Uma luz inaudita

Uma luz inaudita tremeluziu seu lampejo sobre o vale e coriscou, por um lapso de tempo, adejando sobre o mesmo. Formas fugidias, imiscuídas na luz, imanentes em seu brilho, pululavam, num bailado de nuanças inefáveis. Chovia a borbotões e a chuva fustigava, como um lancinante látego, quem se atrevesse a afrontar suas vergastadas, quem se atrevesse a intempérie arrostar, intrépido, se estatelaria, arfante, sobre o solo lodoso, pedindo clemência.

Um ser, aspecto tirante ao humano, porém toscamente talhado, embrutecido deveras, arremedo humano, se protegia da inclemente, inexorável tormenta, em um abrigo improvisado, ao arrimo de uma encosta, num nicho esculpido na rocha pela natura.

Imprecações guturais ululavam de sua garganta, da qual eclodiam como sussurros inaudíveis frente a borrasca e seu som ensurdecedor.

Não haveria como cotejar seus bramidos ininteligíveis com qualquer linguagem concatenada harmoniosamente, numa fonética humana, para ser exato e sem usar eufemismo, pois aquele ser ainda não era humano, não obstante o estar na alheta, quase tocando o calcanhar do gênero humano, na corrida da evolução. Ele praguejava, impropérios sem conta, inferindo isso, sem incorrer em erros, pela suas efusivas manifestações gestuais, seus rictos burlescos, como que a dizer: - Aplaca-te, oh natureza! Eu te subjugo, eu te suplanto, pelo fato único de ser eu um excelso representante da espécie dominante nesse orbe. Sujeita a mim oh Natureza, estás, portanto! Acalma-te, te ordeno!

Como a Natureza não aquiescesse, não aceitasse ser submetida aos seus imperiosos assomos blasonais, sem efetiva e peremptória outorga, o mesmo, para corroborar seu prestígio, sai do seu refúgio, lança em riste, visto que era um destemido caçador, naquelas prístinas eras, e afronta, arrostando a tempestade, que impávida, esperava o afrontamento, desdenhosamente.

Ele bradou, enfezado, num grunhido estentoroso, quase a dilacerar suas entranhas, porém sem arrefecer um átimo a fúria estrepitosa da Natureza.

Naqueles olvidados tempos o proto-homem deambulava pelo Planeta, porém um lampejo provecto, uma incipiente noção do seu peculiar estado, não obstante ser ainda uma criatura frágil, ínfima, até, ante forças ingentes, que poderiam esfacelá-lo, inopinadamente, lhe acorria, como laivos de esperança ante as atribulações, as adversidades insopitáveis.

O proto-homem ainda era um autóctone, naquelas priscas eras, grupos isolados coexistindo sem que se cogitasse da existência um do outro, sem que se aventurem a desbravar outras plagas.

Naqueles tempos primordiais os ancestrais do homem eram acometidos de um medo, medo seria eufemismo, de um temor mórbido das tempestades, dos raios, dos trovões, da fúria intempestiva da Natureza, manifestada nesse seu comportamento, que longe de ser esporádico, ainda era inusitado, pela incompreensão do fenômeno, suscitando em suas mentes, ainda embebida na nescidade, não abarcando uma visão mais ampla do contexto no qual estava inserido, parcas e difusas ideias, que mais atemorizavam do que elucidavam, pois eram como fantasmas, sem foma definida, a flanarem na escuridão de seus incipientes pensamentos, ainda não concatenando bem essas ideias, o que, com o tempo o homem, seu descendente, chamaria de lógica. Isso viria no póstero. Esse entendimento o homem haveria de ter – quem compreende não teme, quem teme não compreende e quem compreende respeita.

Essa criatura que deambulava pelo orbe , naqueles tempos incertos, não era o Neandertal ou o Cro-magnon e sim era aquele que fora chamado de o elo perdido, o arquétipo do homem atual, que por sua vez é o molde para o supra-humano, que já habita em outros orbes, em outras esferas siderais. Mas isso é outra história, se imiscuiremos em outra história.

