A aurora da minha vida
“Como são belos os dias
do despontar da existência!”
Casimiro de Abreu
DESCULPEM-ME PELA HISTÓRIA ANTIGA que vou lhes contar. Quanto a contar histórias antigas, não há nada de novo. Mas há algo de muito interessante na legítima criação ficcional, que consiste na busca por um efeito, e, por conseguinte, na busca de um incidente curioso o suficiente para servir de complemento a esse efeito. Após essa busca e análise, adorna-se o texto com diálogos e citações, ponderando-se a respeito das reações e sensações que a conjugação desses elementos poderá despertar no leitor ao culminarem em um clímax específico. Nessa história antiga que vou lhes relatar – uma história devassa de uma infância qualquer – há uma série de mitos e de convenções sociais que são tomadas por verdades absolutas por nossa triste Humanidade. A cada passo, de forma calculada e premeditada, o autor procurou desconstruir uma a uma, a fim de demonstrar o quanto o nosso mundo está fadado ao fracasso e a destruição, e o quanto o fracasso e a destruição estão intimamente ligados a mais tenra idade dos homens, onde a PERVERSIDADE manifesta-se sem os abalos da censura moral.
“Meu sobrenome é D’Avilla e isso é tudo o que ouvirão sobre minha família. Não tenho, pois, um grande nome ou um parente ilustre para evocar em minha apresentação. Sou filho do chão. Tive uma infância bastante livre; cresci entre os verdes campos de alguns hectares de terra herdados pelo meu pai e o bairro urbano em que residia a minha família. Tive o privilégio e a tristeza de assistir ao crepúsculo dos campinhos e dos jogos de taco, destruídos pelo avanço da urbanização e das construções civis.
“Desses tempos, trago à tona um personagem: Francisco Wagner Zirolli. Ele foi meu amiguinho de infância. Tínhamos a mesma idade – 10 anos – com ele sendo apenas alguns meses mais velho do que eu. Descendente de alemães, Chico era um guri corpulento – gordo, para ser mais exato – e algo estúpido, dotado de uma espécie de truculência boçal. Eu nunca gostei dele.
“Por intermédio das conversas entre os nossos pais, soubemos que a casa de aluguel, que ficava em frente à casa dos pais do Chico, seria ocupada. Estavam todos bastante curiosos para saber quem seriam os novos vizinhos. Nós, as crianças, queríamos apenas saber se teríamos um amiguinho novo na nossa rua.
“Instalaram-se na casa uma senhora, de aproximadamente uns 50 anos de idade, e seu neto, Fernando Jorge, de 8 anos. Fernando era um menino franzino, branco como um copo de leite, e sua aparência delicada lembrava uma boneca de porcelana. Seus cabelos eram negros, de fios grossos, e seus olhos eram grandes e expressivos, que facilmente ganhavam ares de melancolia. Estava constantemente adoentado e sua avó não permitia que ele brincasse perto da terra batida ou que se juntasse a nós na rua, em dias de chuva. Suas roupas eram algumas camisas claras, bermudas de tons pastéis e chinelos rider modelo gáspea de cor azul marinho, que consistiam em um conjunto impecavelmente limpo.
“No dia seguinte a chegada dessa família à nossa rua, ouvi uma belíssima melodia que vinha da janela de sua casa. Fernando tocava violino e a melodia era agradável e alegre. Aquela execução soava como o seu cartão de visitas.
“Na frente da casa do Chico havia uma enorme árvore chorão, de aproximadamente 20 metros de altura, que cobria de sombras toda a largura do pátio. Seu era tronco largo e robusto, o que permitia que as crianças brincassem subindo em seus galhos. Por influência da televisão e dos filmes ianques, nosso maior sonho era construir uma casa naquela árvore – apesar de não haver casas em árvores em nosso país – e éramos capazes de passar tardes e tardes a discutir e sonhar a respeito da tal construção.
