Contos da Galiza VI
Era uma vez um homem que queria escrever a história do mundo.
O moço pegou numa pena e uma boa provisão de tinta e papel, e começou a escrever. Começou pelo início do mundo e essa parte levou-lhe vários anos.
Depois, ele já adulto, continuou pelo que aconteceu mais tarde e essa outra parte levou-lhe outros tantos anos e uns poucos mais.
Finalmente, já velho, chegou ao fim da história do mundo que era o momento presente. Este mesmo momento.
Então o velho, a cada instante mais velho, começou a narrar as cousas que aconteciam no presente. A pena ia muito rápido, batia no papel e sangrava tinta como uma copiadora moderna. Com a prática de toda a vida ele conseguia transcrever a realidade segundo a segundo.
Aí foi quando o velho já muito velho observou o primeiro sucesso estranho na sua obra: quanto mais rápido escrevia, mais rápido se sucediam os acontecimentos.
Uma boneca caia ao chão e ele escrevia com verdadeira destreza «Uma boneca caiu ao chão» na esperança de poder continuar aginha «A boneca sujou-se» antes da boneca sujar-se. Sabia que para escrever a história completa do mundo teria também de escrever o mundo que ainda não foi nem é, a história do mundo futuro.
Tentou de muitas maneiras, em inúmeros instantes. As mãos vertiginosas voavam pelos papeis mas a boneca sempre chegava ao chão antes dele acabar de escrever.
Então, como possuído por uma força desumana, aumentou ainda mais o ritmo da escrita e a partir daquele momento não se deu pausa. Escrevia noite e dia sem interrupção. Escrevia e escrevia cada vez mais rápido, no intuito de superar a realidade e contá-la antes dela acontecer.
Era de noite e o velho já centenário escrevia em sonhos o que acontecia no sonho. E escrevia acordado o que acontecia na vigília. E aí teve lugar o segundo sucesso estranho na obra da sua vida.
A narração do sonho misturou-se com a narração da vigília e o texto foi adquirindo uma textura especial, como de lama.
A mão já não traçava linhas reconhecíveis e parecia estar a remexer naquela pastosidade que crescia e crescia, a medida que o ancião se desfazia na narração.
E como a pena continuava a bater naquela levadura de argila, e como o batimento era cada vez mais regular, um coração se formou. O velho velhíssimo já tinha desaparecido, fundido no infinito do seu presente, quando uns novos braços e umas novas pernas saíram daquela massa primigénia.