O manuscrito
Ao chegar em casa Miranda ajeitou suas coisas, as chaves, seus óculos, relógio e carteira, deixando-os metodicamente cada um em seu preciso lugar como sempre costumava fazer. Tirou os sapatos e calçou seus chinelos japoneses de palha. Checou as correspondências, não havia nenhuma. Na secretária eletrônica uma única mensagem. As pessoas raramente deixavam mensagens, as poucas ligações que recebia nunca eram assim tão importantes ou urgentes. Mas naquele dia a secretária fora acionada. Ao apertar o botão que reproduz a gravação ele ouviu uma voz que, embora não a ouvisse há muitos anos, reconheceu-a de imediato. Uma voz serena e levemente rouca ecoou pelo escritório de sua casa:
“Confessio est probatio omnibus melior.”
A mensagem era isso e mais nada. Sem identificação, saudações, explicações ou despedida. Repetiu a mensagem gravada mais uma vez, e outra, e mais outra - sem dúvida nenhuma a voz era de seu amigo Amâncio. Lembranças de sua juventude vieram à tona: o seminário, as incontáveis horas de meditação, as leituras e discussões sobre a bíblia. Sabia exatamente o significado daquela frase em latim mas não compreendia o que ela queria dizer, o que seu amigo queria dizer com ela. Como o identificador de chamadas não havia registrado o número de origem da ligação, preferiu aguardar e tentar contatar o amigo no dia seguinte. A última notícia que tivera dele era que estava morando em um mosteiro beneditino em Itapecerica da Serra.
Antes de ir para a cama, outras lembranças quase esquecidas de um passado distante começaram a voltar. Miranda recordou-se do caso do pássaro, curioso e extraordinário fato que ocorrera no seminário, dos murmúrios que corriam entre as bocas e ouvidos de todos. Amâncio, seu então amigo e protagonista do caso, evitava falar sobre o assunto. Sabia-se apenas o que diziam, versões aumentadas e distorcidas sobre o que de fato ocorrera. O que contavam era que, com o testemunho de pelo menos três pessoas, ao ver um pássaro morto e caído no chão Amâncio trouxe-o de volta à vida apenas com o toque de suas mãos, e o pássaro, tão logo voltando a encher os pequenos pulmões com ar, bateu as asas e voou. Se o pássaro estava realmente morto juravam as testemunhas que sim, que só podia estar morto, que não é da natureza de um pássaro deixar que os seres humanos se aproximem assim tão perto a ponto de tocá-lo. E o pássaro estava caído, deitado no chão, com as pernas para cima e as asas abertas e esparramadas em uma posição que sugeria a morte. A única explicação racional e que logo foi refutada, era que o pássaro estava apenas desmaiado ou catatônico e que, com o toque de Amâncio, despertou num susto e voou em disparada. Mas essa explicação era pouco plausível, afinal, nunca ouviram falar que um pássaro poderia desmaiar ou ficar catatônico. E infinitamente mais improvável que um pássaro catatônico, é certo, era um pássaro morto que voltava a viver. Mas naquele ambiente onde a fé era incitada e o entusiasmo religioso era naturalmente inflamado, foi muito mais fácil acreditar no extraordinário e milagroso do que em explicações racionais hipotéticas improváveis. O caso chegou a ser noticiado em um pequeno jornal local, destacando Amâncio e atribuindo-lhe uma certa imagem de santo.
No dia seguinte pela manhã, sem muitas dificuldades, Miranda descobriu o nome e o número do telefone do mosteiro e ligou. A voz do próprio Dalai Lama pareceu atender do outro lado da linha.
“Cela São Armando José, bom dia.”
“Bom dia, gostaria de falar com o Sr. Amâncio Cordeiro por favor”.
Houve uma pequena hesitação na voz.
“Quem gostaria de falar com ele?“
“Miranda Castilho, um amigo de longa data.”
“Senhor, lamento informar mas infelizmente ele não vive mais neste mosteiro”.
Miranda sentiu um leve desânimo.
“Entendo. Seria indiscrição minha perguntar onde ele foi morar?”
“Claro que não, irmão”, a voz do monge ficou mais polida e suave. “Amâncio agora está em paz, foi para junto do Senhor. Não vive mais aqui neste mosteiro e em nenhum outro. Carregava consigo uma doença já há alguns meses que se agravou e desenganou os médicos. Faleceu na noite passada.”
Miranda sentiu-se consternado e perplexo, por alguns poucos segundos não soube o que dizer.
