O Caranguejo

Balançou o berço vazio deixando os pensamentos fluir para a adivinhação dos traços que desenhariam o rosto do filho ainda na barriga. Mais dez dias, e então saberia o que a genética agrupou no novo ser. Ao seu lado, aninhado nos cobertores, o marido ressonava alheio aos seus devaneios. Tudo tão certo, tão calmo. A casa arrumada nos mínimos detalhes. Sempre tão caprichosa!

Era o primeiro filho. O primeiro de mais um ou dois que pretendia ter. Queria uma família pequena. Os tempos andavam bicudos, como dizia sua avó. O marido amoroso, a casa já quase paga e a perspectiva de um futuro tranqüilo, embora de muito trabalho, enchiam seu coração de uma alegria silenciosa na paz da noite fria.

Ajeitou a manta de tricô sobre o berço. O movimento fez com que os móbiles balançassem, provocando o rodopiar das pequenas fadas e estrelas penduradas. Recostou-se nos travesseiros colocando com alguma dificuldade as pernas sob as cobertas. Deitou-se de lado, acomodando a barriga imensa, de costas para o marido para proteger o bebê de qualquer movimento brusco. Alisou a barriga com carinho, apagou o abajur e mergulhou no sono.

Quatro horas da manhã. Abriu os olhos no escuro, absolutamente desperta. Um peso sobre o peito a impedia de respirar. Acendeu a luz do abajur e olhou para o marido. Ele parecia nem ter se movido durante todo aquele tempo. Seu ressonar demonstrava estar imerso no mais profundo sono. Uma angústia, como um pressentimento ruim, apertava-lhe a garganta. Levantou-se com dificuldade, vestiu um casaco por sobre a camisola e foi até a cozinha.

Colocou no fogo uma chaleira com um pouco de água para um chá. Sentou-se na cadeira junto à mesa e perscrutou o próprio coração. Que angústia é essa? De onde veio isso? Porque esse sentimento súbito? A água borbulhou na chaleira, levantou-se para fazer o chá e uma sensação de urgência agitou-lhe o peito.

De repente sentiu uma necessidade incontrolável de andar. Apagou o fogo, ajeitou o casaco, calçou os mocassins e saiu para a varanda fechando a porta atrás de si. Uma bruma esbranquiçada e fria pairava na madrugada e nas ruas desertas. Atravessou o pequeno jardim e alcançou a rua. Ninguém à vista, nem um cão ou um gato. Tudo deserto e frio. Caminhou com pressa, como se estivesse atrasada para algum encontro. Chegou à estrada de asfalto, a neblina parecia mais espessa para os lados do Horto Florestal. Tomou a direção contrária, no sentido da cidade.

Pelo acostamento caminhava célere. Apenas o ruído de seus passos sobre o chão de pedras soltas ressoava na noite. Nenhum veículo cruzou a estrada. Apenas ela caminhando, com os braços cruzados sobre a grande barriga. Saíra do bairro do Ipiranguinha apressada e não diminuíra o ritmo nem uma só vez. Já atravessava as esquinas do bairro da Marafunda, mas não sentia nenhum cansaço. Apenas o resfolegar da respiração se tornara mais audível, pondo no frio da noite pequenos rolos de ar quente que saiam de seus pulmões como fumaça. Nenhum pensamento, apenas aquela angústia pesando no peito e uma sensação prazerosa no caminhar rápido e urgente.

Não se lembrava de ter atravessado o cruzamento da Rodovia Rio-Santos, quando se deu conta estava no meio da Avenida Thomás Galhardo. Um ônibus vazio de passageiros passou por ela e entrou numa rua à esquerda.

Sem diminuir os passos chegou à Avenida Iperoig e sem nenhuma hesitação seguiu à direita, em direção a região da praia do Itaguá. Ainda não tinha idéia para onde ia, nem por que. Só sabia que “precisava” caminhar e chegar logo. Atravessou a rua e seguiu pela calçada. O mar calmo e cheio sussurrava sons incompreensíveis na areia. A leste, um céu metálico entre o cinza e o negro rasgava a noite pondo a perceber-se o dia ainda longe.

De cabeça baixa, andando o mais rápido que sua pesada barriga permitia, sentia que aquela angústia se avolumava no peito apertando-lhe o estomago. De repente, levantou a cabeça e divisou o cais do porto. “O caisão” – pensou – “Cheguei”.

Inexplicavelmente, uma sensação de alivio tomou seu espírito. Calmamente cruzou o caminho de madeira por sobre o mar, que levava até junto das pedras. À medida que se aproximava da ponta do cais aquela angústia se diluía, deixando em seu lugar uma estranha e penetrante sensação de paz.

Na solidão do cais podia ouvir no marulhar das ondas e dentro de si mesma uma ordem: “Atire-se sobre as pedras”. E cumprir essa ordem pareceu-lhe a coisa mais sensata a fazer. Mas, ainda assim pensou: “E o bebê?”. E aquela voz interna, que parecia vir de uma região entre o estomago e o coração, num sussurro calmo e compassado murmurou: “Vai acontecer muito rápido. Você e ele não sentirão nada. É preciso".

