O homem avoado

O escritório ficava na área central de um condomínio de lojas. Triunfante, entrei. Numa mesa grande, um computador postado à esquerda e papéis espalhados no vão de toda a mesa; atrás, uma senhora sentada com os olhos cor de brasa e com voz pastosa:

- Bom dia senhor o que deseja?

Ora – pensei – se estou num escritório de advocacia, o que mais precisaria além de uma consulta, com possibilidades de ajuizamento de alguma causa? Meio sem graça sorri e respondi:

- Bom dia – senti por aquela moça, que ao falar recendia a alfazema misturada a álcool velho; bagaço de cana, comiseração. Já havia entrado naquele escritório – não fazia sentido sair sem justificativa; mas tive vontade de pelo menos respirar um pouco de ar puro, lá fora. Tossi e prossegui:

- Preciso consultar o dr. sobre família; tenho uns probleminhas pendentes que precisam ser resolvidos.

Ela arregalou os olhos, deixando-os ainda mais vermelhos e inchados – por sorte, só falou quando estava à frente da porta onde estava o dr,, distante de mim.

- Verei se ele pode atendê-lo agora, senhor!

Abriu a porta e lá no fundo uma voz arranhada, catarrenta, resmungou:

- Faça-o entrar!

Ela se voltou para mim, esboçando um sorriso embaçado, amarelo, entonando a voz – evitando um acesso de tosse, por faltar-lhe oxigênio:

- O senhor pode entrar por gentileza – já recomposta e certa de que a crise de tosse não a atacaria; pelo menos naquele momento.

Ergui-me da cadeira. Aspirei o restinho de oxigênio puro do local e encaminhei-me à porta. Abri-a, entrei. O espanto foi ainda maior. Um homem de meia idade sentado em frente a um computador velho, livros cheio de orelhas, empilhados no canto da mesa. Trajava um terno de cor indefinida – quando novo certamente era grafite, cinza-escuro ou até mesmo preto –, mas estava completamente descorado, amassado; o nó da gravata malfeito. A sala estava pior que a recepção: à direita, em cima da mesa, um cinzeiro transparente cheio de pontas de cigarros que exalava um odor horripilante. Além de ter uma aparência monstruosa, o homem tinha os olhos avermelhados e empapuçados e espargia um odor forte de gasolina misturada a álcool – demonstrava ter passado a noite consumindo todo tipo de bebida alcoólica, industrializada em algum fundo de quintal. Quis desanimar naquele momento, pedir desculpas pelo equívoco, sair correndo, ganhar a rua, sentir o ar menos impregnado e jurar nunca mais entrar em ambientes sem referências confiáveis.

O homem após uma sessão de tosse, levantou-se, foi até ao armário em frente, destrancou-o, tirou um litro com uma bebida cristalina, encheu duas taças, estendeu-me uma e pousou a outra na mesa, ao seu lado.

- Experimente, fizemos alguns ajustes na produção. Vai gostar!

Resoluto, mas um pouco assustado, olhei-o bem nos olhos e pensei: atitude ambígua deste homem – será que estou no lugar certo? E ele depois do segundo gole, limpou a garganta insistiu:

- Tome! Vai gostar!

Dei uma olhadela em toda a sala: dois quadros parcialmente cobertos de teia-de-ranha, a pintura descascada; tijolos à mostra, uma moldura contendo a fotografia de um homem velho – bigode-de-arame e algumas porcarias espalhadas pela parede.

O homem flagrou-me observando aquela fotografia – espantosa, por sinal e, estendendo o indicador torto, amarelado pelo tabaco, estufou o peito e disse:

- Foi o fundador. Morreu há três anos de infecção generalizada. Dedicou seus 88 anos a tudo isto aqui – rodopiou o indicador apontado para o teto, em frente a sua testa.

- Senhor! – recuperei as forças num impulso. – Não estou entendendo nada; estou confuso. Eu preciso...

- Não se preocupe senhor! – interrompeu ele, rispidamente. – O senhor não é o único a ter dúvidas acerca dessa história. São muitos anos de mercado. – A propósito, em que posso ser útil senhor? – falou soprando uma corrente de álcool que o vômito veio imediatamente à minha garganta. Relutei, consegui fazê-lo voltar e aquietar-se no estômago.

Parei uns instantes, respirei – absorvi fumaça de cigarros, álcool e outros odores presentes –, balancei as estruturas e preparei para falar-lhe:

- Com relação a pensão alimentícia que venho pagando para o meu filho, pontualmente por sinal, tem me sacrificado demais. Portanto, gostaria...

- Hã – fez ele após soprar-me, desta vez, uma baforada de fumaça daquele cigarro fedorento. E, tossindo, continuou: - o senhor deve ter errado o endereço. O senhor deve procurar um advogado e não a um escritório de representação de bebidas alcoólicas.

Ouvi, empalideci e fui encolhendo na cadeira até conseguir forças para levantar-me. Ergui, revigorado, e sem ao menos agradecê-lo, ou me desculpar, ganhei a rua em poucos segundos. Enquanto aspirava o ar com toda a força que meus pulmões permitiram, pensei: - aquele safado do Maurinho vai me pagar quando eu o encontrar – aproveitou do meu analfabetismo...