“Sinto ouvir isso. Amâncio era uma pessoa santa, foi uma grande perda.”
“Sim, uma grande perda para todos nós. Algumas almas parecem não pertencer a este mundo, Deus as mantém aqui por algum tempo, apenas o suficiente, para logo as levar de volta de onde vieram. E Amâncio era a criatura mais dócil e amorosa que este mosteiro já conheceu, quando faleceu...” O monge subitamente fez uma pausa como se lembrasse de algo importante. “Como o senhor disse mesmo que se chamava?”, perguntou o monge.
“Miranda Castilho”, respondeu.
“Aguarde um minuto senhor Miranda, por favor”, disse isso e largou o telefone.
Miranda aguardou. Quase um minuto depois a voz do outro lado da linha voltou.
“Senhor Miranda, foi realmente um desígnio divino o senhor ter ligado. O irmão Amâncio deixou algo para o senhor. É uma pequena caixa com seu nome, não há endereço, qualquer instrução ou carta, apenas seu nome. Pensamos que a encomenda nunca seria entregue, que o senhor talvez nunca aparecesse. Mas vejo que o senhor existe e coincidentemente já nos contata. Por favor, venha retirar o que o nosso saudoso irmão lhe deixou. Serás bem-vindo para visitar o nosso humilde mosteiro.”
“Agradeço o aviso e o gentil convite, irei o mais breve possível. Novamente, lamento pelo querido Amâncio.” Miranda se despediu sem mencionar a misteriosa ligação que recebera na noite anterior.
Já no primeiro final de semana após a conversa com o monge, Miranda decidiu ir até o mosteiro. Eram apenas algumas poucas horas de estrada. Durante o trajeto, enquanto dirigia, ele não pôde deixar de pensar em Amâncio e na amizade que cultivaram naqueles anos que passaram no seminário. O carinho recíproco que sentiam e o invisível laço de confiança que ataram as suas almas para sempre, fizeram criar uma amizade genuinamente rara entre eles, como se fossem almas gêmeas enredadas por um amor verdadeiro e fraterno. Mas quis o destino que seguissem caminhos distintos. Miranda sempre soube que a sua vocação não era para a religião, embora tivesse estudado as escrituras com tanta devoção e fervor quanto Amâncio. Como se sua fé não fosse suficiente para o sacerdócio, optou pela vida mundana, trabalho burocrático, salário, contas, casamento e divórcio. Já para Amâncio a religião era verdadeiro remanso, a castidade e todos os hábitos e rituais da vida monástica eram naturais e até necessários para ele. Emanava de Amâncio um certo ar celestial, uma pureza angelical e tão singela que as pessoas podiam senti-las apenas com a sua silenciosa presença. E depois de todos esses anos, essa enigmática ligação. Uma caixa deixada para ele.
A visita ao mosteiro foi breve e formal. Conversou apenas com o amável monge que falara com ele ao telefone aceitando tomar um xícara de chá verde enquanto recordavam melancolicamente algumas reminiscências da exemplar vida de Amâncio. Prestou as devidas condolências ao finado amigo e despediu-se respeitosamente levando consigo a caixa. Não a abriu até chegar em casa.
Ao chegar em casa Miranda ajeitou as suas coisas, as chaves, seus óculos, relógio e carteira, deixando-os metodicamente cada um em seu preciso lugar como sempre costumava fazer. O mesmo ritual. Tirou os sapatos e calçou seus chinelos japoneses de palha. Checou as correspondências, não havia nenhuma. Na secretária eletrônica, nada. Levou a caixa até o escritório, calmamente sentou-se diante da escrivaninha e a abriu. Dentro dela, encontrou um velho caderno de couro com muitas de suas amareladas folhas escritas à mão. Era um manuscrito que Amâncio escrevera onde lia-se o título logo no cabeçalho da primeira página: “Confessio est probatio omnibus melior.” O que impressionava não era apenas a estética perfeita da caligrafia, mas o fato de não conter uma única correção ou rasura - foi como se Amâncio tivesse escrito aquelas páginas em um só fôlego.
