O VELÓRIO

É muito comum darmos uma “bola fora” em situações nas quais devemos manter certo nível formalidade, como num congresso, numa biblioteca, num hospital ou num velório, que foi o meu caso.

Você que está lendo este conto já deve ter feito algo do gênero ou pelo menos já deve ter presenciado uma situação dessas: alguém tendo um ataque de risos num velório ou enterro... ou aqueles que quando vão cumprimentar os parentes do morto perguntam:

- E aí? Tudo bem?

O que a criatura espera que o outro responda numa hora dessas? Por acaso seria algo do tipo:

- Ah, sim! Tá tudo ótimo. Você nem imagina o quanto eu me sinto feliz hoje.

O fato é que duvido muito que exista alguém que tenha conseguido dar mais gafes em um único velório do que os personagens da história a seguir. São eles: minha mãe, meu pai, eu e mais duas amigas.

Tudo começou em uma noite de sábado, quando eu e essas amigas combinamos de ir à uma boate. Porém, antes disso, a gente deu uma passadinha num Pai de Santo.

Você deve estar se perguntando: - O que um Pai de Santo tem a ver com uma boate? E o que uma boate e um Pai de Santo tem a ver com um velório?

Bem, o negócio foi o seguinte: nós andávamos meio “sem sorte” no amor. Sabe como é... Não estava chovendo muito na nossa horta e naquela noite, nós pretendíamos ir à caça. Queríamos saber se as vibrações eram favoráveis às nossas intenções, ou melhor, más intenções, por isso, nós fomos consultar o tal Pai de Santo.

Ele jogou os búzios e o tarot cigano para cada uma de nós. Os búzios disseram a mesma coisa para todas: seus caminhos para o amor estão trancados. Isso nós já sabíamos, mas o caso é que tínhamos a esperança de que por ventura os caminhos finalmente estivessem liberados.

Quanto ao tarot, quando chegou a minha vez de consultá-lo, apareceu a carta da morte. O pai de santo não deu atenção à carta e começou a me engambelar com uma histórinha sobre fazer “trabalho espiritual” para arranjar namorado. Trabalho esse que custava muuuuito caro, é claro. Eu, por minha vez, fixei o olhar na carta e não prestei mais atenção na conversa . Lá pelas tantas, perguntei:

- O que significa esta carta?

- Que carta?

- Esta! A carta da morte.

- Ah, não se assuste! Não é nada importante.

- Tem certeza? Será que a morte não estará no meu caminho hoje à noite?

- Tenho! Fique tranquila.

Terminada a consulta, fomos todas para a minha casa, tomamos banho, nos maquiamos e lá fomos nós para a tal boate. Em relação ao amor, o vidente tinha razão, os caminhos estavam mesmo trancados. Até apareceram uns carinhas muito simpáticos, mas muito feiosos também, diga-se de passagem. Eles nos convidaram para beber cerveja e nós aceitamos. Por volta das cinco da manhã, quando já estávamos bêbadas o suficiente para cair na cama e dormir, fomos embora.

Ao chegar em casa, minha mãe anunciou:

- Gurias, assim que vocês saíram, a Júlia ligou para avisar que o pai dela faleceu.

- Faleceu?

- Sim. O enterro vai ser às dez da manhã, portanto, tratem de dormir um pouco, que às sete e meia eu vou acordar vocês para irmos ao velório.

A Júlia era nossa amiga, e a morte do pai dela não foi lá uma grande surpresa , pois sabíamos que o homem andava mal da cirrose.

Dada a notícia, subimos para o quarto e tiramos um cochilo. Ás sete e meia em ponto, minha mãe nos acordou, conforme havia prometido.

Tomamos uma ducha fria e rápida, tentamos dar uma ajeitada nas nossas caras de ressaca (tentativa inútil) e lá fomos nós para o velório: minhas duas amigas, minha mãe, meu pai e eu, é claro.

Ao chegar no local, haviam duas salas velatórias, uma ao lado da outra. Minha mãe, que ia na nossa frente, com muita pressa de velar o defunto, dirigiu-se para a sala errada. Ao perceber que ela estava se encaminhando para o defunto errado, meu pai tentou avisá-la:

- Psiu! Não é aí. Volta!Volta!

O caso é que minha mãe é meio surda e meu pai estava falando baixinho para não chamar a atenção.

Então, eu fui atrás dela:

- Mãe, volta aqui!

Mas ela também não me ouviu. Invadiu a sala e ao se aproximar do caixão gritou:

- Ai, não é ele! Entrei no velório errado!

Os familiares do defunto errado olharam para ela com cara de espanto. Puxei minha mãe para fora da sala e nesse momento, a esposa do defunto certo já estava vindo para nos conduzir à sala certa.

