Limpeza Urbana II

Limpeza Urbana II

Logo que vi o sujeito, o escolhi de imediato. Desproporcionalmente alto e gordo como um hipopótamo, trajava bermudas xadrez estilo skatista – como se ele conseguisse subir num shape de skate sem estraçalhar ele todo – batatas das pernas grossas como hidrantes, tênis roto remendado com silvertape e camiseta no melhor estilo rock´n´roll – com uma estampa da banda Slipknot, se não me engano - e uma camisa de flanela vermelha – que dava a impressão que ele tinha dormido com ela e não tirava há mais de uma semana - do tamanho de uma barraca de camping por cima de tudo, ainda carregava uma mochila surrada em um dos ombros do qual saía um fio, certamente do aparelho de MP3 ligado aos fones nos ouvidos do “mané”.

Dei um jeito de me aproximar por trás do brutamonte no trem – ele ia embarcar em direção ao centro da cidade e esperei o momento mais apropriado. Quando as portas do vagão se abriram, saquei minha pistola semi-automática calibre 22, encostei discretamente nas banhas das costas do gorducho e sussurrei o mais próximo que consegui do ouvido dele a frase que normalmente faz o efeito desejado e eu obtenho o controle total da vítima escolhida: “Você vai fazer o que eu disser ou morre. Isso não é um assalto. Se fizer qualquer som, você morre. Se tossir morre. Se peidar, morre. Se olhar torto, morre. Vamos!” E apertei um pouco mais o cano da arma no flanco direito, tentando achar a costela em meio a tanta gordura – odeio gordos por isso, é difícil apontar a arma direto na costela – e reafirmei ainda mais meu ponto de vista. Vi que o cara começou a suar e ameaçou abrir a boca. “Calado!” falei entre dentes. “Vamos!” Gesticulei com a cabeça, ajeitando o boné e o bigode falso. O cara abaixou a cabeça, saiu da plataforma de embarque do trem suando em bicas – fiquei imaginando o que ele estaria pensando sobre tudo aquilo - e tomou o caminho da saída. Eu fui logo atrás, tomando o cuidado de olhar uma vez mais para as pessoas e os vigias da plataforma, averiguando se ninguém havia visto nada. Sempre próximo do nosso amigo, já perto da saída, direcionei-o ao furgão que havia sido estacionado em um local sem vigilância e de pouco movimento àquela hora.

Quando nos aproximamos do furgão posicionei-o de costas para as portas traseiras e pude ver o medo em seus olhos em meio à franja sebenta do cabelo meio comprido que ele usava. Percebi que tinha escolhido o cara certo. Aproximei-me do carro sem tirar meus olhos dos olhos dele e dei duas pancadas na lataria. As portas imediatamente se abriram e um braço forte agarrou o sujeito por trás enquanto uma mão forte cobria seu nariz com um lenço repleto de clorofórmio. O cara simplesmente tombou para trás sem lutar muito e foi arrastado em seguida para dentro do furgão. O que aconteceu ali dentro não interessa muito. Eu e meus companheiros levamos o cara para o lugar de sempre o mais depressa possível e ele acordou umas horas depois. Tínhamos, obviamente, amarrado e colocado o sujeito numa posição em que meus companheiros pudessem filmar tudo. O “gordão”, como Hans passou a chamá-lo – um dos meus companheiros trocara seu nome de batismo e gostava que lhe chamassem assim (seu verdadeiro nome era Felipe) – estava amordaçado e chorava como uma criança, pois já tinha percebido o que iria lhe acontecer. A despeito de sua posição semi-vertical, amarrado com os braços para cima, sem camisa – Jürgen (outro que trocara de nome, seu verdadeiro nome era Jorge Henrique) – tinha cortado a camiseta do Slipknot e a de flanela ensebada, seu peito nu, as ferramentas de açougueiro todas penduradas na parede e uma bancada toda manchada de sangue, o “gordão” já adivinhara: Iria ser imolado. Ao menos castrado vivo. Arrancaríamos seu coração ao algo semelhante. E ele não estava de todo errado.

Hans veio de outra sala com a filmadora em punho já ligada, registrando desde os primeiros momentos de pânico da vitima. Por trás da luz da pequena câmera via-se sua cabeça raspada. No antebraço que segurava o aparelho, uma tatuagem enorme de uma suástica, ladeada por algumas palavras em alemão. Ele trajava camiseta muito cavada e justa ao corpo e nas partes que o tecido não cobria, viam-se outras semelhantes: Suásticas, símbolos nazistas, partes de dizeres em alemão em letras góticas. Com Jürgen não era diferente. Ele tinha uma até na nuca que lhe subia até o alto da cabeça. Um punhal (cuja ponteira do cabo era a suástica de Hitler) envolvido por uma serpente. Isso sem mencionar as outras. Eu também tinha as minhas. Eram menores e em pontos estratégicos do corpo para que as roupas normais pudessem escondê-las. Afinal, eu era o que meus companheiros chamavam de “agente de campo”.

