Eternidade
Se eu não estivesse aqui, no meu leito de morte, sentindo o ar abandonando os meus pulmões pouco a pouco e o meu coração perdendo o passo a cada minuto, eu poderia apreciar a cena toda como uma obra prima que só a vida pode esculpir.
Ao redor da cama, em um silêncio palpável, todas as pessoas com quem tive uma relação mais significativa e que ainda não partiram deste mundo. Lado a lado, algumas de mão dadas, com lágrimas nos olhos, soluços engasgados em algumas gargantas, sorrisos apaziguadores em alguns rostos. O único som audível naquele quarto de hospital, ou pelo menos o único som identificável aos meus ouvidos debilitados, eram os apitos constantes emitidos pelos monitores que demonstravam em seus gráficos ininteligíveis uma verdade que todos ali já conheciam: a minha vida está chegando ao fim.
Sim, eu vou morrer. Já estou morrendo, a cada segundo que passa. E querem saber? É uma sensação boa. O fim de um ciclo que, a meu ver, foi concluído com êxito. Cada pessoa que aqui se encontra, neste momento, é um motivo para que eu me orgulhe da vida que levei. Cada amizade que fiz e mantive, cada indivíduo que ajudei quando necessitado e que fez o mesmo por mim, cada vida que correu paralelamente a minha por todo esse tempo, é uma razão para que eu possa seguir o meu caminho com a consciência tranquila.
Não vou dizer que não tenho arrependimentos. Todos nós temos. Existem inúmeras coisas que eu gostaria de ter feito de forma diferente, ou de não ter feito. Mas nada que possa me fazer desejar continuar vivo para consertar. Minha jornada acabou. E finalmente, depois de mais de setenta anos labutando diariamente pela vida que eu tinha e pela vida que eu prometi honrar enquanto vivo, minha tarefa acabou.
Engraçado como eu vejo todos tristes ao meu redor e mesmo assim, não consigo me consternar com a situação. E por mais que eu lhes diga que não há motivos para que se entristeçam, eles não me escutam. Agora eu entendo-os. Eles vão ficar, eu partirei. Para quem fica, essa separação sempre parece pior. Não que quem vá também não sofra. Como alguém especial já me disse uma vez, quem vai também passa a sentir saudades de quem ficou. Mas ainda assim, ficar aqui pode ser realmente desanimador. Permanecer no mesmo mundo que até então estamos habituados, porém, sendo privados da companhia de alguém que nos era importante. O mundo, para quem fica, se torna um pouco menos colorido.
Já, para quem vai, segundo alguém me disse uma vez, é tudo novo, tudo emocionante. E por mais que eu desconfie dessa afirmação, não há porquê esquentar muito a cabeça, certo? Descobrirei a verdade daqui a pouco...
Agora que estou aqui, praticamente embarcando no “Expresso Celestial”, há algumas máximas do mundo que eu posso lhes comprovar. A principal delas é aquela que todos costumam usar frequentemente: “A vida passando diante dos olhos.” É a mais pura verdade. Agora eu lembro de cada momento da minha vida, cada fase pela qual passei. Mas de algumas, eu lembro com mais detalhes.
Como aquela tarde morna de outono em que eu, pela primeira vez, me deparei com a morte. À época, como expectador, para minha infelicidade. Naquela tarde, quando eu voltava de um passeio em um parque com uma pessoa especial, um jovem desconhecido cruzou a minha vida, literalmente. Em um segundo, lá estava eu, ouvindo uma música boa, na companhia da garota que eu amava, ligeiramente cansado de tanto caminhar pelo parque, mas ainda assim com fôlego para conversar com ela, mesmo que só ela falasse. No momento seguinte, o choque, o medo, a angústia, todas essas coisas se misturando ao meu sangue, correndo em minhas veias, entorpecendo meu cérebro. O carro capotava pelo asfalto, desfazendo-se a cada nova pirueta. Meu coração martelava meu peito, enquanto minha mão, agora tenho certeza, era segurada pela garota ao meu lado. Um raio de luz em meio aquela confusão caótica. Ela me disse que segurou minha mão por querer se proteger daquele momento de pavor. Mal sabia ela que eu é que fui protegido.