E, em um longo e único fôlego, Miranda leu o manuscrito. A decepção que sentiu não chegou a surpreendê-lo, tampouco o alegrou. Sentiu apenas uma amarga tristeza e pesar. Amâncio descreveu em pormenores naquele manuscrito tudo o que de fato ocorrera no caso do pássaro. De como pesquisou e finalmente conseguiu encontrar a droga que deixaria o pássaro em estado de letargia profundo. De como ensaiou exaustivamente, precisando capturar e sacrificar alguns pássaros antes de empreender o falso milagre. Arrumar para que a encenação tivesse testemunhas oculares foi fácil, difícil mesmo, relatou ele, foi calcular a dose certa e o respectivo tempo de efeito da droga no pássaro. Com aquelas palavras carregadas de sincero arrependimento, Amâncio confessava que havia friamente arquitetado e simulado o milagre da ressuscitação do pássaro - tudo não passou de um vergonhoso embuste. Amâncio foi enfático em afirmar como sentiu-se profundamente arrependido e que, se pudesse voltar atrás mil vezes, mil vezes teria feito diferente. O que a princípio pareceu ser apenas um inocente trote juvenil de mau gosto, se tornou em uma mentira que teve que carregar pelo resto da vida.
Descobrir que seu confiável amigo foi capaz de tamanha farsa o decepcionou profundamente mas, de certa forma, também o aliviou. Sentiu-se livre de uma mentira que não sabia ser mentira até aquele momento. Mesmo que ele tenha traído a sua confiança planejando secretamente aquela ardilosa impostura não lhe revelando nada, e mesmo depois de todos aqueles anos, era em Miranda que ele ainda confiava e queria se confessar, uma confissão que nunca teve coragem de fazer em vida. Uma confissão póstuma. Foi a Miranda, seu amigo-irmão, que Amâncio confiou o manuscrito. E foi Miranda que o absolveu. Ele pôde então compreender como aquela trama juvenil e aparentemente inocente torturou a sua alma por todos aqueles anos. E agora, depois de morto, esperava que seu espírito estivesse enfim livre e expiado de culpa. Nullum crimen sine culpa.
Miranda ficou lá sentado em seu escritório por um longo tempo. Pensou sobre seu passado religioso e a fé que ainda carregava dentro de si. E pensou a alma de Amâncio como o pássaro letárgico caído ao chão, semi-morto, mas que agora, com o toque milagroso da confissão e absolvição, finalmente, poderia voar.
Agosto de 2010
Fonte da imagem
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Este texto faz parte do exercício criativo "Eu Confesso".
Saiba mais, conheça os outros textos:
http://encantodasletras.50webs.com/euconfesso.htm
Ao chegar em casa Miranda ajeitou suas coisas, as chaves, seus óculos, relógio e carteira, deixando-os metodicamente cada um em seu preciso lugar como sempre costumava fazer. Tirou os sapatos e calçou seus chinelos japoneses de palha. Checou as correspondências, não havia nenhuma. Na secretária eletrônica uma única mensagem. As pessoas raramente deixavam mensagens, as poucas ligações que recebia nunca eram assim tão importantes ou urgentes. Mas naquele dia a secretária fora acionada. Ao apertar o botão que reproduz a gravação ele ouviu uma voz que, embora não a ouvisse há muitos anos, reconheceu-a de imediato. Uma voz serena e levemente rouca ecoou pelo escritório de sua casa:
“Confessio est probatio omnibus melior.”
A mensagem era isso e mais nada. Sem identificação, saudações, explicações ou despedida. Repetiu a mensagem gravada mais uma vez, e outra, e mais outra - sem dúvida nenhuma a voz era de seu amigo Amâncio. Lembranças de sua juventude vieram à tona: o seminário, as incontáveis horas de meditação, as leituras e discussões sobre a bíblia. Sabia exatamente o significado daquela frase em latim mas não compreendia o que ela queria dizer, o que seu amigo queria dizer com ela. Como o identificador de chamadas não havia registrado o número de origem da ligação, preferiu aguardar e tentar contatar o amigo no dia seguinte. A última notícia que tivera dele era que estava morando em um mosteiro beneditino em Itapecerica da Serra.
