O corte

Mais um dia. Outro dia na vida morna dele. O despertador dispara anunciando as 06h30min da manhã de segunda-feira. Início da semana, início do dia, início da rotina. A mão dirigiu-se ao aparelho pesada e preguiçosa e o silencia. É tarde demais; é preciso levantar. Com um movimento brusco e desajeitado as cobertas são jogadas para o lado e a cama de solteiro subitamente parece menor com aquele amontoado de tecido na lateral. Senta-se na cama e levanta-se rapidamente. É o único jeito de despertar, rápida e vigorosamente como quando se retira um curativo; um segundo a mais com o lençol sobre o corpo ou sentado e não mais sairia dali naquele dia. Seria um dia perdido, mais um dia.

O ritual então prossegue, dirige-se ao banheiro ainda descalço e bocejando. Alivia-se primeiro e então encara o próprio rosto no espelho. O mesmo rosto velho o encara de volta. A cada manhã parecia dez anos mais velho e dez anos mais cansado. Especialmente naquela manhã, quando tinha a barba por fazer. Percorreu a imagem refletida e notou os cabelos brancos e as rugas na face. Quando adquirira todos esses traços? Não tinha nem 35 anos de idade afinal.

Durante sua contemplação lembra-se que não precisa trabalhar hoje, é feriado. Para ele só mais um dia. Amaldiçoou-se por não ter reprogramado o despertador. Mas agora era tarde e há muito ele havia aprendido que quando é tarde não há mais volta. Acordara cedo e já lavava o rosto para não ir trabalhar. No entanto agora se encontrava sem rumo. Analisou mais uma vez a barba e tomou a espuma e a navalha. Pôs-se então a aparar os pêlos da face. Mas algo estava errado. Sentia um incômodo dentro de si. A mão trabalhava automática, porém em sua mente ela vacilava e rejeitava-se a prosseguir. Parou por um momento e respirou fundo. Seus pulmões arderam com o forte cheiro de hortelã da espuma, mas a sensação não o abandonou. Sentia que estava fazendo algo errado. Prosseguiu até terminar todo o rosto. A água corrente que descia da torneira levava a espuma e o pêlo ralo abaixo e, por um minuto, ele ficou contemplando essa cena sem entender bem o porquê.

Lavou o rosto e guardou a navalha e a espuma e olhou mais uma vez no espelho. Dessa vez no fundo de seus olhos. Olhos cansados como se não conseguissem repousar a tempos. Entretanto para descansar é preciso primeiro viver, é preciso cansar-se. Por isso aqueles olhos não descansavam.

Apesar de barbeado ainda apresentava uma fisionomia desleixada. Tocou os cabelos com a ponta dos dedos e percebeu que estavam compridos demais. Decidiu, já que havia acordado cedo inutilmente, aproveitar o dia livre para cortar o cabelo. Não lhe agradou a idéia. Cumpria esse dever apenas por necessidade, assim como levava o resto da vida: pela necessidade.

Tomou um banho rápido e vestiu-se. Saiu de seu pequeno apartamento no centro e desceu as escadas com lentidão. Dirigiu-se ao cabeleireiro mais próximo sem julgar preço ou qualidade. O que queria era simples, não podia custar muito em um salão de rua e qualquer um com o mínimo de habilidade seria capaz de fazer. Ele mesmo o faria se pudesse.

O salão estava vazio como era de se esperar, afinal eram 08h30min da manhã. Um senhor de bigodes que aparentava ter cerca de cinqüenta anos sorriu ao ver seu cliente entrar e pediu que ele esperasse alguns minutos enquanto preparava a cadeira e os instrumentos. Ele sentou numa cadeira velha encostada na parede e olhou ao redor examinando o ambiente. O salão era pequeno com apenas quatro lugares para o atendimento, além do pequeno balcão de recepção. Toda a decoração era de madeira de baixa qualidade envernizada e com uma cor de caramelo. Havia também muitos espelhos, como é de se esperar, e uma porta que levava aos fundos do salão. A maioria dos profissionais estava nos fundos, apenas o velho senhor, ele e uma jovem recepcionista encontravam-se ali.

O cabeleireiro chamou-o para se sentar. Ele tomou seu lugar na cadeira giratória, o cabeleireiro ajustou a altura e passou em volta do pescoço dele a capa (um pouco apertada). Ele disse ao senhor que queria apenas aparar as pontas e, ao ouvir as instruções, o homem pegou a tesoura e o pente e começou a trabalhar.

