“Eu fui filha única com sete irmãos”

Esta é uma história que aconteceu em 1937 no Paraná. É um exemplo de como a força do amor, dos valores morais, sobrepõem-se à violência

Nádia e Meire estavam sentadas quietinhas aguardando os trabalhos começarem para realização dos passes espirituais naquele Centro de Umbanda. Eram duas mulheres de meia-idade, belas, olhar doce, sorriso nos lábios e fisionomia serena.

Olhei para as duas irmãs e lembrei de toda a história que a amiga Nádia tinha me contado há muitos anos, sobre a irmã de sangue que tinha sido dada para adoção e que a encontraram depois de 30 anos, quando ela já estava casada e com filhos.

O jeito bem humorado delas nem de longe deixava transparecer a história dramática de vida, que ambas protagonizaram na infância. O rosto das duas era marcado pelo tempo, sim, mas as rugas se harmonizavam à fisionomia, delineando apenas a sabedoria de quem soube transformar as dores da alma, em esperança e fé pela vida.

- Esta é a Meire, a irmã da qual te falei aquela vez, lembra?

- Certamente que lembro, jamais poderia esquecer uma história tão incrível,respondi saindo dos meus devaneios.

- Meire, em seguida, disse sorrindo, “você está diante de uma filha única com sete irmãos”.

Voltei no tempo e lembrei de Nádia me contando a história, dentro do meu carro, enquanto lhe dava carona.

- Minha mãe me contava que meu pai era um homem muito briguento e que um dia ele ia se dar mal. De fato aconteceu, ele foi assassinado em 1937, em Cruz Machado,interior do Paraná.

Assim Nadia começou o relato.

Mas a história para ficar mais interessante deve ser contada inteira, quando o casal polonês decidiu tentar a vida no Brasil. Isso em 1929. Os dois sairam de uma cidadezinha polonesa, lá no interior da tão ocupada Polônia, que até então não era possível saber se a população era de russos ou poloneses. O casal chegou sem falar uma palavra em português e já com quatro filhos. “No navio, minha mãe achava que enjoava por causa do balanço das ondas, mas era gravidez de novo - do quinto”.

Stanislau era comunista declarado. Boa gente e bom ferreiro. Tinha montado uma ferraria na cidade e trabalhava muito para sustentar a prole que já estava em oito crianças no ano em que morreu. O crime aconteceu na segunda-feira, um dia depois do nascimento do oitavo filho – a Meire - , cujo parto foi feito por ele mesmo em Olga, sua mulher.

Segundo Nadia, foi o padre e o feitor - assim chamado o administrador das estradas da região - que mandaram matar o pai. Isso porque Stanislau não tinha “papas na língua”. Sempre que podia, depois que tomava umas cachaças, com o estômago cheio de pinga e cabeça zoando se punha a falar demais. “Vocês são uns burros de presentear este padre com comida”, falava indignado com os amigos que eram extremamentes pobres e que costumavam matar frangos e faziam quitutes para dar ao padre da comunidade. Como bom comunista Stanislau achava um absurdo isto, pois os piedosos, muitas vezes, tiraravam comida dos filhos para dar os presentes e com isso gozar de boa reputação com o pároco.

Quanto ao feitor, diziam que ele roubava o dinheiro do pagamento dos serviços prestados para a manutenção das estradas, que era enviado pelo governo, e o pai de Nádia era um dos prestadores de serviço. Sempre que podia, Stanislau denunciava para quem quisesse ouvir na cidade, que o feitor era um ladrão.

No dia do assassinato foi este feitor junto com outro homem que apareceu onde Stanislau tomava os seus tragos de pinga. “Sente-se aqui e beba comigo”, convidou o ferreiro. Mas o feitor não aceitou e disse que estava ali para matá-lo. Assim o fez, mesmo que, numa tentativa de se safar, Stanislau correu o que pode, até chegar perto de casa e chamar Olga, que, pobrezinha, estava no início da dieta e nada pode fazer a não ser se desesperar. Ao entrar em casa foi covardemente atingido na nuca. Olga ainda tentou defendê-lo, mas os brutamontes a jogaram de costas em cima do fogão à lenha. Por causa disso, não teve mais leite para amamentar a bebe recém-nascida.

Antes de morrer Stanislau ainda teve tempo de dar instruções a Olga, que desesperada chorava perto, implorando que não morresse porque precisava dele para criar os oito filhos. “Meu pai, agonizando, fazia sinal para tirar o sangue coalhado de dentro da sua boca para poder falar a mamãe. Ela usou uma colher para isto e ainda ouviu ele dizer: Olga dê a menina recém-nascida para ‘ gente boa’ criar e pegue os outros filhos e vá para Curitiba. Lá você tem condições de sustentar melhor a criançada”. Depois disso ele morreu, segundo Nádia, que ficou ciente dos detalhes pela mãe que tantas vezes contava em reunião da família.Nádia na época da morte do pai tinha quatro anos.

Sete dias depois a neném estava com diárreia e se alimentava quase só de chá, pois Olga não tinha muito leite. A sobrinha que falava um pouco melhor o português, que a ajudou a fazer a queixa do crime reforçou a questão sobre a doação da criança. “É para ela viver que você deve doar”.