Antes de ir para a cama, outras lembranças quase esquecidas de um passado distante começaram a voltar. Miranda recordou-se do caso do pássaro, curioso e extraordinário fato que ocorrera no seminário, dos murmúrios que corriam entre as bocas e ouvidos de todos. Amâncio, seu então amigo e protagonista do caso, evitava falar sobre o assunto. Sabia-se apenas o que diziam, versões aumentadas e distorcidas sobre o que de fato ocorrera. O que contavam era que, com o testemunho de pelo menos três pessoas, ao ver um pássaro morto e caído no chão Amâncio trouxe-o de volta à vida apenas com o toque de suas mãos, e o pássaro, tão logo voltando a encher os pequenos pulmões com ar, bateu as asas e voou. Se o pássaro estava realmente morto juravam as testemunhas que sim, que só podia estar morto, que não é da natureza de um pássaro deixar que os seres humanos se aproximem assim tão perto a ponto de tocá-lo. E o pássaro estava caído, deitado no chão, com as pernas para cima e as asas abertas e esparramadas em uma posição que sugeria a morte. A única explicação racional e que logo foi refutada, era que o pássaro estava apenas desmaiado ou catatônico e que, com o toque de Amâncio, despertou num susto e voou em disparada. Mas essa explicação era pouco plausível, afinal, nunca ouviram falar que um pássaro poderia desmaiar ou ficar catatônico. E infinitamente mais improvável que um pássaro catatônico, é certo, era um pássaro morto que voltava a viver. Mas naquele ambiente onde a fé era incitada e o entusiasmo religioso era naturalmente inflamado, foi muito mais fácil acreditar no extraordinário e milagroso do que em explicações racionais hipotéticas improváveis. O caso chegou a ser noticiado em um pequeno jornal local, destacando Amâncio e atribuindo-lhe uma certa imagem de santo.
No dia seguinte pela manhã, sem muitas dificuldades, Miranda descobriu o nome e o número do telefone do mosteiro e ligou. A voz do próprio Dalai Lama pareceu atender do outro lado da linha.
“Cela São Armando José, bom dia.”
“Bom dia, gostaria de falar com o Sr. Amâncio Cordeiro por favor”.
Houve uma pequena hesitação na voz.
“Quem gostaria de falar com ele?“
“Miranda Castilho, um amigo de longa data.”
“Senhor, lamento informar mas infelizmente ele não vive mais neste mosteiro”.
Miranda sentiu um leve desânimo.
“Entendo. Seria indiscrição minha perguntar onde ele foi morar?”
“Claro que não, irmão”, a voz do monge ficou mais polida e suave. “Amâncio agora está em paz, foi para junto do Senhor. Não vive mais aqui neste mosteiro e em nenhum outro. Carregava consigo uma doença já há alguns meses que se agravou e desenganou os médicos. Faleceu na noite passada.”
Miranda sentiu-se consternado e perplexo, por alguns poucos segundos não soube o que dizer.
“Sinto ouvir isso. Amâncio era uma pessoa santa, foi uma grande perda.”
“Sim, uma grande perda para todos nós. Algumas almas parecem não pertencer a este mundo, Deus as mantém aqui por algum tempo, apenas o suficiente, para logo as levar de volta de onde vieram. E Amâncio era a criatura mais dócil e amorosa que este mosteiro já conheceu, quando faleceu...” O monge subitamente fez uma pausa como se lembrasse de algo importante. “Como o senhor disse mesmo que se chamava?”, perguntou o monge.
“Miranda Castilho”, respondeu.
“Aguarde um minuto senhor Miranda, por favor”, disse isso e largou o telefone.
Miranda aguardou. Quase um minuto depois a voz do outro lado da linha voltou.
“Senhor Miranda, foi realmente um desígnio divino o senhor ter ligado. O irmão Amâncio deixou algo para o senhor. É uma pequena caixa com seu nome, não há endereço, qualquer instrução ou carta, apenas seu nome. Pensamos que a encomenda nunca seria entregue, que o senhor talvez nunca aparecesse. Mas vejo que o senhor existe e coincidentemente já nos contata. Por favor, venha retirar o que o nosso saudoso irmão lhe deixou. Serás bem-vindo para visitar o nosso humilde mosteiro.”
“Agradeço o aviso e o gentil convite, irei o mais breve possível. Novamente, lamento pelo querido Amâncio.” Miranda se despediu sem mencionar a misteriosa ligação que recebera na noite anterior.
