CHICO PIORRA , O VIDENTE INFALÍVEL ( I )
 Seu verdadeiro nome eu só viria a saber bom tempo depois: Francisco Alves de Assis. Coincidência ou não, fora agraciado com o nome de um famoso cantor da época, --- Francisco Alves --- tendo-o, também, estimado santo católico --- Francisco de Assis. Coincidências que pretensamente, à lente de um crente qualquer deveria trazer bom destino a ele, o que, a meu talante ainda não ocorrera.
 Nada disso, porém, levava importância. Para mim e para muitos, --- não sei se para ele, propriamente --- o importante no Sr. Francisco Alves de Assis era o dom da vidência espontânea, infalível, que nele se manifestava.
Estatura mediana, magro, mãos de dedos longos, deixava os olhos tristes vagarem à sua volta.
Vim a conhecê-lo em 1942.
 Naquele dia, daquele longínquo ano, encontrei o Manuel da Tiadolina, velho amigo de infância.  Trazia uma toalha branca envolta no pescoço. Cumprimentamo-nos ruidosos como sempre. Segundo ele, caminhava rumo ao Cascavel indo banhar-se naquele córrego, ladeira abaixo. Estendeu-me o convite e brincou:
--- Vamos afogar suas mágoas de solteiro! Referia-se ao meu casamento no dia seguinte.
Aquiesci ao convite. Fiquei no entanto de buscar a toalha em casa, imediação dali Fui às pressas.
Ao adentrar o quarto deparei meu irmão dormindo. Em volta da cama, uma rústica mesa de caixote e, acima dela, jazia pequena moeda junto a outros pertences dele.  Agarrei a toalha por cima da outra cama ao lado jogando-a por sosbre o ombro, surgindo, num repente a idéia de levar a moedinha. De saída, na cozinha, fascinou-me um novo desafio: na posse de martelo e prego marquei-a levemente com três furinhos em forma triangular em sua superfície.  A idéia era fazê-la circular e observar se voltaria novamente às minhas mãos! Enfiei-a na algibeira e saí.
A vendinha do seo Nélo ficava na esquina oposta da nossa casa; dirigindo-me a encontrar Manuel, inevitavelmente passaria a sua frente. A rua estava deserta embora houvesse frequente movimento de homens na porta da venda. Aproximando-me do local um deles acenou insinuando a que fosse até ele.
--- Ei, rapaz! ...Venha cá!
Olhei, não reconheci o cidadão. Prossegui.
--- Ei, moço!... Faça o favor! Insistiu.
Moderei então os passos; ao voltar-me observei o seo Nélo junto ao balcão; em deferência a ele, encaminhei para lá.
--- O fidalgo vai nos pagar uma dose? Perguntou o homem que me chamara.
“Não me conhece e já vem pedindo pinga!” Pensei. 
Olhei com certo espanto para o desconhecido sem dar a ele sinal de indignação com o seu atrevimento. Seria atrevimento? Esses habituais freqüentadores de vendas, botecos, não estão sempre pedindo a estranhos que lhes paguem bebidas? São homens simples, quase sempre desempregados vivendo de biscates ali por perto e nem sempre lhes são possíveis conviver com algum tostão nos bolsos. Imbuído desse sentimento tolerante, dei conta do olhar tristonho do homem. Havia nele um quê de bondade, de elevação, sei lá, entremeado a um misterioso ar que fascinava a pessoa olhando-o de perto.
--- Não tenho dinheiro!. Respondi-lhe.
--- Se eu lhe disser que tem, você paga?
Lembrei da moeda. Calei-me.
Ele continuou:
--- E se eu lhe disser que tem uma moedinha no bolso?
“Pura especulação, --- intuí --- alguém fora desse meio pobretão sempre há de ter uma moedinha no bolso”.
--- Lhe digo mais: você fez três furinhos nessa moeda há pouco, não fez?
Confesso me haver chocado ante a inesperada revelação.