“Certa tarde, eu, Chico e Luizinho - seu irmão caçula de 7 anos, que a mãe sempre o obrigava a levar de arrasto - fomos convidados à casa de Fernando para jogarmos videogame e bebermos leite com bolachas. A casa de aluguel era de alvenaria simples e não diferia muito do padrão das outras casas do nosso bairro, à exceção de estar pronta e acabada. Todas as janelas e portas estavam abertas naquela tarde quente de primavera, e Fernando jogava uma partida de futebol eletrônico em seu Super Nintendo. Os olhos de Chico faiscaram de ódio e inveja pueris tão logo miraram o aparelho, mas ele possuía habilidades cênicas suficientes para se fazer passar por uma criança de coração puro e bondoso diante de olhos adultos.
“Além do videogame, Fernando possuía uma série de veículos e action figures de super-heróis americanos. Esses brinquedos eram impostos a nós através da publicidade, que fazia inflamar nossas imaginações infantis, mas sua aquisição estava bastante distante da realidade de nossas famílias, o que fazia inflamar nossas tristezas. Aquele mundo de jogos eletrônicos, brinquedos e imaginação pronta e embalada configuravam a bolha na qual Fernando era mantido por sua avó.
“-Meu pai é chefe de segurança no supermercado Nacional – contou Chico, com o peito estufado pelo orgulho infantil de falar sobre o pai, durante a entrevista com a avó de Fernando.
-O leite com Quiky está ótimo – completou ele – Nunca bebi melhor em toda a minha vida.
De fato o leite sabor morango geladinho estava ótimo, mas o elogio do Chico não passava de troça e vaselina.
-À noite, nosso pai pega bonequinhos da prateleira do supermercado e traz para nós – disse Luizinho, fazendo uma inocente alusão aos pequenos furtos que o pai, na condição de chefe de segurança, fazia no supermercado em que trabalhava. Naquela época, não havia sistema eletrônicos de segurança.
-O pai disse que não é pra falar dessas coisas – corrigiu Chico, dando um golpe no braço do irmão.
“A avó de Fernando riu e levantou-se para servir mais alguns copos de leite para nós. Tão logo virou as costas, o rosto do Chico foi coberto por uma sombra e seu olhar tornou a percorrer os pertences de Fernando. Seus olhos estavam vermelhos e faiscantes de ódio, como eu nunca havia visto. A senhora retornou com a bandeja de copos e disse a Fernando que tocasse violino para nós. Este recusou a princípio, algo envergonhado e manhoso, mas logo posicionou uma partitura na estante e pôs-se a tocar, passando o arco sobre as cordas do violino, entre a ponte e a escala. Terminamos nossa tarde ouvindo Fernando e sua música.
“Passaram-se algumas semanas e Fernando foi sendo agregado ao nosso pequeno grupo de meninos, conforme sua avó permitia. Consequentemente, ele ficou sabendo dos nossos planos sobre uma casa na árvore e não demorou a embarcar em nossas fantasias.
“Foi em uma tarde de sábado que aconteceu aquilo. Nos reunimos em uma peça de alvenaria inacabada, que ficava à parte da casa do Chico. O quarto tinha um cheiro forte de mofo e servia apenas para guardar alguns objetos e bicicletas. Tinha apenas um banco de madeira, longo o suficiente para acomodar umas 5 pessoas. Estávamos eu, Chico, Luizinho, Fernando e Malaquias, um menino de uma pobríssima família de evangélicos ortodoxos. Malaco, como o chamávamos, não tomava banho regularmente e cheirava como um cachorro. De seus cabelos escorriam lêndeas e suas roupas eram esfarrapadas e sujas. Nossas mães não gostavam de sua presença entre nós, mas, em nossa inocência, nunca o descriminamos. A mãe do Chico, dona Liana, tolerou sua presença no pátio após olhá-lo com nojo dos pés a cabeça.
“Estávamos bastante empolgados a respeito da feitura da casa na árvore chorão – havia madeiras novas no pátio do Chico e muitas ferramentas de construção disponíveis. Sentados no banco, discutíamos falando alto, gesticulando e esticando os braços, dispostos da direita para a esquerda: eu, Chico, Fernando e Luizinho - à exceção do Malaco, que estava sentado no chão.
