É tudo culpa do Belquior.
Contabalançando precariamente uma sacola de supermercado e dois filhos pequenos, um em cada mão, ela foi tomada pelo Coração Selvagem de Belchior: "Meu bem, guarde uma frase pra mim dentro da sua canção, Esconda um beijo pra mim sob as dobras do blusão" que tocava num rádio antigo, numa casa antiga.
"Eu quero um gole de cerveja no seu copo no seu colo e nesse bar
Meu bem, o meu lugar é onde você quer que ele seja
Não quero o que a cabeça pensa eu quero o que a alma deseja"
Devia ser proibido expor assim a liberdade do ser nas ruas.
"Arco-íris, anjo rebelde, eu quero o corpo tenho pressa de viver
Mas quando você me amar, me abrace e me beije bem devagar
Que é para eu ter tempo, tempo de me apaixonar"
E os sonhos? e os sonhos?
Abriu a porta de casa com aquela vaga sensação de presídio.
"Tempo para ouvir o rádio no carro
Tempo para a turma do outro bairro, ver e saber que eu te amo"
Ai mesmo é que a cozinha pareceu um túmulo e ao meio dia a morte chegou, com fome e calor, atrás de banho e feijão, oferecendo amor que mais parecia uma foice, trágica.
"Meu bem, o mundo inteiro está naquela estrada ali em frente
Tome um refrigerante, coma um cachorro-quente"
Vontade louca de sair correndo.
"Sim, já é outra viagem e o meu coração selvagem
Tem essa pressa de viver"
Quanto tempo fazia que não tinha pressa? Há quanto tempo tudo passava rápido como o ponteiro dos segundos, que se transformavam em horas, que se transmutavam em dias, anos?
"Meu bem, mas quando a vida nos violentar
Pediremos ao bom Deus que nos ajude
Falaremos para a vida: "Vida, pisa devagar meu coração cuidado é frágil;Meu coração é como vidro, como um beijo de novela"
Quantos beijos a menos desde a promessa?
"Meu bem, talvez você possa compreender a minha solidão
O meu som, e a minha fúria e essa pressa de viver
E esse jeito de deixar sempre de lado a certeza
E arriscar tudo de novo com paixão"
Em vão tentou explicar a morte, muito mais interssado no feijão, no jornal e nas próprias unhas, do que no que ela tinha a dizer.
"Andar caminho errado pela simples alegria de ser
Meu bem, vem viver comigo, vem correr perigo , vem morrer comigo"
A morte riu de seus argumentos: Pra que aquilo tudo? já não estavam bem? Não tinham casa, filhos e o escambau? Não almoçavam aos domingos no sítio do sogrão?
"Talvez eu morra jovem, alguma curva no caminho, algum punhal de amor traído, completara o meu destino."
A morte não gostou anda dessa conversa: Tá ficando maluca? Que papo é esse?
"Meu bem, vem viver comigo, vem correr perigo
Vem morrer comigo, meu bem, meu bem, meu bem
Que outros cantores chamam baby"
Chamou ainda, mas a morte não se escandaliza, a não ser com o que o perturba e não entendeu o chamado senão sob sua ótica: Tu quer é cama! De noite te pego.
E riu.
Não prestou! Ele jamais entenderá o surto, os gritos, os objetos que voaram pela janela do apartamento, a enxurrada de palavrões, aquele ódio cego espelhado nos olhos dela, dantes tão cordatos. E até hoje culpa Belchior.