Mudança Legal - A Mudança I

A Mudança

Quando o caminhão da mudança chegou com a finalidade de retirar o que nós tínhamos, sim, o que tínhamos, porque o que éramos, infelizmente havia ainda muito do que podíamos deixar. Vontade não faltava, mas ainda era muito difícil resolvermos todos os nossos problemas de uma só vez.

No exato momento senti que para onde estávamos indo já não cabia levar mais toda aquela tralha, pois só iria pesar e muito. Talvez na época fosse difícil explicar, por exemplo, a nós mesmos os lustres de cristal, as baixelas de prata etc. ... Afinal o espaço era outro e além do mais quem daria importância para aquilo tudo?

Aprontando a mudança começamos a ver o quanto era doloroso para nós, pois estávamos agarrados aqueles objetos como os mexilhões fazem nos rochedos e, portanto, são precisos golpes fortíssimos para os soltar.

Nessa ocasião possuíamos dois baús e bem grandes, quase o suficiente para guardar tudo que tínhamos.

Na medida que íamos guardando as coisas do baú, também fazíamos uma seleção das nossas necessidades para a nova residência e aí uma grande decisão sempre nos faltava porque estávamos muito apegados a quase tudo.

Pegávamos os objetos com muito carinho, assim como faz o cirurgião ao pinçar uma artéria. Era uma funcionalidade vital, não compreendíamos o que ocorria, apenas ocorria.

Tudo funcionava, mas só agora vejo o quanto era ridículo o nosso comportamento. Às vezes sinto até arrepios, vergonha mesmo.

A criança faz coisa compreensível, mas não justificável, por isso há momentos que me compreendo, porém não me justifico ainda. Acredito, jamais me justificarei, pois não haverá mais necessidade.

O tempo ia passando e cada peça no baú um aparente problema resolvido. Aos poucos nós fomos observando que quase tudo ficaria, ainda porque, não havia lugar para tanta coisa inútil.

Para Clarinha o fato de nos ausentarmos daquela vida, nada tinha em se desvencilhar de todos os apetrechos e badulaques que ainda estávamos presos e olha que não eram poucos, mas pinçando um objeto e outro e a conversa enquanto empacotávamos dava pra perceber que pesava muito tudo aquilo e não valia a pena levar.

A ignorância é terrível por isso sofremos tanto. Em viagem levamos em nossas malas coisas que nem sabemos pra que e porque levamos. Às vezes, deixamos de aproveitar o tempo, presos, a coisas sem a menor importância.

Lembramos do índio e do general que se enfeitam qualquer seja o palco de suas atividades,portanto, não compreendem na sua primitividade,a beleza da pureza em toda sua plenitude.

A coisa é complexa redargüiu Clarinha, justificando a nossa ignorância. Temos muito a fazer, mas embalemos esta xícara de porcelana chinesa; foi lembrança da Bélgica e mamãe não ficaria nada feliz se soubesse que não temos mais as suas xícaras. Afinal ela ainda não se desprendeu e pergunta sempre por elas.

Precisamos continuar enchendo o nosso baú, pois o caminhão não leva idéias, leva?

O tempo ia correndo entre uma coisa e outra. No baú somente o que levaríamos e nas caixas o que ficaria para ser doado. Por vezes sentia medo do novo principalmente por Clara e pelas crianças. Os últimos estavam começando a vida e já enfrentando mudanças sérias, bastante significativas. Estariam deixando a melhor escola, para estudar aonde não conhecíamos e sem qualquer referência. Isto significava a maior agonia para mim e fazia o possível para não passar toda essa minha angustia para eles. Afinal era minha e até isso não conseguia dividir. Quando as crianças perguntavam sobre a nova escola não sabia mentir porque isso eu já havia construído e não podia inventar ou tentar atenuar uma situação totalmente nova. Essa história foi muito forte e me ensinou a ter um relacionamento franco com os meninos.