pouc foi possível ver. Isabele estranhou que o pulmão, ligado ao respirador artificial, tinha um movimento diferente. Parecia mais mecânico, como se o peito estivesse sendo movimentado apenas pela máquina e não mais pelo organismo. O rosto entubado pouco deixava à mostra.Parecia apenas um corpo inerte, sem cor. O Médico não estava à disposição para esclarecimentos.

Isabele saiu às presssas. Nem quis utilizar todo o tempo disponível. Preferiu desviar os olhos, afastar-se daquele quadro deprimente. Sentiu-se pesada, como se estivesse se movimentando num pesadelo.

Na saída ela e o cunhado foram encaminhados à saleta do médico onde ficaram sentados alguns intermináveis minutos. A desolação era tanta que os dois mantiveram silêncio, cada um absorvido pelos próprios pensamentos, com receio de traduzir em palavras o que estava sentido, para não quebrar a esperança dooutro. Finalmente a chegada do médico pôs fim àquele pesado silêncio. Ambos levantaram-se inquietos e atentos.

- Meus amigos, esta é uma das horas mais difíceis para um médico...

Ambos olharam-se com ansiedade, adivinhando as palavras que viriam, mas sem energia para antecipá-las.

- Um médico existe para salvar vidas, recuperar a saúde dos enfermos, dar esperança. Mas hoje... eu me sinto um fracassado. Deus não me deu a alegria de poder cumprir a minha missão. Dona Mel... não vive mais!

Isabelle deixou-se cair novamente sobre a cadeira, desolada. Aquilo deveria ser um pesadelo. Não poderia estar acontecendo. Ela tivera uma visão, naquele dia de manhã e não era isto que a visão mostrava. Havia algo errado. Muito ao longe ouvia as vozes do médico e de Guilherme, enquanto saia cambaleando pelos corredores, como uma sonâmbula. Um pensamento riscou, como uma espada de fogo, a sua mente: "É preciso abrir vagas para pacientes com possibilidades de sobreviver... " ...enquanto alguém já desenganado ocupa um leito na UTI ..." Será que Mel também fora descartada para dar lugar a alguém com mais chances de sobreviver? Desesperada, encostou o rosto na janela e olhou para o crepúsculo que se aproximava. Noite lá fora... escuridão em seu coração.

Mais tarde, nem sabe de onde tirou forças, percebeu-se dirigindo o carro do cunhado, pelas agitadas avenidas da zona sul, em direção à casa do casal. Logo ela, que nunca dirigira esse carro, que não gostava de dirigir nesse horário de lusco-fusco, que nunca dirigira em São Paulo, pois vivia numa cidadezinha do interior e não se aventuraria a dirigir numa metrópole. Ele ficara no hospital para acompanhar a liberação do corpo.

Ali estava ela, num rumo que não sabia se era o correto... Precisava parar e perguntar se o caminho era aquele. Com a mente meio anestesiada, como num sonho, agindo como zumbi, continuou a percorrer avenidas, acelerando e reduzindo, parando e retomando a marcha, até que, mais por acaso que por ação consciente, reconheceu as ruas e casas próximas da residência e, ainda como num torpor, estacionou e fez o que tinha que ser feito.

Lembrou vagamente sua mãe, que sentenciara inúmeras vezes: - “ Não importa a dor, não importa o medo, não importa o cansaço – é preciso fazer o que tem que ser feito”. E, nesse momento, o que precisava ser feito era escolher a roupa para vestir a falecida...-Que nome terrível para designar a sua irmã! – pensou assustada. Mas continuou abrindo gavetas, falando alto antes de cada ação, para não se perder na dor da emoção.

Juntando o que precisava, consultou a agenda da irmã e fez vários telefonemas.

Surpreendeu-se com sua voz calma, informando as pessoas como se não fosse ela a dar a notícia ou como se fosse um fato corriqueiro, informado sem emoção na voz...

Lembrou até da melhor amiga, a qual pediu para ajudar a preparar o corpo, dando as informações precisas, com voz calma.

Voltou ao hospital, já um pouco menos insegura, pelas ruas de trânsito intenso. Até se permitiu chorar copiosamente, com alívio, enquanto vagamente percebia as luzes e o movimento ao redor.

Nunca conseguiu entender como tivera serenidade suficiente para enfrentar o trajeto de ida e vinda, sem nenhum incidente. Talvez se precisasse repetir a façanha hoje, não conseguiria, embora com muito mais vivência em grandes capitais... Efeitos da adrenalina certamente.

Agora, ali estavam, ela e a amiga, numa missão inusitada...

Terminada a maquiagem, Leandra volta-se para Isabela e pergunta:

Já terminou de vestí-la? Então observe se a maquiagem está de acordo. Você acha que ficou discreta para uma pessoa no estado dela?

- Sim. Ficou bem suave, responde Isabele. Ela está linda como sempre foi.Mas, ajuda-me, por favor. Precisamos apoiar sua cabeça que está torta. Dobre esses lençois e coloque-os do lado esquerdo. Eu suspendo a cabeça dela.

Enquanto a outra atendia o solicitado, Isabele foi ajeitando as mechas encaracoladas do cabelo castanho, excepcionalmente viçoso e brilhante, sobre os lençóis que serviam de travesseiro.

Conversavam à meia voz, como o momento exigia, para não quebrar a solenidade daquele momento, tão doloroso para as duas: a melhor amiga e a irmã, mais que irmã, uma espécie de mãe.

Isabele afastou-se para olhar o efeito do trabalho delas. A imagem pareceu-lhe familiar... Aquele corpo inerte parecia apenas repousar. A suave maquiagem dava uma aparência de vida onde a sombra da morte já se havia instalado. Sentindo um calafrio, seguido de uma intenso calor a percorrer-lhe o corpo.

Isabele lembrou-se de que aquela era exatamente a imagem que havia visto algumas horas antes. Exatamente igual, com todos os detalhes... os cabelos, o rosto, os lençóis, o semblante feliz...

Agora ali, diante do corpo inanimado da irmã, surpreendia-se, mais uma vez, com a riqueza de detalhes de sua antevisão. Intrigava-a o fato de ter-se enganado tanto... Como nem cogitara da morte, se a vira nitidamente naquele sonho?

Mergulhada em seus pensamentos, já na capela do cemitério, olhando novamente para o corpo da irmã, entendeu que Mel irradiava tanta paz e serenidade por que, nesse momento, em outra dimensão, ela estava serena, sem sofrimentos e, certamente, assumindo o lugar de direito, que havia construído durante toda a sua existência. Fora uma pessoa especial, capaz de consolar, de solidarizar-se, de espalhar alegria, de surpreender sempre com seu otimismo e com pequenos e constantes gestos de amor.

Disse para si mesma que, em determinado momento, Deus chama novamente para junto de si, os anjos que colocou temporariamente na terra para tornar mais leve o fardo que a vida, apresenta para os seres humanos.

E é justo que assim o seja.

"Senhor! Não compreendo Vossos desígnios, mas a eles me submeto".