CONTOS AVULSOS – ESSA ALMA NÃO VEM

Magro, quase um esqueleto ambulante , desfilava feito um nômade pelas ruas da cidade seu minguado corpo. Era negro, cor comum à miséria exposta nas vias públicas de um país que nunca se esforçou muito e verdadeiramente para compensar a vergonha e os efeitos da escravidão. Olhos permeados pelo vermelho e roxo , tons comuns a um organismo acostumado ao álcool destilado . Mal cheiroso e mal vestido , era o próprio retrato do habitante de um submundo que, provavelmente, jamais será entendido por quem vive fora dele.

Diz a história que em virtude das noites frias de inverno no sul do Brasil , ele buscava refúgio em capelas do cemitério onde encontrava abrigo para dormir e sobreviver ao rigor das madrugadas geladas. Devido a isso herdou o apelido de “Sepultura” e seu nome de batismo nunca foi lembrado. Tornou-se uma figura pública na cidade e recebia esmolas em pontos fixos, sobretudo no entorno da praça central e nas redondezas da estação rodoviária.

O horário predileto para a coleta das esmolas era o do meio dia, por dois motivos fundamentais. O primeiro, por se tratar do fragmento da jornada em que os efeitos do álcool eram bem menores e permitiam um resíduo de sobriedade que facilitava a comunicação. O segundo, e provavelmente o mais determinante , era o de que nesse ínterim as pessoas se dedicavam aos deslocamentos para o almoço nos restaurantes, serviços de banco, leituras na praça, entre outras atividades de recreação típicas do intervalo laboral.

Depois da coleta, como sói ocorrer com quase todos os moradores de rua, encontrava uma sombra ou um abrigo para beber sua quota diária de cachaça, geralmente carregada em garrafas enroladas em jornais velhos, um rudimentar mas eficiente meio de isolamento térmico. Uma vez atingidos os efeitos primários da embriaguês – alma em êxtase - saia o “Sepultura” a vagar pelos mais variados recantos da urbe.

Em certa ocasião, num bairro ao sul da cidade , havia sido inaugurado um “centro” de curas espirituais e contatos com o “outro mundo”, liderado por um vigarista ululante, desses que fazem acampamento provisório nas cidades do interior para explorar a boa fé alheia e na brecha das fragilidades emocionais ou tragédias familiares, faturar alguns lucros e ganhar dinheiro fácil.

Atraído pela gritaria e pelos cânticos, Sepultura ingressou ao “centro espiritual” e sentou-se numa cadeira da última fila, pondo-se a ouvir a ladainha toda, as invocações, as rezas , os choros e os gritos do “guia” espiritual , que impregnavam o ambiente , criando a aura de uma notável histeria coletiva.

Numa das tantas , depois de bem preparada a encenação , o vigarista clamou para que “baixasse” do céu a alma do filho de uma senhora presente à sessão, o qual havia falecido num trágico acidente de trânsito.

– “Venha servo de Deus , estamos te aguardando” , bradava o estelionatário espiritual ...

Nesse momento, interrompendo bruscamente a sessão, literalmente encharcado de cana , com a irresponsabilidade que acompanha os bêbados e com aquelas palavras balbuciadas inerentes aos ébrios , o mendigo “Sepultura” balbuciou a seguinte frase:

- “ Essa alma não vem !”

Passado o desconforto e a desconfiança gerada por aquela intervenção tão inesperada quanto inusitada, e já sob um olhar de ódio do “guia” espiritual, “Sepultura” sentou-se novamente à cadeira e continuou a assistir os “trabalhos” quando então o trapaceiro invocou a presença de um outro espírito , parente de um senhor idoso que estava sentado na primeira fila e, para perplexidade de todos, “Sepultura” novamente se ergueu e soltou mais uma vez a frase :

- “ Esse também não vai abaixar” ...

Furioso, o “guia” espiritual bradou um “basta” e convocou um de seus seguranças que prontamente se dirigiu ao minguado “Sepultura” pronto para expulsá-lo do recinto, todavia, poucos metros antes de chegar viu que ele havia sacado de suas sujas vestes um punhal com a lâmina tomada pela ferrugem , que inspirava medo quiçá mais pela sujeira e o risco de um tétano do que pelo próprio fio de sua navalha cortante.

O segurança recuou diante do perigo iminente e o “guia” espiritual então deu a outra ordem : - “chamem a polícia” e foi justamente neste momento que entrou para a história a frase mais famosa deste hilário personagem, pois “Sepultura” encerrou sua inusitada visita ao centro espiritual com a seguinte locução:

- “ Não precisa, “doutor” , tô indo embora - por que essa que tu chamou agora , essa sim eu tenho certeza que vem ....”