Marília
I
Onde quer que eu vá levo você. E se tu disseres desconhecer esta coisa viva e morna que habita teu corpo-alma, eu te direi que estarás mentindo. Ou que te desconheces inteiramente desde a superfície-fundo do teu ser azul. E te conduzirei além: dir-te-ei que por mais próxima que eu te traga junto a mim e que tu te tenhas tornado mais bela que o mais belo dos dias da minha vida, ainda assim estarei sozinho, ainda assim mal conseguirei me suportar, ainda assim jamais poderei olhar para mim mesmo diante de um espelho. Ainda assim. Porque haveria de supor, então, que o mundo me perdoaria ? Para que isto acontecesse teria necessariamente que haver um embate, uma luta da qual bem sei que provavelmente eu não sobreviveria, ainda que nestas questões seja um tanto complicado definir o que é ser vencido ou vencedor.
Conheci Marília alguns meses atrás e desde então passei a me interessar pela sua dissolução. A sua dispersão. A sua morte. Como um animal ferido. Inconsciente. Inconsistente. Boi a caminho do matadouro. Inseto. Palha que se desfaz entre os dedos. Pena de algodão soprada pelo vento.
Às vezes observo que Marília se apercebe da trama, sente que algo não vai bem, que alguma coisa estranha lhe está sendo sutilmente arranjada. Com certeza deve pressentir um brilho nos meus olhos - o brilho frio do aço, o lustre reflexivo dos cristais, das pedrarias, das gotas cristalinas que se dispersam nas águas de uma corredeira, o brilho azul-transparente da água marinha e verde-fosforescente das águas-vivas - da mesma forma que eu percebo nos dela uma mistura de medo e terror, audácia, aversão e prazer, o olhar paralisado de alguém que se aproximou demais da beira do abismo e que se estacou de repente congelada, fria, sentindo mais e mais a necessidade de encarar o vazio, de se aproximar do destino, qual mariposa-presa atraída pelo clarão de uma lâmpada na escuridão da noite, como se quisesse testar o seu próprio limite, o limite da sua própria dor-em-desespero. É impossível que ela não se tenha apercebido da luz que brilha nos meus olhos.
Decidi conduzi-la a um lugar do qual jamais se esquecerá, de onde não mais retornará, impedida para sempre de me expor. Percebo sorrisos nas minhas costas. Quando me viro, brilham disfarces. Então, vou arquitetando silenciosamente durante as horas em que estou só, saboreando cada detalhe, cada pensamento e idéia extravagante, como se me embebedasse com uma xícara de chá preparada meticulosamente por um lorde inglês diante de uma vasta biblioteca, premeditando o próximo passo a ser dado nesse jogo como num maravilhoso lance de xadrez onde haverá no fim, provavelmente, uma caça e um caçador. Não me fiz arquiteto ao acaso. Sei construir fachadas, levantar paredes, erguer edifícios, elaborar em detalhes-mil mil planos distintos, vislumbrar plantas e mapas como um velho construtor egípcio calculando passagens misteriosas em templos e pirâmides antigas.
Há um mês atrás, no entanto, quase cometi um erro, uma falha fatal de estratégia. Estive a ponto de enfiar um punhal entre seus seios. Percebes o que isto significa, o que quer dizer? Recordas o que eu disse mais além ?! Dispersão. Dissolução e morte. Exatamente. Como uma besta ferida atingida pela espada fria de um toureiro, um eucalipto partido ao meio por um raio num dia de chuva, um demônio esmagado sob os pés de um anjo de barro. Algo, no entanto, me impediu, me conteve a tempo. Uma sombra saída do nada na escuridão do quarto travou-me ambas as mãos no momento fatal do desenlace, segurando-me firmemente os pulsos, retendo-os presos nas costas como se envoltos estivessem numa camisa de hospital ou amarrados por grosseiras cordas de antigos mastros de navios – e eu caminhando na prancha da embarcação sob o apupo vivo dos marinheiros, impossibilitado do movimento cruel no momento exato do expirar da vida. Foi, talvez, a minha sorte, o meu fado, o meu fardo e o meu destino. Que seria de mim se as coisas tivessem se consumado naquele momento impensado, num supremo e insensato ato de raiva e de glória? Que faria então? Marília provavelmente me encheria de beijos e me levaria de novo à loucura. Ela sobreviveria, aflita, gotejando o sangue inútil do buraco da ferida. E depois riria na minha cara com a sua boca mal cuidada, os dentes remendados, seus lindos olhos de azul anil, de um azul sublime da cor do mar, da cor-do-céu-quando-amanhece-nos-dias-de-sol-sem-nuvens. Ela me humilharia, me desprezaria, me feriria profundamente e eu me esmagaria outra vez debaixo de seus pés. Como um inseto, palha esmagada entre os dedos, pena de algodão soprada pelo vento. Vó Maria dizia que homem que se agacha demais deixa entrever os fundilhos. Vó Maria tinha razão, era muito esperta. Marília também o é. Tem-me magoado muito. Sai constantemente, cada noite com um sujeito diferente. Ela compreende que eu tenho nojo e que tudo isto me magoa profundamente. Percebe que é com repugnância que eu me deito ao seu lado quando ela retorna todas as manhãs como uma gata-no-cio do seu passeio noturno e eu a possuo como uma vaca, uma besta, com ódio e desejo, desespero e dispersão. E ela parece gostar disso, sentir algum prazer. Parece perceber o jogo. E também quer participar, movimentar a sua pequenina peça, fazer seu lance, apostar tudo no tudo-ou-nada-final. Marília me pertence. Ao menos deveria me pertencer, ser apenas minha. Ela é de todos e de ninguém, inconcebível, incompreensível e indomável, paraíso e inferno, medo e prazer. Esta noite, provavelmente, Marília vai morrer.