Desfeita a confusão de defuntos, minhas amigas e eu fomos até a Júlia para abraçá-la e nesse momento, eu dei aquela bola fora básica:

- Oi Julia. Tudo bem?

A guria, entre lágrimas, não sei se por educação ou porque estava em estado de choque, ainda se deu ao trabalho de responder:

- Tudo bem.

Depois disso, ela olhou para as nossas caras muito pálidas e perguntou:

- Vocês estavam na balada?

Pergunta essa que nós respondemos com toda a sinceridade:

- Sim!

- Onde vocês foram?

- Na B&N.

- O Cássio estava lá?

Cássio era o ex-namorado dela.

- Sim, estava.

- Tinha alguma mulher com ele?

- Não reparamos.

Mentira! Ele estava acompanhado de uma bela loira com seios enormes, mas achamos melhor não contar isso à ela. Ficamos um pouco por ali, enquanto ela nos falava sobre os últimos momentos do falecido.

Algum tempo depois, eu comecei a procurar com os olhos por um lugar onde pudesse comprar água. Para a minha sorte, havia um boteco bem na esquina. Era verão, o sol estava rachando e a ressaca ajudava a aumentar ainda mais a minha sede. Pedi licença para a Júlia e convidei as outras duas amigas para irem comigo até o boteco. Imaginei que elas também deviam estar secas por uma garrafa de água mineral.

Nove garrafas de água mineral depois, três para cada uma, chegou o padre para encomendar o corpo. Nesse momento, todos entraram na sala para acompanhar a reza. Todos, menos nós.

Enquanto o padre rezava, conversávamos baixinho.

- E então ? O que vamos fazer hoje à noite? - perguntei.

A primeira respondeu:

- Vamos para a B&N.

A segunda concordou:

- Beleza, vamos!

Mas eu protestei:

- Ah! Pra lá de novo?

A primeira sugeriu um outro lugar:

- Então vamos para os Cabos.

Cabos, por incrível que pareça, era o nome de uma das festas que a gente costumava ir na época.

Dessa vez eu concordei:

- Tá! Para os Cabos pode ser.

Foi então, que a segunda se empolgou e deu um grito:

- Então tá beleza, gurias! “Se vaaamo aos cabãããooo!”

Dentro da sala velatória, o padre parou de rezar. Houve um silêncio geral. Uma mulher deu uma espiadinha na porta para ver o que estava acontecendo, olhou na nossa direção com cara feia, encostou o dedo indicador na boca e fez:

- Pssssiuuu!

Depois dessa, decidimos calar a boca.

Quando o defunto já estava por ser retirado da sala, um carro branco parou em frente ao velório. Dentro dele, estavam os carinhas com quem nós havíamos bebido cerveja durante a madrugada. Eles ainda não tinham ido para casa, continuavam bebendo e quando nos viram paradas ali, não sei se pensaram que estávamos numa festa ou se perceberam que era um velório e mesmo assim resolveram nos sacanear, pois levantaram as latinhas de cerveja e gritaram:

- Gurias, querem cerveja?

Olhamos para o outro lado e fingimos que os gritos não eram conosco, embora estivesse bastante óbvio para todos ali, que tal "gentileza" só poderia ser mesmo para aquelas três figuras bizarras. Mas enfim, os carinhas seguiram seu caminho e logo em seguida, o caixão foi colocado no carro fúnebre.

Não sei por que cargas d’águas, antes de seguir para o cemitério, a família resolveu fazer uma volta no quarteirão, a pé, acompanhando o carro fúnebre, e lá fomos nós acompanhar também, para não ficar chato. Sabe como é...

O carro foi andando à passo de tartaruga e as pessoas iam atrás, acompanhando, no mesmo passo. Já na primeira esquina, estávamos banhadas em suor e com muita sede outra vez, pois como já disse, o sol estava rachando e a ressaca era grande. Parecia que aquele carro não andava nunca, minhas amigas e eu começamos a nos entreolhar, tentando encontrar uma maneira discreta de sair daquele cortejo. Não deu!Tivemos que fazer a volta toda. Quase desmaiamos e por isso, decidimos não ir ao enterro.

Os fatos que narrei, ocorreram há mais de dez anos e até hoje não sei como não nos expulsaram daquele velório. Toda a vez que conto essa história lembro da carta da morte, que apareceu na consulta com o Pai de Santo, na noite anterior.

Eu costumo evitar velórios, mas depois desse, tive que ir em mais dois, pois os falecidos eram pessoas bastante chegadas e eu não tive como evitar. É claro que eu dei mais uma porção de gafes, mas isso são outras histórias que vão ficar para uma próxima vez.

A Alquimista
Enviado por A Alquimista em 24/06/2010
Reeditado em 23/06/2011
Código do texto: T2339662
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2010. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.