Nos priscos tempos

Nos priscos tempos, já olvidados, deambulava pelo orbe um antropopiteco ser, de atarracada proporção, simiana compleição. Vivia tal ser sob os ditames do instinto, porém lampejos de uma incipiente inteligência transluzia daqueles olhos baços, as vezes esgazeados, na tentativa, debalde, de compreender o obstruso sentido do seu existir, mas que apenas um átimo te tempo durava tal divagação, logo debelada, sufocada pelo premente e imperioso instinto de sobrevivência, lhe demandando toda a atenção do seu ser, não deixando ensejo para que o espírito, em toda sua pujança, se manifestasse, sobrepujando, com sua imanente luz, hialina como o entendimento, a necedade suscitada pela bestialidade, que lhe sufoca a lucides.

Não possuíam tais seres qualquer asseio, no tocante aos seus corpos, os quais, mefíticos, deixavam o ar impregnado de um nauseabundo odor. Porém, como ao mesmo estavam todos já afeitos, isso nenhum melindre admoestava o sentido, ainda tosco, de seus olfatos.

Eram brutos, porém sem serem hediondos. Possuíam a bruteza da ignorância, eram mais brutamontes, burlescos, do que perpetradores de ações realmente más. A maldade não se imiscuia em suas mentalidades ainda sob o guante da pueridade, que, a bem da verdade, remitia-os de qualquer incorrência danosa da qual protagonistas eram, mais pela imprudência, pela imperícia, do que pela malícia ou malignidade.

Viviam esses seres brutos num constante prélio com a animália inferior, designação ainda não atribuída para os outros animais naqueles tempos em que esses antropóides pela Terra caminhavam, porém imbuídos do objetivo de se auto-preservarem como unidades corpóreas, pois as feras eram implacáveis e insaciáveis e não hesitariam em esfacelar seus corpos para deles se alimentarem, como se alimentavam de qualquer outro animal, ou para, por sua vez, também buscar seu sustento na carne das feras abatidas. Porém esses antropóides não possuíam espírito beligerante, apenas salvaguardavam sua integridade física e saciavam seus estômagos.

Naquelas prístinas eras a natureza era inóspita em cotejo com a exuberância da flora que veio a vicejar, ao longo dos milênios, portanto o hominídeo daqueles tempos já olvidados não hauria da mesma nenhum atrativo que a aprazibilidade do meio suscita ao espírito, lhe imprimindo nos refolhos do ser a dulcilidade e a brandura que da beleza exalam. Portanto aquele homem primevo não tinha diante dos olhos nenhuma distração que lhe embevecesse o espírito e que o fizesse anelar um encanto, uma alacridade que sequer vislumbrava nem em seus sonhos mais brandos. Nem nessas paragens oníricas teria o refrigério da paz ante a inexorável brutalidade do meio no qual estava embebido.

Esses pitecantropos coexistiam em clãs, sob a déspota autoridade de um prócer ou líder, o qual não era escolhido pelas qualidades morais, mas pelo imperativo da força, portanto eram os mesmos intolerantes, não contemporizadores, com uma intransigência que beirava às raias da arbitrariedade, da imposição pura e simples de regras quase nunca arrazoadas. Porém não havia quem o contrariasse às escâncaras, pois seus esbregues para com os discordantes estavam muito além da simples admoestação. Era a morte sem clemência.

Haviam pequenas idiossincrasias no tocante ao modo de vida daqueles clãs, era como se uma força aglutinante coadunasse suas tendências num padrão de unicidade. Sua linguagem era predominantemente gestual, porém ululos guturais lhe serviam por vezes de reiterativos do seu pensamento, sempre adstritos a gestos efusivamente descomedidos, como alguém que tem ânsia de se fazer entender a todo custo.

Tinham um medo mórbido, uma fobia, ao diferente, aquilo que não conseguiam compreender de chofre, de relance, pois não buscavam analisar nada amiúde, não buscavam deslindar, conhecer, compreender, remirar, assimilar nada além do que já possuíam, intrínseco, imanente em seus seres. O que seus genes já possuíam. Por conseguinte o que fosse diferente, o que se lhes apresentava como algo inusitado, não comum, não coloquial, não prosaico, era por eles, sem hesitação, prontamente rechaçado. Alijavam para longe do seu convívio, não dispensando ao objeto preterido qualquer laivo ou resquício de afeição ou apego.