Jürgen ocupava-se agora em afiar algumas ferramentas que seriam usadas em nosso amigo. O “gordão”, de olhos esbugalhados, esperneava e resmungava atrás da fita adesiva que evitava que ele gritasse antes da hora. Acompanhava tudo só com os olhos e era acompanhado pela lente de Hans. Eu só observava. Observava e aguardava. O momento estava chegando e eu teria que agir.

Jürgen acabara de terminar o afiamento das ferramentas e conferia cada uma, olhando de lado para nosso amigo, sorrindo cruelmente. Hans deliciava-se com o pavor nos olhos do sujeito amarrado à “cama de evisceração” como ele mesmo gostava de chamar. O “gordo” sentiu que sua hora havia chegado e começou a espernear, como de isso conseguisse livrá-lo das correntes e das tiras de couro que o prendiam à “cama”. Aproximei-me do sujeito e fiquei observando-o melhor. Seu cabelo empapado de suor, o pânico nos olhos. Tudo isso era por demais fascinante. Mas nada se comparava ao momento que estava por vir. Como ele parecia ter entrado em choque, para trazê-lo de volta à realidade da situação, esbofeteei com força sua cara gorda. Imediatamente ele parou sua tentativa inútil de escapar e me olhou com raiva.

- Não adianta me olhar com essa cara de imbecil que você tem. Você sabe que vai morrer e gostaria somente de tornar isso uma boa morte. Você não vai morrer sem saber por quê. E ainda mais. Daremos a dádiva de conhecer a história de seus algozes. Mas só se você prometer não gritar. Se gritar, morre sem saber nada e, lhe prometo, faço você sofrer em dobro. De acordo?

O “gordo” só acenou com a cabeça. De um golpe, arranquei a fita adesiva que cobria sua boca e ele gemeu de dor. Em seguida falei:

- Permita-me apresentar meus amigos. Este que segura a câmera é Hans. Seu verdadeiro nome não vem ao caso e ele é o nosso “cineasta” oficial. Dei um pequeno sorriso e fiz uma saudação de nosso grupo em direção a Hans que respondeu com um aceno de cabeça. E este, continuei, é Jürgen, nosso ferramenteiro. É ele quem providencia as “ferramentas” que são utilizadas com os nossos “capturados” para que eu possa demonstrar as técnicas de tortura e evisceração sem morte que serão utilizadas em outros capturados ou inimigos de nossos ideais. Nosso grupo, aliás, como você pôde notar, é anti-semita basicamente. Mas atacamos todas as minorias raciais, como fez nosso füher – e emendei uma saudação – porque simplesmente elas merecem nosso ódio, nossa retaliação, nossa “fúria”. A última palavra foi dita em alemão e com ódio injetado nos olhos. Jürgen retesou todos os músculos do corpo, tamanha emoção ao ouvir essa palavra, principalmente pronunciada em alemão. Hans agitou-se atrás da câmera e quase a derruba. Eu sorri. Tinha conseguido o meu intento. O “gordo” agora batia o queixo de medo, seus olhos iam da câmera para mim rapidamente e ele ameaçava falar qualquer coisa. Jürgen mal continha-se e Hans, agitado filmava tudo.

- Então, senhores, acho que posso começar. Primeiro vou demonstrar como e onde efetuar cortes nos “capturados” para que sangrem sem morrer antes da hora. Jürgen, meu caro companheiro, pode me dar o prazer de iniciarmos nosso treinamento, me passando uma de minhas “ferramentas” preferidas?

- Ya, Herr Gèrard – Jürgen falava alemão muitíssimo bem e adorava fazê-lo na frente das vítimas para impressioná-las.

- Danke, mein friend.

Meus olhos, no entanto, enquanto minha mão recebia a ferramenta das mãos de Jürgen, seguiam as mãos dele. Eu observei que Jürgen ainda tinha em uma das mãos uma faca David Bowie de caça, que ele brincava insistente, em frente aos olhos do prisioneiro. Um passo em falso, poderia naquele momento, por tudo a perder. Vi que Hans, ao filmar a cena toda, detinha-se vez ou outra no olhar de pânico do sujeito preso, justamente quando Jürgen aproximava-se com sua faca de caça. Eu teria apenas uma microscópica fração de segundo. Jürgen estava indo em direção ao “gordo” e Hans chegava mais perto para filmar.

De um golpe, aproveitei-me da posição de ambos e soltei a ferramenta que Jürgen havia me passado às mãos – assemelhava-se a um pequeno serrote liso e largo – e apanhei na bancada que estava à minha direita algo como um bisturi, maior e mais largo, porém mais afiado. De um golpe, de cima para baixo, cravei-o na base do crânio de Jürgen, numa região que trava completamente os movimentos, impedindo a vitima de gritar e mata instantaneamente. Os dedos de Jürgen afrouxaram e a faca de caça começou a cair de suas mãos. Apanhei-a no ar e quando Hans percebeu o que estava acontecendo, a faca entrava pela base de sua mandíbula, atingindo a base do cérebro. Com o golpe a filmadora caiu da sua mão direita e antes que atingisse o chão e que ele pudesse sequer gritar, peguei-a com minha mão direita, dando um giro de meia-volta com meu corpo, entre os dois e a “cama”.