“Se estávamos a sós, eu e meu irmão, como foi possível ele saber?” Mesmo assim, não me dei por vencido. Permaneci calado.
Ante o silêncio buscou estocar mortalmente meu convencimento.
--- Vou lhe dizer mais... Se concordar pagar as bebidas leio a sua mão! Propôs.
Olhei para o seo Nélo buscando uma resposta.
--- Esse é o Chico Piorra! Ainda não ouviu falar dele?
Balancei a cabeça negativamente enquanto tirava a moeda da algibeira. Atirei-a sobre o balcão; ele então pediu que estendesse  a mão.
--- ... Não! Esta não! --- reprovou-me o gesto --- Você devia ter dado a direita!... O que fez atrasará suas bem-aventuranças!
E tomando a minha mão direita, disse:
--- Vamos lá!
Olhou-me fixos, os olhos; sem tirá-los dali começou a falar:
--- Eu bem que poderia lhe dar os parabéns agora, mas não posso. Você tem um casamento marcado para amanhã, não tem? --- confirmei --- Pois você pode dizer para sua sogra dar a metade daqueles doces para a vizinhança, senão vai perder.
Com razão, a sogra preparara três latas de 18 litros de doces variados para a festa. Como esse homem poderia saber de todos esses detalhes? Será que o seo Nélo...
Mas ele continuou:
---... Você não se casará amanhã. Assustado, intervi pela primeira vez:
--- Por quê? Ele, firme nos meus olhos, correu os dedos na lateral da minha mão.
--- Porque não é o momento. Você vai sair e encontrar o seu melhor amigo para um banho no rio, não vai? --- Nada respondi a ele --- ... Quando chegar na esquina você o verá  na porta do bar com um dos braços escorado no portal e abaixo, no pescoço, terá uma toalha azul pendurada... ele vai gritar de lá apressando-o.
A menção da toalha azul trouxe-me alívio. Por alguma razão estava sendo vítima de charlatanice. Foi a primeira reação esperançosa de salvar o casamento. Na verdade, o Manuel estava com uma toalha branca e não azul! Se o homem sabia das coisas com todas as suas minúcias, como desconhecia a cor da toalha? Meu casório estava salvo.
Tudo o que aquele homem dizia, me levava a crer,  só podia ser besteira, simplesmente abusava da minha paciência quando não da minha ingenuidade. Imaginei.
--- É só? Fiz o gesto de retirar a mão. Ele a reteve.
--- Quer saber mais?
Receoso, agora também indeciso, o senso de curiosidade me obrigou a concordar.
--- Pois bem... --- Baixou os olhos para minha mão e voltou a fitar-me os olhos.
--- ... quando você voltar do rio, verá um homem saindo da sua casa numa bicicleta, é o carteiro. Ele estará trazendo uma carta do Exército para você... então entenderá. Você vai se casar com a mesma moça de agora, só que daqui a 1 ano! Lhe digo mais: terão 3 filhos homens e 3 filhas mulheres (foram suas palavras);
 viverão ainda por muitos anos, mas, em dado momento se separarão, não terminarão suas vidas como marido e mulher.
Aquelas últimas palavras quebraram o meu crescente fascínio pelas revelações que gradativamente foram me iludindo. Desconcertado, achei por bem retirar a mão presa a dele.
Silenciosamente seo Chico Piorra aproximou-se do balcão ingerindo,  de único gole, a bebida calibrada no copo.
Despedi-me por alto e saí, ouvindo a tempo a voz dele dirigindo-se ao comerciante:
--- Taí... bom rapaz!
Sinceramente não sei avaliar o estado de espírito em que me encontrava. Acreditava ou não em tudo aquilo? O nosso recanto é pequeno, todo mundo sabe quase tudo de todos, logo...                       
Todavia, pensando bem, aquele homem, seguro e firme, dissera coisas futuras capazes de deixar qualquer cristão  desorientado.
Segui em frente contornando a esquina onde se avistava o bar, limiar da descida para o córrego. Ali, um arrepio cortou o meu corpo provocando estranho medo.