Olhou para as pedras pontiagudas abaixo lavadas pelo mar que as açoitava e a visão de lançar-se sobre elas a enchia de uma certeza tranqüila e inexorável de que era exatamente aquilo que deveria fazer. Para isso viera. Sentia-se quase feliz por cumprir a ordem. A idéia de atirar-se ao mar dava-lhe uma sensação de paz e alegria. Dar um passo à frente e deixar-se cair era o mesmo que transpor a porta de um templo silencioso, onde nada poderia perturbar sua harmonia com Deus e a vida.

Inspirou profundamente o ar da manhã que se avizinhava. E na intenção do gesto em mudar o passo, de repente ouviu nítida e claramente uma voz que ressoou em seus ouvidos vinda não sabia ela de onde, mas que parecia gritar dentro de seu cérebro: “Não faça isso!".

Deu um passo para trás e olhou em torno. Não havia ninguém. Apenas o cais vazio e algumas embarcações ao longe, ainda como sombras distantes a balançar no mar. “O que?” – pensou aturdida com aquela nova ordem inesperada. “Não faça isso. Não há motivo”, insistiu a voz. “É preciso”, disse consigo mesma.

Agora, mais branda e paterna, aquela voz que a impedia de cumprir ao que veio aconselhou: “Pense em sua casa. Visualize seu lar”. Imediatamente ela visualizou seu quarto, o berço, as roupas do bebê tão bem arrumadas nas gavetas, o marido dormindo, a cozinha com os copos limpos nos armários em ordem.

Sentiu o corpo estremecer num arrepio que lhe correu pelas costas e uma torrente de lágrimas explodiu num choro convulsivo, como se de repente se partisse uma represa e os mais desencontrados sentimentos jorrassem incontroláveis. Chorou por muito tempo, alto e profundamente, como uma criança perdida de seus pais.

Cansada, imergiu em sono profundo.

O som de uma gaivota ressoou ao longe, como num sonho.

Um calor morno e reconfortante cobria suas pernas como um véu. Tentou abrir os olhos, mas um torpor deixava seu corpo pesado e relaxado sobre as tábuas do cais. Conseguiu entreabrir as pálpebras e pode ver a linha do horizonte ao longe, com o sol da manhã espalhado sobre o mar, cintilando sobre as águas mansas, como purpurina. A luz fluídica da manhã a envolvia, morna e relaxante. Pensou em se mover, mas a sonolência a entorpecia, como um fantástico sonífero.

Sentiu que o braço lhe doía sob o corpo. Quis mover-se, mas de repente uma náusea, seguida de um indescritível gosto na garganta, imobilizou-a em aflição. Algo se movia dentro dela. Não era no ventre. O bebê permanecia quieto, como se dormisse. Alguma coisa se agitava no seu estomago, no peito, na garganta. Parecia querer sufocá-la. Entreabriu os olhos, queria sair dali, voltar para casa, mas continuava inerte, como num pesadelo.

A calma manhã, com o mar a murmurar sob o cais, o sol morno e reluzente sobre as águas, contrastavam com aquela sensação agoniante de algo a se mover em suas entranhas. Ela voltou os olhos para o céu sem nuvens e num esforço sobre-humano balbuciou baixinho: “Deus, livre-me disso!".

Quase que simultaneamente ouviu um barulho dentro de si, como uma bolha de ar que se rompe num caldeirão de melado. Sentiu como se seu estomago se dilatasse, se abrindo numa fenda que atravessava pelo peito até a garganta. Estranhamente algo deixava suas entranhas, inteiramente coberto por uma espécie de gosma pegajosa, de cor verde-escura, como limbo.

Arregalou os olhos sem que pudesse mover um só músculo do corpo e viu, aterrorizada, um descomunal caranguejo negro, com cerca de cinquenta centímetros de carapaça, deixar suas vísceras e se arrastar vagarosamente pelo chão do cais, em meio àquela espessa gosma esverdeada.

Paralisada diante do assombroso fenômeno, assistiu a tenebrosa criatura atirar-se da borda do cais. Cerrou os olhos. Deixou que as lágrimas silenciosas descessem pelo rosto. Respirou fundo e finalmente conseguiu mover-se. Um sentimento de alivio e paz inundou-lhe o coração.

Levantou-se com alguma dificuldade sustentando a barriga. O bebê parecia dormir. Um barco em meio a um bando de garças se aproximava do atracadouro. Um grupo de crianças gritava em algazarra na praia. Ela se aproximou com cuidado da borda do cais e olhou para as rochas lá embaixo. As ondas iam e vinham lavando as pedras nuas. Tudo calmo, tudo limpo. O sol brilhava no mar, no céu, na cidade, no cais. Inspirou profundo e aliviada, virou as costas para o mar e voltou para casa.

Obs. Essa história é tida como verídica. Segundo seu relato, foi uma experiência vivida há muitos anos por uma professora que, durante muitos anos, morou no bairro do Ipiranguinha, em Ubatuba – SP.