Uma noite no forró

Sentados em uma mesa de bar dois homens bem comuns conversavam animadamente sem notarem muito o movimento intenso que acontecia em volta, algo incomum numa sexta do bar da Kelly. Por isso eles conseguiam manter um diálogo tão rico. Os dois eram amigos a cerca de três meses, mas parecia uma eternidade, a conversa fluía de forma solta e leve. Dialogavam sobre tudo sem nunca esgotarem seu arsenal de idéias. Suas críticas tecidas aos óbvios era algo impressionante.

O mais velho deles, um homem de seus vinte e tantos anos foi quem conheceu o mais jovem, de vinte e poucos anos. Sua feição negava a idade real, muito bem conservado, apesar da avidez com que fumava. Alisson, o mais novo, não entendia como Renan fumava tanto sem tossir ou reclamar da garganta, mas era assim, entre essa e outras coisas os mistérios acerca de Renan. Já Alisson não fumava, só acompanhava o amigo na cerveja. Nessa noite em especial Renan pretendia contar seus segredos ao outro.

Já estava fazendo isso quando às dez horas da noite bateram na porta do tempo. A noite pegava fogo ali naquele lugar de encontro de universitários, todos dançavam alterados ao som de Dominguinhos. Antes do próximo trio de forrozeiros entrar eles deram um uma última olhada no salão.

- Sabe Alisson – começou Renan – eu acredito que você tem maturidade para entender o que eu vou te falar agora, mas antes eu quero saber de o que acha dos góticos, daqueles que se vestem de preto e ficam curtindo uma puta depressão nas “sombras da dor” – falou fazendo sinal de aspas com as mãos e sorrindo ao fim da pergunta. Soltando fumaça para cima, olhando o rapaz nos olhos.

- Cara eu acho uma perca de tempo sem tamanho, ficar naquele bode eterno. Tem motivo não e mesmo que tenha origem em abuso sexual, brigas familiares, aquilo ali não resolve não, ao invés de estar numa festa boa dessa aqui, cheia de mulher gata e som alto com diversão pra qualquer lado que se olhe. Eles ficam na porra de um bar deprimente escutando música depressiva pensando em cortar os pulsos. Não sei por que não fazem um suicido coletivo e poupam a gente do trabalho de escutar aquela ladainha de “Ai meu Deus que vida de merda a minha, não tenho ninguém, fico me sentindo solitário e mal, por isso eu curto minha solidão junto com esse monte de maluco que tá aqui comigo”.

- Era o que eu imaginava – completou o mais velho – a pergunta agora é mais cabulosa e exige um pouco de imaginação da sua parte. Certo? – o amigo confirmou que sim com a cabeça – você acredita que vampiros e outras criaturas fantásticas existem? – tragou olhando com cautela.

Alisson soltou uma risada bem escrota, rindo pra cima e chamando atenção da mesa ao lado, quase derrubando o copo de cerveja, pela metade, em cima da mesa.

- Me desculpa cara é que eu não resisti. Porque você perguntou o que eu achava dos góticos e logo depois se eu acredito em vampiros, uma coisa tá ligada a outra. A coisa da depressão, do preto, das ações góticas e da solidão, tudo isso tá intimamente ligado ao vampirismo.

- Aí que tu se engana – completou Pedro – vampiros odeiam aqueles tipos depressivos que vestem preto e ficam por aí cantando uma depressão de merda, pedindo a chegada de um imortal para amaldiçoarem a vida já fodida deles. Porra será que eles não percebem que ser vampiro é um dom? Uma coisa maravilhosa? São patéticos e ajudam a deixar nossa imagem mais deplorável e ridícula do que já está! – terminou a frase olhando para o amigo de mesa.

Alisson deu um recuo, percebeu o olhar fantasmagórico no amigo, viu um leve brilho etéreo. Sabia a verdade melhor do qualquer outra palavra poderia dizer, sabia de tudo o que se passava ali. Iria morrer nos braços daquele louco a sua frente. Mas não entendia, Renan não tinha nada a ver com a descrição clássica do vampiro, nunca o tinha visto com roupas pretas ou com qualquer dessas coisas góticas associadas a eles. Nem os assuntos eram os clichês, só tomavam cerveja ao invés de vinho fino como reza a lenda. Renan sempre estava vestido com cores alegres e ia para festas no Chevrolet Hall, ou para o carnaval noturno do Recife, estava sempre nas salas de reboco, pagode, axé, swingueira, nada de música clássica ou metal. Nada de depressão nem crise existencial em busca de um amor ou um dilema eterno com sua humanidade. Adora pessoas alegres, tanto que todo mundo que Renan o apresentou eram pessoas de bem com a vida! Não entendia nada do que se passava agora.