O Manuel gritava acenando para me apressar; em seu pescoço, enrolada, uma baita de toalha recortada de sacos de farinha, tingida por chamativa tinta azul! E a pose dele na porta, então! O Manuel encontrava-se com o braço esquerdo acima da cabeça, justamente escorado no portal como dissera o homem! Conforme dissera o vidente, gritava exasperado pela minha presença!
--- Meu Deus!... Mas a toalha era branca!... Devia ser branca!
Do meu vagar passei a correr até ele.
--- O que foi, moço?
--- A toalha!...
--- O que que tem a toalha?
--- Não era branca? Respondi-lhe encabulado.
--- Enquanto você ia na sua casa corri até a minha. Mamãe me fez trocar a toalha...disse que fico encardindo suas toalhas brancas... peguei então esta de cor... foi isso.
Não lhe disse mais nada, inteiramente perturbado. Com certa razão  comecei a temer pelo casamento do dia seguinte.
No banho nos divertimos, servindo para desanuviar meus temerosos presságios. No fundo queria crer na inverdade de tudo, que a ninguém era dado penetrar e desvendar os mistérios do futuro. Trocando as roupas seguimos ladeira acima, adentrando a rua de casa.
Meus últimos pensamentos, naturalmente imbuídos por frágeis esperanças , forçavam a um estado de bem estar, concorrendo para o  descrédito das más previsões. Metido nesse estado de espírito adentrei a rua com os olhos a procurarem frenéticos, a imediação da velha casinha. Nada de bicicleteiro. Senti esperançoso alívio!
Seguimos conversando. O Manuel seguia comigo; buscava as ferramentas de construção emprestadas a meu irmão. Já estávamos bem à frente ele tocou-me o braço:
--- Veja!... Tem alguém saindo da sua casa!
Realmente. Boné na cabeça, uniforme amarelo desbotado, montava uma bicicleta Philips preta. O carteiro saía de lá. A bicicleta não avistei-a a princípio por estar deitada atrás de uma barreira de pingo de ouro, plantada que fora ao lado da porta.
Gelou-me o sangue e saí novamente correndo, apavorado!.
O envelope deixado pelo carteiro chamava atenção pelo enorme carimbo: URGENTE! Via-se, também, bem visível nele, as letras impressas do Tiro de Guerra sediado em vizinha cidade daqui.
Nem abri o envelope. Disparei rumo à vendinha onde não mais o encontrei. O seo Chico Piorra tinha partido!
--- Tá doido, moço?!!! Manuel chegava atrás todo espantado com a minha atitude precipitada.
Expliquei brevemente o acontecido a ele, percebendo sua feição fatigada e incrédula.
--- Pura besteira! Disse finalmente.
Na verdade tive poucos dias para me apresentar no quartel onde sentei praça permanecendo lá por uns bons pares de meses, correndo o risco de seguir para a Itália e entrar em combates. A II Guerra Mundial sangrenta explodia  no seu auge.
Acertadamente, --- como ele dissera-me  --- ,meses depois dei baixa e, 1 ano depois vim a casar-me com a mesma moça. Os anos posteriores da vida de casado foram meras testemunhas de um destino obediente às palavras daquele estranho homem. Tivemos os filhos preditos, convivemos as dificuldades apontadas até que, finalmente, quarenta e tantos anos após veio a separação.
Exceção dos familiares, ele foi o nosso primeiro convidado. Veio, bebeu e comeu alegremente embora, paradoxal, não conseguisse se livrar do olhar permanentemente triste. Desde então tornamo-nos amigos, ocasião em que fiquei sabendo do seu verdadeiro nome de batismo: Francisco Alves de Assis, conhecido popularmente nas vendas e nos botecos como Chico Piorra.
Não são aos simples, aos humildes os propósitos de Deus?
 
 
moura vieira
Enviado por moura vieira em 21/08/2010
Reeditado em 01/09/2020
Código do texto: T2450499
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