[X - ... E o Buriti Tem Razão]
[...dos "Treze Contos Absurdos", esta onírica transfiguração]
... Como eu disse, a minha visão agora sobrevoa a vastidão dum cerrado tão seco, tão seco que dá sede só de olhar. Baixo o vôo do olhar entre os carrascais, e percebo que estou só. Começo a caminhar; nem há que pensar no que mais eu poderia fazer, travar os passos nessas agruras seria pior, seria a morte. A escolha é caminhar ou caminhar... mesmo que isso me conduza a paragens cada vez mais hostis. O calor é atroz e sinto comichões pelo corpo todo; deve ser por causa essas minúsculas sementes voadoras, ou do pó que se esfarela das folhas, das cascas secas e se mistura ao meu suor. As plantas espinhosas e a vegetação intrincada exigem braço forte para abrir uma picada. Zumbem as cigarras ao calor do dia, e ao longe diviso um bando de urubus que circulam em vôo baixo sobre a carcaça de um boi, na certa, morto de picada de cascavel. Aliás, a cada passo, sinto a presença destas terríveis cobras. Se soar o chocalho em meio ao matagal do cerrado, queira a sorte que se esteja fora do alcance do bote, e é bom saber logo onde está a cobra, ou serei comida de urubus.
A região é um deserto de homens, mas se os houvesse por aqui, nem fariam diferença, já que não me entenderiam, pois falo outra língua, disso tenho absoluta certeza. E, além disso, estariam na mesma situação que eu, tentando varar o carrascal, e na certa, pelos meus andrajos, eu seria tomado por um bandido que se evadiu da prisão de alguma cidade perdida nestes gerais de Minas; afinal — isto é o que eu pensaria deles!
E olha, vou te contar: todo mundo não diz que tem o come-quieto?! Pois tem também o bebe-quieto [e não sou eu, pois se bebo, choro!]: é a palmeira do Buriti que bebe quietinha, quietinha no tempo, a água fresca daquelas lagoas das baixadas das capoeiras... o vento dá nas suas folhas e elas me segredam:
Shsss...shsss... inútiiiil, a-toa, a-toaaaa!
Shsss...shsss... inútiiiil, a-toa, a-toaaaa!
Shsss...shsss... inútiiiil, a-toa, a-toaaaa!
Será que o Buriti quer dizer que a vida é inútil? Que o homem é um projeto que já nasce fanado, um osso seco, de miolo chupado de todas as essências, abandonado no meio do carrascal do cerradão?
Acabei aprendendo que o Buriti tem razão e fiquei assim, meio-besta, perdido! Pobre de espírito, não sou não, mas de bolso... nem te conto!
Em pontos esparsos, surgem regiões que se destacam na paisagem sofrida como verdadeiras ilhas verdes. Estas ilhas não poderiam ser propriamente chamadas de oásis por que, ao seu redor, existe vegetação baixa por toda a parte, mas são, de direito, oásis pela descontinuidade verdejante que impõem ao marrom do cerrado semi-árido. Aproximo-me de uma dessas ilhas verdes e sinto uma aragem morna... ouço o farfalhar de palmeiras, ergo os olhos para admirar os enormes buritis à margem de uma lagoa, numa pequena depressão do cerrado; os buritis matam a sua sede ali, naquela lagoa de baixada.
Extenuado eu caio à beira da água e bebo, sem temer os bichos que possa haver por ali. Depois, deito-me a adormeço à sombra lançada por um dos buritis. E agora, sonho que sou um buriti. Como todo Buriti que se preze — e agora eu sou um desses, por isso escrevo já o meu nome em maiúscula—, eu estou plantado aqui, junto dessa lagoinha mirrada da seca do cerradão de Minas. O fogo deu no matagal e chamuscou meu tronco, mas eu sobrevivi e os papagaios ainda podem pousar nos meus cachos de cocos. Mas dou graças — essa expressão incomoda-me, sou um Buriti orgulhoso — sim, dou graças por estar plantado em minha paisagem. Um Buriti fora de sua paisagem, desterrado de suas lagoas, não é nada, nem de palmeira ornamental serve!
Mas eu-Buriti não descanso no meu orgulho de árvore altaneira e majestosa, dominante da paisagem de mato ralo; cumpro a minha sina de viver cercado das mordeduras das circunstâncias. Eu gosto de picar a paciência alheia com algum trocadilho, afirmo que eu sou eu-Buriti e as minhas lambanças de vida, e para azedar mais, nem dou a fonte! Eu-Buriti estou acostumado a ver a miséria ao meu redor sem me abalar; sem perguntar a causa de... dou sombra aos andarilhos cansados que perambulam por estes meus cerrados; se estão perdidos, eles me dão um jeito de me achar assim, no longe do horizonte. Por um tempo, que tudo é vige nos provisórios, e eu lhes sirvo como referência da paisagem que os desorienta; sou feito aquela meta dos seus sonhos dourados que nunca é atingida. Sei que muitos desses andarilhos dos carrascais me invejam; mas, coitados, quem nasceu para ser um eu-Pau-Bosta nunca vai chegar a ser um eu-Buriti, belo e forte como eu; determinismos da natureza dificilmente são superáveis!
De longe, sirvo de referência para aquelas almas penadas que andam a catar lenha nestes carrascais, tal como essas velhas catadeiras de lenha, tão miseráveis que não lhes sobra o dinheiro para um botijão de gás, e que, por preguiça, roubam os mourões de vinhático das cercas de arame das minhas terras. Essas velhas pobres conhecem-me e respeitam-me; ouço-as murmurarem entre si, “ah, que Buriti danado de bonito!”
Súbito, um coco cai em minha cabeça e acordo com a dor causada pelo impacto. Não há velhas nas proximidades, não há cercas de arame com mourões de vinhático — não há nada além dos buritis e eu. Tudo que vejo à minha frente é mais chão a palmilhar. Os buritis ficam — como sempre — eu parto.
E a seguir — o sonho agora é outro — estou já a caminhar por uma rua em declive, onde, num certo restaurante...