A Resposta

Oi.

Parece improvável e, eu acho que no seu lugar eu não acreditaria, mas eu li a tua carta. Achei muito boa. Tu não parece nem um pouco o cara que era antigamente. Onde foi parar o teu humor meio tapado? Tu nem me perguntou como são as coisas aqui em cima. Mas mesmo assim, tu foste sincero, algo que eu sempre amei em ti.

Tu disse que deseja que eu esteja bem, certo? Pois como é que tu imagina que eu possa estar bem, se tu não está aqui comigo? O Paraíso é bem "bacaninha". Ah sim, eu vim para o Paraíso. Confesso que tive um pouco de receio, no início. A gente nunca sabe se foi consideravelmente “do bem” durante a vida, não é? Mas logo que eu cheguei aqui, já percebi que estava no paraíso. Um paraíso incompleto, mas ainda assim, um paraíso. Tu consegue imaginar como são as coisas por aqui?

Exatamente como eram por aí. Só que só as partes boas. É tão reconfortante, tão acolhedor. Todos os dias, coisas boas acontecem. A minha vida aqui soa muito parecida com a que eu tinha antigamente. O meu emprego, as minhas atividades. Os passeios na praça, os filmes no final de semana. Dormir no nosso quarto. É tudo igual. O paraíso é uma réplica quase perfeita de tudo o que eu mais amava enquanto viva. Quer saber o porquê de ser “quase” perfeita? Falta o ingrediente principal. As coisas aqui são boas. São divertidas. Mas eu sinto a tua falta. Eu me sinto incompleta, pois não há possibilidade de tudo ser perfeito sem a tua presença.

Tu não estava alucinando, quando sentiu que eu segurava a tua mão no momento do acidente. Eu segurava mesmo. Tu sabe que eu sempre fui medrosa. Lembra quando íamos ao cinema assistir aqueles filmes de suspense ou terror? Sempre que eu tinha medo, eu segurava a tua mão. Eu nunca gritei, ou fechei os olhos ou coisa do gênero. Eu só segurava a tua mão, pois aquilo me trazia de volta para a realidade. Por mais angústia que a cena me causasse, o calor da tua mão junto a minha me lembrava de que o que eu via na tela não passava de uma fantasia e que no meu mundo real, enquanto contigo, enquanto segurando a tua mão, eu estava segura. Estar de mãos dadas contigo sempre me protegeu contra o medo. E foi por isso que eu o fiz enquanto o carro rolava pelo asfalto. Pode parecer bobagem minha, mas eu acreditei que podia fazer aquele terror parar, se eu sentisse o aconchego dos teus dedos entrelaçados nos meus. E funcionou, de certa forma. Eu me desliguei de tudo antes de o carro parar de rodopiar. Foi estranha a forma como tudo aconteceu depois. Num instante, eu estava presa ao meu corpo, observando um monte de metal retorcido ao meu redor, como que enclausurada em uma gaiola de ferro. Eu tinha noção do meu corpo, da minha posição, mas não sentia nada ao meu redor. Era como se eu assistisse a cena através de uma parede de vidro, captando todos os detalhes mas sem ter como interagir com eles. De repente, eu já havia me deslocado para outra posição e perdido meus limites. Já não sentia-me mais como uma pessoa. Não diferenciava o meu corpo do vento. Eu só existia como a consciência que flutuava no ar. Passados uns segundos até eu entender como se via, eu notei o corpo frágil jogado ao chão. Um corpo de garota. Sem vida. O meu corpo. Depois que eu me vi ali, não sei porquê, eu passei a te procurar. Desesperadamente, eu precisava te ver, saber se você estava comigo. Mas eu não te encontrei. Eu sentia vontade de chorar, de gritar com todas as minhas forças, de implorar para que te devolvessem para mim, mas já não lembrava como fazê-lo. Então eu vi dois homens junto ao meu corpo. A voz deles chegou a mim meio ruidosa, como se eu ouvisse-a de muito longe, ainda que estivesse ao lado dos dois. Um suspirou. “Olha pra essa garota”, ele disse, “morrer tão jovem.. É tão injusto...” Não foi chocante para mim. Eu talvez já desconfiasse, talvez não. Não me fazia diferença. Eu queria saber de ti. E foi o outro homem que sanou a minha dúvida. “O rapaz provavelmente vai se salvar”. “Obrigada”, eu disse. Ou diria, se lembrasse como se falava. “Obrigada aos senhores. Obrigada Deus. Obrigada a todos.” Você estava a salvo, que me importava o resto? E então, outro solavanco, outra mudança de cenário e eu estava aqui. Ninguém me explicou nada. Ninguém me disse o que eu deveria fazer dali para frente. Eu apenas fui deixada aqui.

Custei a reconhecer o local onde estava. Mas então percebi, meio assombrava, que era uma versão paradisíaca do nosso apartamento. Tudo estava como nós costumávamos deixar, exceto por alguns detalhes que normalmente me desagradariam, como a sua toalha molhada jogada na cama, por exemplo. Fitei tudo com tremenda curiosidade, por um tempo, procurando algum detalhe que ainda não sabia qual. Levou um tempo considerável para que eu percebesse o que me faltava naquele lugar: Você.