II
Fim de tarde. Marília está vestida com uma blusa de fino algodão cor-de-rosa-claro, deixando entrever a sombra redonda dos seios, uma calça jeans grudada no corpo. Sei que nestes dias ela sai sem nada por baixo do jeans. Acha excitante sair assim, como se estivesse pronta, preparada. Preparada para sair. Pronta para se acasalar. Vai sair em minutos, pavonear-se diante de alguém. E eu impassível, impossível, quieto-e-inquieto, olhando, indagando, pensando, observando, calculando. Sei que ela vai se deitar com alguém. Sei que vai dançar colada nele, que ouvirá palavras que a excitarão, palavras sussurradas nos ouvidos, seus lábios tocando os do outro, suavemente, como se. Sei que as mãos daquele um vão tocar seu corpo, a ponta dos dedos penetrando indecentemente pela barra da blusa, acariciando os mamilos na escuridão da boate e a carne branca dos peitos saltando, ela se encostando nele durante a dança de maneira a excitá-lo ainda mais, a senti-lo vivo, pulsando quase-dentro-de-si. Sei perfeitamente. Há alguns meses atrás, quando eu a conheci, as coisas se passaram da mesma maneira. Saímos, dançamos, ficamos juntos o resto da noite. Beijos. Muitos. Em seguida, ela desapareceu. Voltei a encontrá-la tempos depois na mesma boate, distraída, conversando com outro sujeito. Ou seria o mesmo ? não sei. Eu deveria dizer alguma coisa, fazer alguma coisa ? não sei. Fiquei de longe, apenas olhando. Depois nos encontramos outras vezes e dois meses depois perguntei-lhe - como se distraído também - se não queria morar comigo. Aceitou. Por algum tempo foi perfeito, vivemos a salvação. Ela se tornou caseira. Me aguardava ao anoitecer, me agradava. Num dia-qualquer, entretanto, recomeçaram-se as ausências-de-gata. O que dizer ? Marília tem necessidade de muitos homens, é-lhe impossível ter um só. Passei então a me ocultar e a acompanhar os seus passos e ela bem sabia disto e sei que sentia um gozo especial, diferente, quando acaso me descobria por perto. Estando acompanhada, punha-se a excitar o homem de maneira que eu pudesse perceber. Às vezes, abria-lhe sutilmente o fecho da calça na pista de dança e. E ela sabia que eu estava vendo aquilo e isto a deixava mais louca. O que ela não percebia é que eu também estava calculando o próximo lance, erguendo a parede fronteiriça, construindo um muro resistente e sutil em volta dela. Alguma coisa me dizia mesmo que isso não ia dar certo, que o amor era sonho perdido, sonho idiota, pluma carregada pelo vento, palha que se desfaz e que se se desfaz não traz sentido algum, seja na dor ou no prazer ou quando ambos se misturam e se confundem. As vezes eu fico tonto, perdido entre as palavras, uma confusão de palavras soltas girando em redemoinho, girando, rodando, de novo girando a minha volta e eu seco por dentro, totalmente seco, quase morto. Mortinho, mortinho. E calculando, sobretudo calculando, o tempo todo somando, subtraindo e calculando. E Marília em todos os lados e ao meu redor, Lua de Prata e vértice, girando também. E crescendo, tornando-se maior e mais vistosa que Luar-em-noite-de-Lua-cheia. Conhece alguém, afinal, o que se passa no coração do outro ?
III
Madrugada. O céu está ainda mais escuro. Dizem que é pouco antes do sol nascer que o céu se torna mais negro. Alguém me disse isto uma vez. Não sei se é verdade. O que posso dizer é que está tudo acabado. E perfeito. Mas, interessante !?, parece-me que eu a vi logo ali atrás ao cruzar uma esquina mais escura, debaixo da iluminação fraca de um poste de luz mais além e - pior de tudo - ela parecia rir, rir-se de mim. Talvez tenha sido apenas a ilusão de uma noite maldormida. Mas como ela se ria, como ria de mim nesta ilusão, exatamente como imaginei que aconteceria. Ela sorrindo e mostrando os dentes remendados e sujos de batom. Mas, isso importa? O que quer que seja realmente tem alguma importância ? Decifra-me ou devoro-te. Mas saiba que, de qualquer maneira, neste momento em que estiveres buscando me entender, já estarás cá entre os meus dentes, já te hei de ter dividido ao meio e te devorado quando mal te aperceberes que começas a me compreender. Como num enigma. E, entenda quem puder ou quiser. Quem lograr me compreender perceberá que quando eu olhei para Marília com o canto azul dos meus olhos tristes na primeira vez em que a vi naquela boate suja, percebi no canto dos seus olhos fundos e por detrás da sombra estranha das olheiras que ela também me queria e que poderia me amar e que talvez viesse mesmo a me amar mais profundamente do que jamais fui amado em toda a minha vida e que poderíamos tentar viver juntos, talvez até nos apaixonarmos e passarmos um ou dois pares de anos juntos. E então pensei definitivamente que onde quer que fosse eu te levaria comigo, onde quer que estivesse traria você dentro de mim, levaria comigo a luz dos teus olhos, o brilho breve-e-leve do teu olhar, a lembrança dos teus seios, da tua pele branca, dos teus olhos azuis de um azul anil escuro como a cor do mar, da cor-do-céu-nos-dias-de-sol-sem-nuvens, da cor azulada da água marinha ou esverdeado-fosforescente das águas-vivas, brilho mais belo que o mais belo dos dias da minha vida...