“Tudo aconteceu muito rápido – e eu posso lembrar perfeitamente da sombra e da faísca nos olhos do Chico, segundos antes de ele gritar – Vamos nessa! – com a sua velha empolgação afetada, erguendo os dois braços roliços.
“Sua mão direita levou junto o nariz do Fernando.
“Chico já estava de pé, com uma estúpida expressão de que nada havia acontecido. Eu mesmo não havia me dado conta, até que Fernando, com os olhos do tamanho de dois pirex, tirou lentamente as mãos do rosto e nos mostrou o nariz esmagado, como se tivesse sido golpeado por uma marreta. Uma poderosa torrente de sangue jorrou imediatamente, banhando em vermelho sua camisa branca, seus calções, seus chinelos rider, o banco e o chão daquele quarto fedorento. Meu coração de guri apertou-se de espanto e horror.
“O choro de Fernando era alto e terrível, semelhante ao uivo de um animal acuado. O dispêndio de oxigênio usado para chorar o fazia inspirar rapidamente, levando uma grande quantidade de sangue para a sua garganta, que era cuspida em grandes bolhas tão logo o fazia se afogar.
“Luizinho levou as mãos à boca e começou a chorar também – seus olhos de criança expressavam horror e compaixão. Desviou os olhos para o chão.
“Eu não conseguia parar de olhar. Ao mesmo tempo em que aquele ferimento era terrivelmente chocante, eu simplesmente não conseguia parar de olhar.
“Malaco correu do quarto em direção à casa do Chico, em busca de socorro. Voltou logo com a dona Liana, que, ao entrar na peça, também ficou chocada com o estado do menino.
-Jesus, Maria e José! O que aconteceu aqui? O que vocês fizeram com esse guri?
-Eu bati nele sem querer...
“Dona Liana não deu ouvidos à voz chorosa de arrependimento fingido do filho e correu para acudir Fernando, cujo estado era uma lástima total. Sua pele branca deixava transparecer as veias azuis do seu pescoço, que saltaram com o seu desespero. Seu estado de choque havia cedido lugar a um pranto doloroso e comovente, como o de uma criança faminta que procura pela mãe. Seus soluços o faziam engolir muito sangue. Dona Liana deu-lhe uma toalha branca, para que pudesse estancar o sangue, o orientou a manter a cabeça erguida. A toalha branca imediatamente ficou vermelha.
“Meus olhos fitavam o chão ensanguentado, onde havia alguns pedaços de cartilagem do nariz do Fernando. Esses pedaços tinham o aspecto de uma massa parafuso quando cozida. Fernando pisoteou os pedaços do próprio nariz com seu chinelo rider, enquanto cambaleava para fora do quarto.
“Chico os seguia em direção à casa de aluguel em frente, onde Fernando residia com a avó. Eu os observava à distância. Em uma fração de segundo, seu rosto fora coberto por aquela sombra e seus olhos faiscaram novamente, para logo ceder lugar ao menino assustado e arrependido.
“Corri para a minha casa.
“As semanas se passaram. Jamais tocamos no assunto. Fernando simplesmente desapareceu das ruas. Nunca mais o vimos. Até mesmo a melodia do violino tornou-se rara.
“Depois de alguns meses, ele e sua avó se mudaram do bairro. Do dia para a noite. Não se despediram.
“Antes da mudança, certo dia, passei em frente à sua casa. Ouvi o violino.
“Uma melodia profunda e sombria saía da janela do seu quarto. Era possível ver uma sombra com um violino encostado no queixo. Ouvir aquela música era angustiante demais para os meus ouvidos – os tapei e corri dali. Tive que segurar as lágrimas. Entrei em casa e não quis que minha mãe percebesse o meu desespero. Tranquei-me no banheiro e chorei, com as mãos no rosto. Os minutos se passaram, até que minha face ficou distorcida pelo pranto. Aquela melodia fúnebre continuou ecoando por muito tempo na minha alma de guri.
“A missão do Chico, enfim, fora cumprida. O vizinho novato, estranho e fraco havia sido excluído do nosso bando. Definitivamente”.
Que a terra lhe seja leve.
Gravataí, 26 de Dezembro de 2010.