Não só a tua pessoa em si, mas todos os aspectos que demonstravam o fato de que tu habitava o lugar. O teu cheiro nos lençóis, as marcas dos teus sapatos nas paredes, a mesinha de centro da sala ligeiramente torta. Inúmeros detalhes que transformavam o lugar em teu e que, na minha atual moradia, inexistiam. Neste ponto, eu cogitei estar no Inferno. Afinal, o que seria pior do que conviver com o teu mundo e não te ter por perto? Ser forçada a lembrar de ti a todo o momento, em cada canto, em cada aspecto e, ainda assim, estar privada da tua convivência...

Dramático de minha parte, eu sei. Levou um bom tempo até que eu aceitasse a tua ausência por ali. Mas com o passar dos dias, fui me tornando mais apta a conviver com a tua presença fictícia. As coisas aqui funcionam muito bem. Tenho sempre tudo o que desejo, encontro algumas outras pessoas que já vieram pra cá e é divertido. Cada dia esconde uma surpresa distinta, sempre algo agradável. Mas ainda assim, eu sinto a tua falta. E foi assim, num desses dias de auspiciosas manhãs, que eu notei o envelope na caixa de correio. “Que sandice é essa?”, pensei. Oras, receber cartas no paraíso. E então eu vi de quem era.

Tu imagina a emoção que me causou? Saber que tu ainda não me esqueceu. Que ainda pensa em mim, que ainda me ama. Que o laço que criamos é mais forte que a própria morte. Este foi o dia em que eu realmente me senti no paraíso. Por mais desanimador que tenha sido o conteúdo da carta. Por mais que me entristeça saber da tua tristeza. Saber que eu não deixei de existir na tua mente e no teu coração me reconforta, me dá forças pra continuar a te esperar.

Eu me sinto impotente. Queria estar aí para te confortar. Eu sei que se eu estivesse aí, não haveria razão para que te confortassem. Mas ainda assim, eu queria poder amainar a tua tristeza. Poder te tomar nos braços, te dizer que está tudo bem e fazer com que a cicatriz no teu coração se cure por completo, sem que te cause mais dor. A nossa separação, tão injusta, causa dor a mim também. E eu acho errado que tu diga que tu foi quem mais perdeu nesta história toda. Afinal de contas, não perdemos nós dois a mesma coisa? Ou tu acha que não era a minha razão de viver também?

Os planos que eu perdi, que não poderei mais cumprir, eram planos que diziam respeito a ti, que tinham como alvo nós dois. A vida que eu deixei para trás, incompleta, só existia por tua causa. A distância de ti destrói os meus planos de maneira pior do que a morte. Pois se os meus planos fossem só meus e eu fosse impedida de completá-los, eu ainda poderia criar outros de igual valor aqui em cima. Mas do jeito que está, eu não posso fazê-lo, pois preciso de ti para decidir o que de fato me faz falta. Da mesma forma que o teu mundo desmorona, também desmorona o meu. Nós só estamos de lados diferentes da moeda, mas o pagamento é o mesmo. Tu imagina que quem fica é quem sofre mais, mas esquece que quem vai também é privado da companhia de quem ficou para trás. Eu não desejaria que o contrário acontecesse. Se me fosse possível escolher, eu iria querer que ficássemos juntos.

Mas ainda assim, por mais que me machuque te dizer isso, eu não desejo que tu morra. Mesmo que isso signifique te ver novamente, te ter por perto, poder tocar em ti. Eu não quero ver a tua vida acabando tão rápido. Eu quero te ver feliz aí embaixo, seguindo adiante, vivendo por nós dois. Tu tem que acabar o que nós começamos juntos aí embaixo. Levar adiante a tua vida, que como tu mesmo disseste, foi escolhida para continuar por alguma razão. Eu, aqui em cima, vou tentar preparar o lugar para o dia em que tu chegar. Eu não terei pressa, tu sabe disso. Vou te esperar aqui, trabalhando lentamente. Leve o tempo que quiser, eu posso te aguardar. Assim como tu é cabeça dura e me promete continuar a viver, eu sou teimosa e te prometo esperar. Assim, depois que eu lhe disser que tu sempre foste cabeça dura, tu vai poder me abraçar e dizer, murmurando no meu ouvido, “tu sempre bate o pé e cumpre o que promete, não é?” E nós vamos ficar juntos de novo. E da próxima vez, será para sempre.

Então, não se apresse. Teremos toda a eternidade para matar a saudade depois. Viva bem aí embaixo, mostre a todos que o que nós criamos não vai se desmanchar sem florescer, sem dar bons frutos e marcar o mundo. Mostre a todos que a vida que nós tivemos e que tu continuará a ter por nós dois valeu a pena. E quando decidirem que tu cumpriu o teu papel, que já é chegada a hora de nós dois nos vermos novamente, eu vou estar te esperando. Pode acreditar.