Naquele acidente, naquela tarde de outono, eu perdi a pessoa que mais amei em toda a minha vida. E mais do que isso: perdi o meu impulso vital. Estava desnorteado. Perder alguém que se ama por uma fatalidade dessas é a pior coisa que pode acontecer. Por exemplo: quando você termina um namoro, você sabe que foi por alguma razão explicável. Falta de amor, incompatibilidade de gênios ou até um simples cansaço quanto à relação. Por mais que doa, você entende. Agora, quando é um acidente que te priva do que você ama, as coisas são muito piores, pois não há uma razão para que aquilo tenha acabado. É algo com o qual nós não contamos, algo contra o qual não podemos nos proteger. E daí, depois que acontece, nós só podemos nos sentir impotentes frente ao que é a vida. Só nos resta continuar.
E eu continuei. Me arrastei por um tempo, meio sem vontade, até me acontecer uma coisa ligeiramente surreal. Num daqueles rompantes de tristeza mal contida, eu escrevi uma carta, certa vez. Endereçada ao paraíso. Completa loucura, eu sei. Mas eu estava triste. Eu queria voltar a falar com a pessoa que me fora tirada. Eu sentia saudades dela. Saudades que não conseguia suprimir com lembranças ou outras atividades. Eu sentia tamanha falta dela, que me permitia acreditar na loucura de ainda poder falar com ela. Pois numa manhã desanimada, como tantas outras, a minha esperança oculta foi recompensada. Na minha caixa de correio, uma carta sem remetente me fez sentir o coração acelerar de novo, como a muito não fazia. Era uma resposta dela. Uma resposta do paraíso. Seria possível? Um sonho, talvez? Não me importou. Eu tinha ali a razão que vinha pedindo para voltar a lutar. Ela me esperaria, ela disse. E eu sei que ela espera. Se há alguém nesse mundo ou no outro em quem eu confie para algo desta magnitude, é ela.
E então, aconteceu. Lentamente, como se a cena fosse passada em “slow motion”. O quarto do hospital começou a ficar mais silencioso, mais opaco. Meus sentidos já se desligavam, meu coração seguia seu exemplo. É nesse momento derradeiro que o aperto no peito me faz querer prolongar a vida mais um pouco. Meus amigos, que agora choram. “Eu vou ficar bem, não se preocupem”. Tento lhes dizer, mas minha voz já não funciona como deve. Alguém segurou com força a minha mão direita. Uma mão afoita, quase desesperada. Fico feliz por saber que vocês também querem me segurar aqui. Eu os amo, sabiam? Todos vocês. Meus amigos, meus familiares, pilares da minha existência. Vocês que me apoiaram quando eu precisei. Me acudiram quando eu senti meu chão sumir. É tão doloroso saber que agora eu estarei me despedindo de vocês também. Não para sempre, creio. Um dia nós nos veremos no próximo nível. Eu sei que é verdade. E é nessa certeza que se baseia a minha tranquilidade. Alguém está me esperando lá em cima. Por mais que eu sinta vontade de ficar, eu quero ainda mais partir. Eu vivi todo o tempo que pude. Fiz tudo o que deveria fazer. Mas agora cumpri meu compromisso, estou livre para seguir adiante. Para ela. Afinal, ela prometeu me esperar. Nós vamos nos ver novamente.
Começo a me desligar de vez deste mundo. Já não sinto mais as pessoas ao meu redor. Já mal sinto meu corpo. Exceto pela minha mão. Alguém está segurando-a novamente. Mas desta vez é um toque diferente. Macio, reconfortante. Uma voz chega aos meus ouvidos, claramente vinda do “outro” lado: “Pode se deixar levar, querido”. Será ela? Ela veio me buscar? A animação transcende as barreiras do que outrora fora o meu corpo físico. Já não sou mais uma existência restrita, como fora até então. Sou só a consciência, pairando no quarto do hospital. Estão todos aqui, observando o idoso que está na cama. Sem vida. O corpo que um dia me pertencera. “Vamos, é hora de seguir adiante”. A voz dela outra vez. Eu vou. E então, tudo muda.
O sol de fim de tarde se infiltra pela janela aberta. Que lugar é esse? Eu conheço-o. Este sofá, esta mesinha de centro. Esperem. É o meu apartamento? Não, estou enganado. É o “nosso” apartamento. Meu e dela. É o lugar onde vivemos juntos. Isto aqui seria o paraíso? Na carta que ela me mandou, ela mencionou algo assim. Que o paraíso era uma representação das melhores coisas que tivemos em vida. Se é verdade, então nada mais óbvio que eu estar neste apartamento. Tudo o que eu vivi com ela, foi o que de melhor eu já tive.