Já no primeiro final de semana após a conversa com o monge, Miranda decidiu ir até o mosteiro. Eram apenas algumas poucas horas de estrada. Durante o trajeto, enquanto dirigia, ele não pôde deixar de pensar em Amâncio e na amizade que cultivaram naqueles anos que passaram no seminário. O carinho recíproco que sentiam e o invisível laço de confiança que ataram as suas almas para sempre, fizeram criar uma amizade genuinamente rara entre eles, como se fossem almas gêmeas enredadas por um amor verdadeiro e fraterno. Mas quis o destino que seguissem caminhos distintos. Miranda sempre soube que a sua vocação não era para a religião, embora tivesse estudado as escrituras com tanta devoção e fervor quanto Amâncio. Como se sua fé não fosse suficiente para o sacerdócio, optou pela vida mundana, trabalho burocrático, salário, contas, casamento e divórcio. Já para Amâncio a religião era verdadeiro remanso, a castidade e todos os hábitos e rituais da vida monástica eram naturais e até necessários para ele. Emanava de Amâncio um certo ar celestial, uma pureza angelical e tão singela que as pessoas podiam senti-las apenas com a sua silenciosa presença. E depois de todos esses anos, essa enigmática ligação. Uma caixa deixada para ele.
A visita ao mosteiro foi breve e formal. Conversou apenas com o amável monge que falara com ele ao telefone aceitando tomar um xícara de chá verde enquanto recordavam melancolicamente algumas reminiscências da exemplar vida de Amâncio. Prestou as devidas condolências ao finado amigo e despediu-se respeitosamente levando consigo a caixa. Não a abriu até chegar em casa.
Ao chegar em casa Miranda ajeitou as suas coisas, as chaves, seus óculos, relógio e carteira, deixando-os metodicamente cada um em seu preciso lugar como sempre costumava fazer. O mesmo ritual. Tirou os sapatos e calçou seus chinelos japoneses de palha. Checou as correspondências, não havia nenhuma. Na secretária eletrônica, nada. Levou a caixa até o escritório, calmamente sentou-se diante da escrivaninha e a abriu. Dentro dela, encontrou um velho caderno de couro com muitas de suas amareladas folhas escritas à mão. Era um manuscrito que Amâncio escrevera onde lia-se o título logo no cabeçalho da primeira página: “Confessio est probatio omnibus melior.” O que impressionava não era apenas a estética perfeita da caligrafia, mas o fato de não conter uma única correção ou rasura - foi como se Amâncio tivesse escrito aquelas páginas em um só fôlego.
E, em um longo e único fôlego, Miranda leu o manuscrito. A decepção que sentiu não chegou a surpreendê-lo, tampouco o alegrou. Sentiu apenas uma amarga tristeza e pesar. Amâncio descreveu em pormenores naquele manuscrito tudo o que de fato ocorrera no caso do pássaro. De como pesquisou e finalmente conseguiu encontrar a droga que deixaria o pássaro em estado de letargia profundo. De como ensaiou exaustivamente, precisando capturar e sacrificar alguns pássaros antes de empreender o falso milagre. Arrumar para que a encenação tivesse testemunhas oculares foi fácil, difícil mesmo, relatou ele, foi calcular a dose certa e o respectivo tempo de efeito da droga no pássaro. Com aquelas palavras carregadas de sincero arrependimento, Amâncio confessava que havia friamente arquitetado e simulado o milagre da ressuscitação do pássaro - tudo não passou de um vergonhoso embuste. Amâncio foi enfático em afirmar como sentiu-se profundamente arrependido e que, se pudesse voltar atrás mil vezes, mil vezes teria feito diferente. O que a princípio pareceu ser apenas um inocente trote juvenil de mau gosto, se tornou em uma mentira que teve que carregar pelo resto da vida.
Descobrir que seu confiável amigo foi capaz de tamanha farsa o decepcionou profundamente mas, de certa forma, também o aliviou. Sentiu-se livre de uma mentira que não sabia ser mentira até aquele momento. Mesmo que ele tenha traído a sua confiança planejando secretamente aquela ardilosa impostura não lhe revelando nada, e mesmo depois de todos aqueles anos, era em Miranda que ele ainda confiava e queria se confessar, uma confissão que nunca teve coragem de fazer em vida. Uma confissão póstuma. Foi a Miranda, seu amigo-irmão, que Amâncio confiou o manuscrito. E foi Miranda que o absolveu. Ele pôde então compreender como aquela trama juvenil e aparentemente inocente torturou a sua alma por todos aqueles anos. E agora, depois de morto, esperava que seu espírito estivesse enfim livre e expiado de culpa. Nullum crimen sine culpa.
Miranda ficou lá sentado em seu escritório por um longo tempo. Pensou sobre seu passado religioso e a fé que ainda carregava dentro de si. E pensou a alma de Amâncio como o pássaro letárgico caído ao chão, semi-morto, mas que agora, com o toque milagroso da confissão e absolvição, finalmente, poderia voar.
Agosto de 2010
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