A BANDEJA MAL-ASSOMBRADA

Era circular e de aço inox. Pequena, com duas estreitas ”asas” para apoiar os dedos no caso de se levar ao forno. Chegou coberta por um pano quadriculado, que também cobria dois pedaços de bolo. Minha irmã gostava de cozinhar e de vez em quando aparecia com algum quitute para a gente experimentar.

Como quase sempre acontecia com os objetos que levávamos para a casa uma da outra, esqueceu-se de levar a bandeja de volta.

Comecei a usá-la normalmente, era ótima para ir ao forno gratinar as berinjelas preferidas do meu marido e para servir pequenas porções de saladas e queijinhos. Eu a guardava junto dos pratos, sempre a última da pilha. Estando sempre à vista, para lembrar-me de entregá-la quando minha irmã viesse em casa.

Certa noite, quando as crianças já dormiam, meu marido e eu alugamos um filme de mistério e nos enroscamos no sofá com uma tigela de pipoca enquanto mantínhamos os olhos fixos no desenrolar da história.

De repente, levamos um susto. A pilha de pratos dentro do armário pareceu que tinha desmoronado sobre os copos. O barulho foi tão grande que pensei que as crianças pudessem ter acordado.

Olhamos espantados um para o outro e meu marido, aconchegando o cobertor, falou:

- Você arrumou de mau jeito a louça.

Levantei-me e fui preparada para catar os cacos. Abri o armário e lá estava: tudo certinho no seu lugar. Os copos, os pratos, as taças enfileiradas no fundo do armário e a bandeja, exatamente onde eu a havia deixado. Fiquei intrigada.

- O quê aconteceu? - Perguntou meu marido lá da sala.

- Não sei – disse eu voltando a me sentar, mas eu sabia que minha cara era de alguém com cara de bobo – está tudo normal, não quebrou nada.

- Então não foi aqui – sentenciou – deve ter sido no apartamento vizinho. Eu falei pra você que esses apartamentos não são seguros em matéria de som. A gente precisa tomar cuidado até com o que se fala em sussurros.

- Não exagera! – respondi já aparentemente convencida – e volta o filme aí.

Aconteceu de algumas vezes eu ouvir a porta do armário bater com força quando não havia ninguém na cozinha, mas nunca dei muita importância, sempre achando que o som poderia ser de outro apartamento ou lá de fora, até que um dia...

Levei meu filho mais velho à escola, coloque o mais novo na sala no meio de um punhado de brinquedos e me sentei à mesa da cozinha para almoçar. De onde eu estava podia assistir à televisão na sala e vigiar meu filho de três anos que brincava no tapete.

Diante de meu prato com arroz e pequenos pedaços de frango estava a tal bandeja. Nela eu havia colocado alguns rabanetes cortados em grandes pedaços, sem tempero algum, porque é assim que os aprecio.

Enquanto comia percebi que a bandeja deslizou lentamente para a esquerda. Não dei atenção porque achei que poderia ser uma ilusão de ótica, uma vez que eu estava dando atenção ao que acontecia na sala.

Logo depois ela deslizou para a direita, só que dessa vez eu não tive dúvidas. Não era uma simples impressão, eu vi realmente ela se mover. Incrível como a mente humana busca imediatamente uma explicação para os fenômenos antes de entrar em pânico.

Naquele momento meu bom senso me disse que deveria haver um lápis, ou algo parecido, sob a bandeja. Era a única explicação.

Levantei a bandeja. Não havia nada. Aliás, sobre a mesa não havia mais nada além do meu prato e a tal bandeja. Meu bom senso voltou a argumentar que eu deveria estar tão cansada com o dia-a-dia que estava vendo coisas. Ou então era mesmo uma ilusão de ótica que eu não conseguia explicar.

Enfim, não dei muita importância para aquilo. Levantei-me, peguei a bandeja, coloquei mais um pouco de arroz dentro dela, espalhei os rabanetes sobre o arroz e fui para a sala com ela na mão. Sentei-me no sofá para acabar de comer e meu filho aproximou-se para comer de meu prato, como as crianças costumam fazer.

Quando levei o garfo à boca um pedaço de rabanete que estava dentro da bandeja pulou, literalmente, na minha testa. E bateu tão fortemente que senti como se alguém o houvesse arremessado na intenção de machucar. Olhei para o pedaço de rabanete caído no tapete e ouvi meu filho dizer admirado: “Mãe! A comida pulou em você!”.

