Pronta Para Matar
Nas noites de Lua cheia ela ficava um pouco inquieta por causa da mania que eu tinha adquirido de ficar com metade do corpo pra fora da janela por horas e mais horas bebendo gin-tônica e queimando um baseadinho e conversando. Com a Lua, quero dizer. Eu me sentia um pouco incomodado achando que era ciuminho de mulher, encanação besta, mas sempre no dia seguinte ficava um pouco apreensivo por conta do meu novo e excêntrico hábito e, claro, enternecido pela preocupação que ela tinha com o meu bem-estar. Não tem nada de anormal sentar na janela, ou tem? No meu caso tinha, pois era a janela do vigésimo terceiro andar e o que me apararia caso eu caísse era nada mais nada menos do que o chão de pedra portuguesa dezenas de metros abaixo. De qualquer forma, ela conseguia controlar bem a apreensão que dizia sentir, enchia seu próprio copo com gin e gelo, enrolava seu cigarrinho e ficava no sofá esperando eu cair. Enquanto isso não acontecia, eu ficava contemplando a lua, jogando cantadas de pedreiro nela, cobiçando-a, prometendo um planeta menos habitado e decadente pra ela ser satélite, essas coisas que homem apaixonado promete e nunca cumpre. E também conversava um pouco com ela, que já havia caído nessa conversa mole e dividia as contas comigo.
- Tenho medo - ela falava.
- Do quê, minha linda?
- Você com essa mania de Stephen Rojack aí, de ficar se pendurando na janela...
- Ah - eu suspirava e olhava para o meu lado direito, admirando os carros lá embaixo - pega nada.
Ficávamos em silêncio. Ela deitada no sofá, de costas pra mim, trocando os canais da televisão que não tinha saída de som, soprando fumaça e tossindo. Éramos apreciadores do silêncio. Éramos sim.
- Sabe - ela retomava a conversa - você poderia segurar o copo na mão esquerda, pelo menos.
- Por quê?
- O peso dele na mão direita pode facilitar a sua queda.
- Verdade.
Então eu passava o copo pra mão esquerda, olhava pra Lua e me sentia um pouco melhor. Aquela coisa redonda, cinza, cheia de cicatrizes, sem oxigênio, "parada" lá, com seu visual de devastação espacial, abandonada, com uma suposta bandeirinha americana fincada em seu solo, atraindo o mar, inspirando poetas e aspirando suicidas de prédios mofados em centros velhos de cidades grandes.
- Rafa?
- Sim!?
- O que a Lua fala pra você?
- Qual é, Bruna? É segredo meu e dela.
- Você devia procurar um psicólogo, meu lindo!
- Escrever é mais barato, minha linda!
- Então, tô ficando preocupada... Seus últimos oitenta textos tem suicídio no meio, você fica aí com metade da vida pra fora da janela, não quer ver seus amigos, não quer fazer mais porra nenhuma da vida.
- E qual é o problema nisso tudo? Tão natural! Tem tanta gente aí com a mesma propensão que a minha de não querer nada da vida e são felizes, assim como eu, oras!
- Bom, é verdade... Às vezes te acho mais feliz do que eu, que me considero "normal".
- Tá vendo!?
- Tenho ciúmes da Lua... Vamos dormir!?
- Não quero, agora. Logo mais eu vou...
- Tá, vou indo lá. Te espero.
- Beleza.
Aí ela joga as pernas brancas brancas e grossas grossas pra fora do sofá e levanta, vestindo a minha camisa do Dinosaur Jr., usando aquela calcinha com estampa de onça que me enche os olhos de alegria e me lança um sorriso vermelho vermelho de tanto batom. Apaga a ponta no cinzeiro, toma o último gole e se espreguiça. A camiseta levanta e visualizo sua bunda, tão linda, e a observo ir em direção ao quarto. Ao nosso quarto.
- Ela é louca, tem ciúmes de você - eu falo pra Lua e caio na risada, minha última risada, pois Bruna voltou do quarto apontando um calibre 38 carregado pro meu peito e disparou antes que eu pedisse desculpas por traí-la assim, tão descaradamente, com a Lua. Senti um frio na barriga e uma ardência no peito enquanto tentava alcançar a Lua com as mãos e ela ficava mais distante e eu ficava mais próximo do chão. Não me importei muito, há tempos sabia que estava pronto pra morrer. Tão pronto e ensimesmado que não percebi que Bruna estava pronta.
Pronta para matar.