Como não tinham noção do Belo, a beleza não lhes suscitava nada além da indiferença. O tosco, contanto que tivesse alguma utilidade pragmática, suprindo-lhes as prementes necessidades, lhes bastava.

Dentre a unicidade ideológica daqueles clãs estava a única coisa que solapava a onipresença e a plenipotência do prócer dos mesmos que era o acúleo de uma religiosidade ainda claudicante, ainda tateante nas trevas da superstição, pois uma voz soava e retumbava na psicosfera coletiva daqueles trogloditas, quando olhavam, estupefatos e estarrecidos aqueles gigantes cuspidores de fogo e que a muito tempo dormitavam tendo como dossel o firmamento e que em entonações tonitruantes assim lhes chegava, numa linguagem por esses acessível, mais ou menos nesses termos:

- Os que nascerem diferentes vocês os entreguem a nós. Nós cuidaremos deles como os pais cuidam dos seus filhos. Sabereis que são diferentes pela tez alindada, aformoseada e pelos primeiros vagidos, pois que não serão mais um ronronar, mas um melífluo trautear jubiloso por contemplar os vivificantes raios do Sol pela primeira vez. Eles serão mais conscientes do que vós sois com relação ao seu estado e ao seu ser, mas ainda estarão distantes da verdade. Mas será um passo a mais para o que nós chamamos Humanidade.

Sim, viviam esses clãs sempre em assentamentos próximos de um vulcão inativo. Não tinham deles temores, pois os mesmos eram seus totens, seus deuses e enquanto alimentassem os deuses os mesmos os protegeriam.

Quando o filho de uma primípara de um dos clãs nasceu, percebeu-se que o mesmo era um dos diferentes, portanto um daqueles que deveriam ser ofertados aos deuses da montanha de fogo.

A princípio a primigesta não aceitou ser separada do seu primogênito, o seu primeiro rebento, porém o prócer do clã lhe chamou ao dever e então ela cedeu, como não o poderia deixar de fazê-lo, ao custo da própria vida se não aquiescesse. Conquanto tivesse um lampejo fugidio de um sentimento maternal a mesma conformou-se de forma inopinada, não restando qualquer ressaibo de desagrado contra aquela imposição injuriosa, vendo-a, outrossim, como natural. Não chorara, aliás, o hominídeo daquelas eras afastadas no tempo, não sabia o que era planger, pois ainda não aprendera a sentir com o espírito. Seu espírito sentira o impacto inicial da perda, porém, resiliente que eram, logo recobrou impassível, imperturbável, retomando os seus quefazeres que comumente e diariamente realizava, como se nada houvesse ocorrido.

O pequeno ser que nascera logo fora levado ao sopé do vulcão, o totem daquele clã, e o depositaram sobre um altar tosco de pedra, adredemente preparado para esse fim, colocando-o sobre umas macias folhas e com as mesmas o cobrindo, à guisa de coberta.

Foram se afastando, reverenciando o deus da montanha de fogo com seus meneios desengonçados. Pararam, de supetão. Olhos esgazeados, bocas desmesuradamente escancaradas, atônitos. O que viam? Nunca haviam presenciado a ação dos deuses.

Eis que da boca da montanha, da cratera daquele vulcão adormecido, saiu uma descomunal esfera de luz, a qual logo ganhou o céu, adejando sobre suas suas cabeças.

Os trogloditas, estarrecidos, prostraram em atitude genuflexa, baixando as frontes, osculando o chão.

Da grande esfera de luz promanou uma menor, a qual voejou por um lapso de tempo, até se dirigir aquele altar de pedra, e, por conseguinte, aquele pequeno ser lá posto, o qual, olhos vívidos, denodando uma intensa alacridade, um jubilo que transluzia de seu ser, ainda tenro, boca sorridente, lhe aguardava a aproximação, como um filho aguarda o ósculo de um pai.

A pequena esfera de luz se aproximou daquela adorável criança recém nascida. Lhe osculou, ternamente a face e, por fim, lhe embebeu em sua luz, como um pai estreita ao colo seu amado filho.

A esfera de luz levou-o consigo, em seu bojo, e evolou, sempre silente, em direção a esfera maior. A alcançando, adentrou em sua luz, nela se imiscuindo, a ela se misturando.

A grande esfera de luz adejou, ainda, por algum tempo sobre aqueles que aterrados a fitavam. Subitamente, como um raio, rascou os céus rumo ao horizonte.

Valdecir de Oliveira Anselmo
Enviado por Valdecir de Oliveira Anselmo em 03/12/2010
Código do texto: T2651403
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