Contei para o meu marido o tal fenômeno e ele riu. Depois encontrou uma série de explicações racionais para o acontecido e, para eu não passar por idiota ou coisa pior, concordei com ele e não toquei mais no assunto.

Dias depois minha mãe veio nos visitar e tomar o lanche da tarde conosco. Não mencionei nada a respeito dos fenômenos, receosa de que ela me julgasse meio maluca. Aliás, até eu já estava me convencendo de que devia haver alguma coisa errada comido. Quando ela se foi levou a bandeja com um pedaço de torta de banana, que meu pai adorava.

No domingo seguinte, como fazíamos todos os domingos, fomos almoçar na casa de meus pais. Era costume os filhos se reunirem nesse dia para o almoço em família. Depois do almoço, quando já estávamos sentados na sala com meu pai, minha mãe saiu da cozinha com a famigerada bandeja na mão e perguntou:

- De quem é essa bandeja?

Pelo tom da sua voz parecia uma censura, como quando a gente era criança e ela perguntava quem havia mexido nas suas coisas. Imediatamente apontei minha irmã: “É dela!”.

- Pois trate de levar isso daqui – disse minha mãe entregando a bandeja à minha irmã. Todos olharam espantados para ela. Meu pai levantou os óculos, encarou minha mãe com aquele ar desconfiado e perguntou:

- Que é isso, Bem? Ficou doida?

- Se não quer acreditar, não precisa. O fato é que vem acontecendo coisas muito esquisitas com essa bandeja. Primeiro, numa noite dessas, pareceu que todas as panelas rolaram pelo chão da cozinha. Quando fui ver estava tudo normal, nada fora do lugar. Dias depois coloquei a bandeja no escorredor de louça enquanto arrumava a cozinha e ela literalmente voou em direção ao meu rosto. Se não desvio o corpo, tinha me cortado o pescoço.

Todos olharam para minha irmã.

- Não é minha – disse ela – é da minha vizinha. Ela me deu com alguma coisa e acabou ficando em casa.

- Pois trate de devolver imediatamente – ordenou minha mãe – essa mulher deve ser profundamente apegada às coisas dela e é essa energia que está movendo essa bandeja.

Meu pai caiu na gargalhada. Sempre cético, zombava de tudo que não fosse “real”.

- Que é isso, meu bem? – disse, abraçando minha mãe para amenizar o efeito da gargalhada – Você deve ter colocado de mau jeito e a bandeja deve ter escorregado.

- É mesmo? Com toda força de baixo para cima? – respondeu ela se desvencilhando do abraço – Não me interessa se acreditam ou não na minha palavra e na força de certas energia, o que interessa é que é preciso devolver essa bandeja o mais rápido possível.

Acabei contando o que havia acontecido comigo e todos concordaram que aquilo era mesmo esquisito e a bandeja um tanto “mal-assombrada”. Menos meu pai, que balançou a cabeça, recolocou os óculos e deu um risinho disfarçado de quem não acreditava em nada daquilo, mas preferia ficar quieto e se divertir com as nossas fantasias.

Minha irmã levou a bandeja embora. Envergonhada por reter por tanto tempo a tal bandeja, não teve coragem para devolvê-la pessoalmente. Quando todos já dormiam, colocou-a sobre o muro, diante da janela dos fundos da casa da vizinha.

Depois que encontrou sua bandeja, a mulher ficou tão contente que parecia ter reencontrado um parente querido depois de um longo tempo de ausência. E comentava:

- Que bom que apareceu! Eu pensava nessa bandeja todos os dias. Não me lembrava para quem havia emprestado, mas todos os dias eu chamava por ela! Sonhei muitas vezes que a encontrava. Finalmente, voltou para o meu armário”.

Embora fossem vizinhas próximas, minha irmã nunca havia entrado na casa da mulher. O que se sabia (por conta das fofoqueiras de plantão) era que a tal vizinha tinha lá umas manias esquisitas. Não se desfazia de nada que era seu, por mais velho ou inútil que fosse. Inclusive, e isso eu e minha irmã comprovamos depois, a mulher guardava numa estante, cuidadosamente organizado em pastas de arquivo, todas as contas de água e luz pagas em vinte e cinco anos de casada! Sem falar nas notas de supermercados, cupons, talões de cheques e outras coisas, absolutamente organizadas em ordem cronológica!

Essa história é verdadeira, embora meu pai, meu marido e muita gente não tenham acreditado. Mas nós, as mulheres da família, nunca duvidamos das palavras de minha mãe. Ela sabia o que estava dizendo.