- Co...co...como pode ser? – titubeou Alisson.

- É isso que eu tô tentando te dizer desde o começo dessa noite, a imagem que as pessoas têm dos vampiros é o que nos ajuda a sobreviver, mas nos deixa muito insatisfeitos. Eu mesmo não tenho essa depressão maldita que todos acreditam que temos. Me dá um motivo pra ter? Diz um pelo menos. – desafiou ao jovem universitário.

O estudante pensou um pouco.

- Você é imortal e não pode ter uma companheira pelo resto da existência, isso te faz sofrer. Ou você tem um amor que se foi há tempos e tempos e sempre se lembra dela. Pode ser também a solidão pela solidão.

- Nada disso me afeta moleque, eu não tenho problemas com companheiras, qualquer coisa eu passo um tempo com uma vampira e o melhor é que podemos gastar o tempo que quisermos juntos, temos a eternidade. O bom mesmo é ser eterno moleque, ser eterno, - enfatizou – tu não sabe como isso é bom, não faz idéia. Ter força sobre humana, tomar sangue, conhecer gente pela eternidade, ver os costumes mudarem o tempo todo, adquirir todo o conhecimento já produzido. Cara ser vampiro é o que há, só não saímos fazendo vampiros a torto e a direita porque senão ficamos sem alimento saca?

O jovem riu.

- Não tem nada a ver com o que vejo nos filmes, isso tá parecendo mais uma história surreal.

- Aí que tá, a gente de certa forma preserva essa imagem errada que esses góticos pseudovampiros passam porque nos ajuda a viver tranquilamente entre vocês. Imagina se eu não pudesse estar aqui hoje, cara eu ia pirar, forró é bom demais, tem vida aqui, eu não quero ficar dentro de um mausoléu pegando poeira e sofrendo uma dor que eu nem tenho. Tu acha que ia ser proveitoso pra nós, vampiros, vestir preto, sobretudo, coturno e esse monte de roupa quente em Recife? Cara aqui é muito quente, essas roupas iam fazer a gente suar muito, ia tirar nosso sangue só no suor. Hahhhaahhaha – riu alto – Me deixa com essas roupas leves, muito mais condizente com a nossa realidade, não acha?

O garoto meneou a cabeça.

- Mas porque tu tá se revelando pra mim? Eu por acaso vou virar vampiro?

- Olha isso depende de tu, acredito que talento pra isso sobre em você que eu vi desde do primeiro lance, por isso me aproximei, já tava de olho tinha um tempinho, mas se você não quiser Alisson só te peço pra não abrir o bico pra ninguém porque aí tu sabe no que dá pra teu couro né? – nem precisou dizer muito.

- Mas porque eu? O que tenho de especial?

- Tu gosta de viver, tua vida é pra ser vivida e seria uma pena tu envelhecer e morrer, seria um puta desperdício. Por isso que te escolhi, ou acha que um daqueles que vivem em depressão eterna durariam muito tempo entre nós? Primeiro, assim que se tornassem vampiros iriam querer contar pra toda a merda de círculo social de “vampirismo” que eles cultivam, já ia embora o nosso segredo e uma penca de vampiros inexperientes e linguarudos se formariam, iam beber sangue e usar os poderes sobre-humanos de todo jeito possível chamando a atenção de todo mundo algo extremamente indesejável. Queremos apenas viver nossa imortalidade no meio de vocês sem se preocupar muito, e a outra coisa também, eles logo logo estariam entediados com a nova condição, fatalmente isso os levaria à morte certa. Desperdiçar sangue com quem não quer viver não é do nosso feitio, sangue é muito precioso pra tão pouco. Entende porque te escolhi?

- Se for dessa forma pode me dar uns dias pra pensar? – respondeu Alisson olhando bem firme nos olhos do amigo.

- Claro que sim! Fique a vontade, não vou te pressionar. – respondeu olhando por cima dos ombros do rapaz – Me dá duas músicas?

Como? Pensou o jovem, olhou pra trás e viu o motivo, uma bela mulher tinha convidado seu amigo pra dançar. Alisson consentiu, deixou o vampiro ir dançar um forró bem colado e bem gostoso com a gatinha lá do salão. Quando o vampiro voltou o jovem o perguntou com bastante respeito e firmeza.

- Quando a gente dá continuidade a isso? Não vejo a hora de poder fazer tudo o que um vampiro pode, quero ter tudo e ser imortal. Jovem pra sempre.

- Mais tarde no meu apartamento, a gente sai daqui pra lá e consuma a transformação física porque a mental já tá feita por completo meu filho.