Mas já naqueles tempos haviam as ideias e essas pululavam na atmosfera do Planeta, adejando como ondas a vogarem nos espaços circunscritos da gravidade terráquea. Ideias que, por si só, continham os germens que coadunados suscitariam, fomentariam o pensamento criador no homem, dando a inspiração para a realização de tudo o que pudesse o mesmo aventar, pensar, sugerir, cogitar. A inteligência adviria disso, do homem estar predisposto, pronto, adaptado psico e fisicamente, para haurir essas ideias do ar, como ele sorve o oxigênio para respirar, ele sorve as ideias, como inspiração, conforme sua receptibilidade, e as processa em seu pensamento e o resultado desse processo, dessa concatenação de ideias é a ilação, a conclusão, depois de uma ponderação filosófica, que chamamos de inteligência.

A inteligência aflorava, ainda acanhada, em alguns indivíduos, como lampejos, laivos, fragmentos desconexos de ideias fugazes que eram captadas pelos seus pensamentos, ainda toscos, incipientes, mas esses indivíduos possuíam um receptor mais sensível que o seus coetâneos, que alguns chamariam de terceiro olho, ou visão translúcida. Esse que agora afrontava a tempestade era um desses indivíduos, que ao longo das eras surgiriam, como limítrofes humanas entre um estado hominídeo inferior para um estado hominídeo superior. Esses indivíduos não aceitavam, alguns de forma instintiva, caso esse, outros conscientemente, o que a contemporaneidade aceitava sem questionar. Eles adentrariam numa sala escura para mostrar aos temerosos de que não haveria nenhum monstro habitando nas trevas de seus receios, mas sim que as trevas se dissiparão, a princípio em penumbra, depois seria desvelada, mostrando que o que haveria com a luz também haveria com as trevas. Somente que as trevas ocultavam o que a luz mostrava, mas as trevas não criavam nada além do que já existia com a luz.

Naquele dia , em especial, não havia prenúncio de tempestade. O céu não estava obumbrado, pelo contrário, límpido, tirante à aprazibilidade ou ao que se consideraria agradável naqueles tempos, porquanto o intrépido guerreiro, juntamente com seu grupo de caça, deixou o bando para se aventurar na caçada, aproveitando o dia.

Ele era um diferente na sua tribo, quase que um alijado do convívio com os seus iguais, pelo fato de os demais estranharem suas esquisitices, mas, não obstante, ele relevava essa postura de distanciamento por parte dos seus para consigo, como algo de somenos importância ante a luz que, ainda que bruxuleante, vacilante, principiava a acender-se em seu ser, perpassando, incidindo e se imiscuindo em seu cérebro, para alimentar seu pensamento, esfomeado de elucidações. Vezes sem conta outros o surpreendiam em esgares, em rictos, numa contração estranha dos lábios, num mostrar incomum dos dentes, quando esse, ao relento, ao estelífero céu, em noites brandas, olhava, extasiado, estupefato, o céu e seu esplendor negrumoso. Ele, nesses momentos, estava a sorrir, algo incomum, inusitado, para aqueles seres, afeitos à brutezas, a carrancunhas. Quando ele sorria sua face se irradiava e ele, não que se alindasse, mas tornava-se menos bestial e mais humano. Ele contemplava, embevecido, o céu – o que se passava em sua primitiva mente, não se sabia – enquanto que os demais se recolhiam, aos primeiros palpitares da noite, às suas cavernas, temerosos das feras que espreitavam na calada, em surdina. Para ele esse temor era suplantado mil vezes pelo deleite, pela alegria, que suscitava ao seu espírito, o contemplar as estrelas no véu escuro da noctíluca dama.