As mãos e o pente tocaram nos cabelos dele primeiro, correndo com rapidez do topo da testa à base da nuca e ele sentiu esse toque com uma espécie de pavor e apreensão. Não entendeu o súbito pânico que lhe ocorrera, ficou lívido rapidamente (e podia comprovar isso no espelho), sua garganta estava seca, as mãos suavam e havia um frio na barriga. Não sabia por que, mas as mãos daquele senhor inspiravam-lhe um temor irracional. Era como se seu corpo ou seu subconsciente pressentissem algo que ele não podia ver.

A tesoura então entrou em ação e o primeiro corte foi insuportável, como se tivessem lhe cortado uma perna. Estava agora lutando para permanecer sentado naquela cadeira, insistindo na tortura que passava. Não queria parecer um louco e sair desenfreadamente do salão. Afinal o que estava se passando?! Toda essa batalha consigo mesmo ocorria dentro de si e seu semblante nada revelava sobre seu estado incompreensível. Não queria parecer um louco.

No segundo corte uma mecha de seu cabelo caiu ao chão e, para ele, parecia que ela estava caindo em câmera lenta. Na mecha negra e sedosa ele viu sua própria imagem. Não como estava vendo no espelho, mas como era. Viu, como se fosse uma terceira pessoa, sua vida refletida no brilho daquela mecha em queda. Pela primeira vez encarou toda sua monotonia, aquela rotina insossa, o simples passar dos dias cumprindo suas obrigações e sem usufruir de nenhum prazer mundano; um não-viver. Toda essa “vida” estava em queda, junto com aquela mecha de cabelo preto.

Mais um corte e mais uma mecha deixando o seu cabelo. Dessa vez ela não caiu no chão, ficou em seu ombro direito sobre a capa, ali, encarando-o de frente pelo reflexo do espelho. Mais uma vez sua “vida” que não se pode chamar de vida. É apenas uma passagem, por caminhos que não tem a pretensão de levar a lugar algum. Essa não vida agora repousava sobre seu ombro e ele estava aliviado por não ter perdido-a como ocorrera com a primeira mecha. Todo o tédio e o despropósito da sua passagem estavam ali, sobre seu corpo, como matéria orgânica no solo da floresta, que precisa abrir espaço para que cresça nova vida. Aquela matéria morta estava ali, não nutrindo, mas sim comprimindo a vida que queria crescer e implodir de dentro dele. E ele estava satisfeito, pois tudo o que conhecia era aquele vagar com o objetivo de não ter objetivo, sem rumo definido ou atalhos. Não queria desapegar-se dessa vida, pois sem ela não havia nada; e o nada é assustadoramente sufocante.

O senhor de bigodes que cortava o cabelo dele notou o olhar fixo do cliente para a mecha sobre o ombro e sentiu-se embaraçado por não ter limpado a mesma antes. Com um movimento ágil e sutil empurrou a mecha com as costas da mão para longe. Ele mergulhou em desespero novamente, encontrava-se agora desimpedido, apto a viver (de fato) como bem entendesse; finalmente livre. Mas toda essa liberdade era apavorante apenas, sentia uma vertigem tremenda e não conseguia resistir à sensação de ver sua não vida esvaindo-se, como a espuma e os pêlos, ralo abaixo. Encontrava-se indefeso e acuado. O toque da mão do cabeleireiro era insuportável agora, sentia medo (como se estivessem tocando o mais íntimo de sua privacidade e então revirassem tudo). E o medo tornava-se desespero, pois já não sabia organizar a bagunça em que estava e, sem saber a organização prévia, não sabia prosseguir.

A tesoura refletiu um raio de sol que entrava pela porta de vidro e atingiu os olhos dele pelo espelho. Ele apertou os olhos para se proteger e percebeu de relance o avanço da tesoura sobre seu cabelo para ceifar outra mecha e privá-lo cada vez mais de sua não-vida. Desta vez não poderia mais suportar, estava entregue àquela tormenta e mostrava isso em sua expressão. Não se importava de parecer um louco contanto que preservasse o que tinha. O senhor de bigodes mal teve tempo de soltar uma exclamação de surpresa ao olhar o rosto de seu cliente refletido no espelho, antes dele levantar da cadeira subitamente e sair correndo para fora do salão.

Ele correu direto para seu apartamento. Quase foi atropelado ao atravessar a rua e subiu as escadas aos saltos. Quando chegou lá sentou no chão atrás da porta respirando rapidamente para recuperar o fôlego. Decidiu, sem pensar muito, que o melhor a fazer era esquecer tudo aquilo. Iria voltar para a cama e tentar dormir, já que não havia nenhum compromisso no feriado. O melhor a fazer era fingir que tudo fora um sonho. Iria esquecer que havia despertado aquela manhã; duas vezes, uma às 06h30min e outra às 08h53min da manhã. Sim, iria esquecer. Mas, ao tentar inspirar profundamente, a capa apertando o seu pescoço lembrara-o que não havia mais essa possibilidade.