As coisas estão exatamente como eu lembrava. Tudo da maneira como eu gostava. Mas onde está ela?
Então, um barulho na porta. A maçaneta gira, revelando a figura pálida da pessoa com quem tenho esperado me reencontrar por todos esses anos. Emoldurada pelo batente da porta, ela parece uma imagem retirada da minha memória, exatamente como eu me lembrava enquanto sonhava, todos os dias em que sentia sua falta. O cabelo castanho desalinhado, deixando-se levar ao sabor do vento. Os olhos cor de mel brilhantes, sempre ativos, atentos a todos os detalhes, esquadrinhando meu rosto enquanto ela também revelava sua emoção. O sorriso infantil, pasmo, que sempre me encantara, brincando em seus lábios enquanto ela suspirava, parada à porta.
- Tu chegou. – A voz dela, no mesmo tom que eu recordava, soou como um gongo pelo qual esperávamos. Antes que suas palavras pudessem ecoar pelo recinto, nós dois corremos um ao outro, sedentos por podermos sentir a presença física um do outro. E então, ela estava em meus braços, e todos os anos de espera já pareciam um mero momento desgostoso, como o passar por um túnel bastante escuro que precede a saída em uma bela paisagem brilhante. Tudo era perfeito, como fora outrora. O cheiro dos seus cabelos, o toque das suas mãos nas minhas costas, o seu respirar ofegante soando em meu ouvido, o movimento irregular do seu peito arfante. Era ela, a garota que eu amava, a razão da minha fé, a fonte da minha força, por quem eu esperara a vida toda, de quem eu sentia tanta falta. E enquanto nós dois estávamos ali, nos acostumando novamente um com o outro, nos atingiu a verdade mais promissora que em toda a nossa vida e, por que não dizer, a nossa morte também, já havia nos sido revelada: Estamos juntos de novo.
Nos afastamos um pouco, para que pudéssemos nos encarar. Por mais que eu procurasse em cada detalhe, não havia nada de diferente nela, ou mesmo algo de que eu não gostasse. Ela me olhou nos olhos, tornou a sorrir aquele sorriso bobo que sempre lhe fora marca registrada, e me disse:
- Por que tu demoraste tanto? Eu te disse que esperaria, mas poxa... Não precisava me torturar, né? – Ah, a voz dela. Como ela me soava apaixonante, como me fazia feliz. Parecia um conto de fadas.
- Epa, não era isso que você deveria dizer, não é? Nas cartas, nós não tínhamos deixado bem claras as falas que cada um diria quando nos reencontrássemos?
- E tu acha que eu ligo pra isso? Tu tá aqui comigo, seu teimoso É só isso que me importa. Estar contigo, daqui para frente.
- A verdade é que tu simplesmente não lembra o que escreveu naquela carta, não é? – Eu ri do meu comentário. Ela fez cara de afrontada, fingiu-se ofendida, mas estava na brincadeira também. Nada poderia nos deixar irritados ou tristes agora, mesmo o mínimo que fosse.
- Ah saco, tu sempre foste cabeça dura, não é? Viu? Eu lembrava.
- É.
- Te disse que lembrava. Bobalhão.
- Tu lembrou mesmo. Tu tinha dito que lembraria mesmo. Tu sempre bate o pé e cumpre o que promete, não é? - Ela riu de novo, e eu também. E ela se aproximou mais, ainda sorrindo, e tocou os lábios nos meus. O calor do seu rosto passava para meu. A sua respiração me fazia cócegas na pele. Mas essas eram coisas que eu só sentia superficialmente. Nada mais me era sensível além dos lábios dela tocando os meus. Mansamente, em um beijo que poderia ter durado dias, e nós não notaríamos. O beijo que selava o nosso reencontro, que nos fazia ter certeza de que estávamos juntos novamente. Mesmo depois da morte. Mesmo depois de todo esse tempo. Mesmo separados por tudo o que esteve em nosso caminho. Cá estávamos nós, juntos novamente. Completos, unidos, prontos para enfrentar o que quer que fosse. E com a certeza de que, não importa o tempo que passou e as dificuldades que nos foram impostas, esperar valeu a pena, e o futuro será promissor.
- Afinal de contas, estaremos juntos para sempre, não é? – E antes que eu pudesse murmurar qualquer coisa, ela respondeu por mim, confirmando o que eu pensava e mostrando que nós ainda estávamos em sintonia. – Pode acreditar.