Ele, já naqueles tempos olvidados, já não encarava o mundo como seu adversário, como seu oponente. Ele sabia, instintivamente, que o mundo não o é. Ele não se debelava contra ele. Ele concluía, ainda que de forma instintiva, que o mundo apenas coadunava as tendências, as energias de vários espíritos, cada qual com o seu farnel, com sua bagagem, com suas consubstancias de luz e de sombras, hauridas em sucessivas idas e vindas, transpondo as barreiras de dois planos existenciais. É inconcebível lutar contra bilhões de consciências, quando sequer conhecemos, amiúde, as tramas existenciais, os refolhos conscienciais, de uma só dentre elas. E quando julgamos conhecer, tão pouco tocamo-lhe a superfície do ser. Não conhecemos, às vezes, nem a nós mesmos, não nos reconhecemos. Surpreendemo-nos em ações e palavras que proferimos, que logo mais adiante, reprochamos, em auto-censura. Conhece-te a ti mesmo. Em ti encontrarás, não o teu inimigo, porém o campo de batalha, no qual deves travar a luta, contigo mesmo, para tua própria evolução, rechaçando, alijando, com golpes precisos, para bem longe de ti aquilo que destoa a beleza e a virtude, extirpando, extinguindo, por completo, em fulminante estocada, essas tendências deletérias, para que suas energias não alcancem outros irmãos em batalha, em suas próprias batalhas. Ele estava em paz consigo mesmo, uma paz que poucos naqueles tempos, a tinham.

Quando ele acompanhava os seus nas caçadas não era pela caça em si, mas para conhecer novas plagas, novos recantos, para saciar seu espírito na fonte inexaurível da experiência, no desvelo de novas descobertas, pelas terras virgens dessas glebas, que ele intuía em seu espírito, serem exígua porção de terra cotejada à vastidão de outros torrões que pululavam pelo orbe. Indubitavelmente ele era diferente dos seus, um extemporâneo.

Naquele dia, enquanto os outros caçavam, ele se distraía em fazer suas descobertas e em tal estado de espírito ele estava, totalmente absorto, ensimesmado, enlevado pelas descobertas – pedrinhas diferentes, formatos e cores matizadas, uma terra mais vermelha, uma mais marrom, uma flor exótica, uma planta nova, um olor antes não sentido – nem percebendo que se distanciara do grupo, perdendo-o de vista.

Então, de supetão, inopinadamente, adveio a borrasca. Os outros, aos primeiros sinais já debandaram para a tribo, em tropelia desembestada, praguejando aos quatro ventos, em uníssona algaravia.

Ele não observou os sinais prenunciadores, pelo fato de estar acometido pela desatenção que recai sobre os espíritos que de tão absortos em seus labores intelectuais não percebem o que ocorre ao seu redor.

Quando a tempestade sobreveio, com suas rajadas de vento, seus estrondos estrepitosamente aterradores, ele não sentiu medo, mas respeito. E do respeito que se dispensa a um oponente digno passou, de uma admiração comedida para um encantamento suscitado pelo poder daquela força ingente, daqueles raios intermitentes, daquele estrondo, tonitruante voz de um descomunal gigante e seu sopro inclemente, passando desse respeito, dessa admiração, para o desejo, inerente a sua natureza, de sobrepujar esse inimigo e lhe mostrar que lhe era superior, pois sobrepujando um ente valoroso seu valor seria exultado sobremaneira.

Então ele afrontou o monstro. Com a lança em riste a lhe desafiar foi ao seu encontro.

Um repentino trovão, um corisco, um clarão, diferente dos outros, iluminou as plúmbeas nuvens, desenhando um rosto de feições enérgicas.

Aquele que viria a ser um homem, estarrecido ante tal visão, prostrou-se, resignado diante da derrocada, genuflexo, sobre o lodoso terreno e balbuciou algo ininteligível, mas como a exclamar, esbaforido:

- Deusssss!

E tombou em terra, estatelado, desfalecido, porém com um sorriso em sua face.

Valdecir de Oliveira Anselmo
Enviado por Valdecir de Oliveira Anselmo em 03/12/2010
Código do texto: T2651397
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