O rapaz atado à ela observou tudo atônito. Parei com um joelho apoiado no chão e outro levantado, uma filmadora em uma das mãos. Vi Hans cair sem vida à minha frente e virei meus olhos para conferir se Jürgen havia morrido mesmo. Levantei ofegante, tirei o avental branco plástico que havia vestido para a “demonstração” e comecei a desamarrar o “gordo”. Enquanto desamarrava o sujeito, que cada vez entendia menos o que estava assistindo – era notório pelo olhar do cara – comecei a dar uma explicação que, achei, ele merecia.

- Não está entendendo nada não é?

Ele só abanou a cabeça em sinal de negação, com a boca ainda semi-aberta. Estava apavorado demais para falar.

- Pode falar agora. Só não grite. Apesar de que ninguém vai lhe ouvir mesmo. Estamos sozinhos aqui e no subsolo de um prédio abandonado. Portanto, sem a minha ajuda, levaria dias para alguém te achar aqui. Quer falar alguma coisa?

- Que... quem...é...você?

- Disse se você queria falar alguma coisa, não perguntar. Ainda mais perguntas que eu não posso lhe responder. Mas, me chame de Gèrard. Dá no mesmo.

- Quem são eles? Ele já parecia recobrar certa calma e agora esfregava os pulsos que eu havia retirado das correntes.

- São fanáticos. São membros de uma, das milhares que existem, sociedades anti-semitas que cultuam as idéias de Hitler e acham que são responsáveis por terminar o trabalho que ele começou, perseguindo e às vezes, exterminando pessoas que pertencem à minorias: negros, nordestinos, judeus e quem mais eles acharem.

- Mas, e você? Eu não entendi nada. Você não é um deles? Olha aí suas tatoos, cabeça raspada, malhado e forte que nem eles...

- Ah isso? E caí na gargalhada. Ele me olhou entendendo cada vez menos. Isso é henna. O cabelo cresce de novo e exercício nunca fez mal para ninguém. E olhei bem nos olhos dele. Ele entendeu a indireta e abaixou a cabeça. Infiltrei-me no grupo há coisa de uns... seis meses. Fiz as tatuagens, que obviamente tinham de ser refeitas às vezes, raspei a cabeça e reforcei a malhação. Durante todo esse tempo mapeei locais de reunião, de treinamento, nomes, pessoas-chave, ligações com outros grupos semelhantes e etc. Fiz um dossiê que a essa altura encaminhei para o ministério público e para a polícia. O resto é com eles. E esses dois, tive que tirar do caminho. Tive que demonstrar minha “fidelidade” ao grupo, trazendo uma “vitima” para ser feita uma “demonstração”. O resto você já sabe.

- Quer dizer que eu poderia ter...?

- Morrido? Não! Você só era uma isca. Mais nada. Aliás, desculpe pelo incômodo.

- Incômodo! Porra! Eu podia ter morrido e você chama isso de incômodo! Puta que o pariu! Eu vou te matar seu desgraçado! O cara realmente tinha tomado o controle de si. Veio para cima de mim, agora que estava desamarrado e sentia-se forte o bastante para tal.

- Desculpe cara. E uma pequena picada se fez sentir. No flanco direito do sujeito. Uma pequena agulha e um aplicador automático. Sedativo suficiente para o peso do rapaz. Pelo estado emocional dele, quinze ou vinte segundos seriam suficientes. Mais do que suficientes para saber o que eu ainda precisava saber. “Vamos cara, seu endereço! Onde você mora?”

Ele, ainda se recuperando do choque da picada, respondeu automaticamente. Para desabar em seguida no chão imundo daquele porão abandonado.

No dia seguinte, um rapaz obeso, mais parecendo um mamute humano, acorda com uma dor de cabeça horrenda e umas lesões, próximo ao portão de casa. E o mais importante, sem se lembrar de nada do que acontecera ou como viera parar ali.

O noticiário daquele dia também trazia uma noticia bastante curiosa. A policia e o ministério público haviam recebido uma denúncia anônima e todas as informações que os levavam a uma gangue de skinheads violentíssimos e que vinham sendo procurados há bastante tempo. Dois jovens haviam sido encontrados, ambos mortos, num terreno abandonado, na periferia da cidade e pareciam ter ligação com essa mesma gangue. Tinham sido identificados como Felipe não-sei-o-que e Jorge Henrique não-sei-das-quantas. A policia estaria investigando ligações desta gangue com outras e a maioria já havia sido presa.

Desliguei a TV e fui dormir satisfeito. Precisava dar um tempo, sumir. E depois partir para a próxima.