Coincidentemente, morava na cidade um casal que procurava uma criança para adoção. A mulher tinha tentado várias vezes engravidar sem sucesso. O marido era militar.

Por orientação do promotor que estava ajudando no caso do assassinato do marido, Olga fez contato com os dois e resolveu doar a sua filha. Entregou a menina aos prantos para Isis, uma jovem de 28 anos. Isis não aceitou daquela forma. Aconselhou Olga a voltar para casa com a criança e pensar melhor. A entrega deveria ser feita sem choro.

Dois meses depois, a situação estava cada vez mais complicada. Pouco dinheiro e pouca comida fizeram Olga decidir, definitivamente, doar a criança. Certo dia, reuniu todas as suas forças e levou Meire para Isis, aguentou o que pode e só chorou escondido depois de ter deixado a neném.

Vendeu tudo que tinha, juntou um dinheirinho, deixou três das filhas com amigos em Cruz Machado e viajou rumo a Curitiba. Chegando na capital colocou o segundo filho na escola rural junto com o irmão e as duas meninas, uma delas a Nadia, num orfanato, e foi trabalhar como empregada doméstica na casa de um médico polonês. Lá cuidava de uma criança da idade que teria sua filha. Isso a fazia sofrer demais.

Olga teve notícias de sua filha doada até quando a menina completou 13 anos, por intermédio da madrinha em Cruz Machado que estava sempre em contato com os pais adotivos de Meire. Recebeu até uma foto dela com oito meses, saudável, linda, com brinquinho, pulseira e muitos mimos.

A vida desta polonesa era só trabalho até comprar um terreno, fazer uma casa e juntar a filharada de novo. Um objetivo que alcançou alguns anos depois quando os meninos já podiam trabalhar e disse: “agora é vocês que vão ajudar no sustento da casa. Metade do salário fica comigo e resto é de vocês”.

Quando casou todas filhas que estavam com ela decidiu que era o momento de saber notícias da outra que havia deixado para trás.No total eram seis filhas mulheres e dois homens. Meire estaria, no início da busca, com quase 30 anos.

A irmã mais velha, também chamada Olga, que presenciou a doação com nove anos de idade e nunca abandonou a idéia de que um dia iria achar a irmã, tomou frente às buscas. Conseguiu as mais importantes informações do paradeiro de Meire, sigilosamente, pelo exército. Um oficial ficou sensibilizado com a história de Olga e “por baixo dos panos” conseguiu descobrir que Meire vivia em São Paulo e já estava casada.

Olga, a filha, foi com o marido até a casa de Meire, porém não a encontrou. Falou com a filha dela,Jussara, então com 12 anos, com a irmã de Isis e relatou tudo. Foi uma surpresa para a família descobrir que Meire era filha adotiva. No entanto, Olga foi embora naquele dia sem revelar diretamente para Meire o segredo. Deixou apenas seu endereço em Curitiba. Meire descobriu tudo sobre ela depois que conversou com a tia.

A carta de Meire a Olga chegou uma semana depois da ida a São Paulo. Era um relato cheio de emoções sobre sua vida e a cisma que tinha em se sentir tão diferente da mãe Isis, que era morena e ela loira de olhos azuis. Mas resposta era sempre a mesma, que tinha traços da família italiana do pai.

As cartas de Meire, segundo Nadia, quando chegavam a Curitiba era um acontecimento festivo, passavam por todos os irmãos e a resposta era feita com papel carbono para que a família inteira pudesse curtir o contato com a irmãzinha.

Meire concordou em conhecer sua mãe biológica,embora exigisse que ninguém revelasse a sua mãe adotiva nada sobre a descoberta do segredo da adoção. Isis foi poupada de passar pelo vexame de saber que o mundo tinha descoberto a sua “amorosa farsa da maternidade”. Nádia conta que ela, certa vez, teve a oportunidade de escutar da mãe adotiva de Meire detalhes do seu parto. “É engraçado... quando fazemos da mentira uma verdade, ela se encalacra dentro da gente ao ponto de acreditarmos que é verdade. Até assinamos embaixo”. Assim aconteceu, Isis morreu sem saber que Meire tinha descoberto a sua condição de filha adotiva.

Quanto descrever o momento do encontro entre a mãe biológica e Meire é uma tarefa impossível. Não existem palavras adequadas para transcrever a intensidade da emoção do abraço entre elas. Imagina-se que naquela fração de segundos do aperto entre os dois corações, frente a frente, houve troca de energia amorosa, sem dúvida. Meire, de um lado, usufruindo de um afeto que foi reprimido por tantos anos nos sentimentos de Olga, e a corajosa mulher do ferreiro, de outro, dissipando a dor por ter renunciado à sua filha por amor, que, talvez tenha carregado como culpa em sua alma. Ali, naquele momento, teve a certeza que a escolha foi certa: Meire sobreviveu e cresceu saudável.

Stanilau e Olga, Isis e seu marido, os quatro protagonistas principais desta história são exemplos de integridade de caráter e de respeito pelos valores de vida, sobretudo Olga que soube dissolver na energia do AMOR a força destrutiva da violência.

Assim, Meire descobriu que é uma filha única com sete irmãos. Além disso, brinca sempre que o seu marido foi o único prejudicado nesta história, pois teve que aguentar duas sogras.