[III - Transitando pelo Sonho de uma Rua – Variante II]

... e dos "Treze Contos Absurdos", este está imiscuído de realidade

A.,

Madrugada. Agora, a data é qualquer... ou é sexta-feira, 9 de março de 2007, e estou aqui, com você, nestas linhas, tramas de nossa teia que vão me saindo pelos dedos nervosos. Colapsos, sucumbências do meu tempo — é quase mórbido esse impulso — eu preciso escrever a data assim, por extenso. Preciso, tenho necessidade; escrevi, você leu — pronto!

Sabe, eu já lhe disse, sou assim: de novo, eu dormi errado, isto é, em horas erradas, e acordei no meio da madrugada. Vou levar dias para ajustar as horas de sono com os meus afazeres, aqueles, que tanto odeio, mas pagam-me o pão! Nem eu mesmo tolero essa minha inconstância, essa minha incapacidade de formar hábitos, por mais simples que sejam. Ajustar quer dizer: dormir no tempo em que as pessoas dormem, trabalhar quando trabalham — ser um sujeito comum, por que me é tão difícil apenas viver como os outros? A noite foi feita para que nós a ganhemos, afinal

"A la noche la hizo dios

para que el hombre la gane,

transitando por un sueño

como si fuera una calle.

.....

La noche tiene un secreto

y mi corazón lo sabe,

y a la noche la hizo dios

para que el hombre la gane."

Ganhar a noite... faz sentido dizer isto, ganhar a noite? Gosto destes versos de Atahualpa Yupanqui, gosto não sei por que, se não os entendo bem... Acho que o detalhe "transitando por un sueño// como se fuera una calle"... isto é "ganhar a noite"? Se for, estou bem, ganho várias noites, várias!

Transitar pelo sono... ou pelo sonho... qual a diferença, em espanhol a palavra é a mesma. Também, só se sonha mesmo dormindo... transitar por um sonho como se fora uma rua... Eu transito por uma certa rua, e nela vejo uma cena recorrente.

E que rua é essa? É uma rua calçada de pedras, faz uma ampla e suave curva definida pelos caprichos de um “córrego da cidade” — um desses pequenos cursos d’água que levam os esgotos das casas; indústrias não há, na certa, elas fogem dessa cidade. A cena se passa na concavidade descrita pela rua; vejo-a como se eu a estivesse observando a partir do vértice da curva. A calçada do lado oposto ao vértice é reta, portanto, delimita com os dois braços da rua, um amplo largo em forma de triângulo, se fosse real, não sei se não é, o lugar seria chamado Largo do Triângulo, ou, simplesmente, Triângulo.

Entro nessa rua geralmente à tardinha, caminho lentamente pela calçada, tendo, à minha direita, a murada baixa do córrego, e à esquerda, a ampla rua, uns 20m de largura; vai assim até chegar ao Triângulo. Ser de encruzilhadas e de lonjuras, eu tenho um gosto especial por pontos críticos — paro no vértice da curva, é o meu ponto de observação, dali, olho a cena que se desenvolve na concavidade ampla. Ao longe, do outro lado do Triângulo, na calçada reta defronte ao vértice da curva, casas comerciais antigas, com portas de madeira, bares, lojas de discos, bancas de jornal...

Qual cidade, que rua, que córrego, que época, eu não sei. Não me lembro em que instante de minha vida eu comecei a ver e rever este lugar, mas faz muito tempo! E a cada vez que o revisito, acrescento ou retiro algum detalhe, esta carroça com uma mula baia, com uma reata de tiras de borracha de pneu velho; não me lembro dela na outra visitação, e provavelmente não estará na próxima. Pudesse, isto é, fosse eu um pintor, faria uma tela dessa visão, uma não; várias, pois os temas demudam a cada vez que surge a aparição; são diferentes filmes passados no mesmo cenário. A geografia é a mesma, os atores, a trama, os detalhes, mudam, cada aparição é única e não se repete.

Assim se passam as coisas: inicialmente, eu vejo a cena daquela rua como uma foto levemente esmaecida; depois, como um filme começado a partir da cena congelada na foto — aos poucos, a rua vai se agitando, movimentando-se, criando vida; figuras imóveis como estátuas passam a andar, gesticular, tal como se vê em certos filmes, o homem com o pau de frangos ao ombro era uma estátua, agora, oferece frangos vivos aos passantes. O velho sentado na porta da vendinha começou, ou continuou, na foto a sua mão estava parada no ar, a picar o fumo de rolo, a mulher rampeira desenhou um ar lascivo no rosto antes apenas liso, tenta atrair aquele roceiro que vai para a Rodoviária, curvado sob o peso de dois sacos brancos, suas malas. O agenciador de hóspedes da Pensão B. gesticula, grita, oferece as comodidades da Pensão, fala dos preços, uma pechincha!

Hoje, há no Largo do Triângulo uma feira de bugigangas, grupos de catireiros de bicicletas, relógios, éguas de carroça, não sei por que éguas e não cavalos, é o jeito de dizer; montes de palha de milho, é tempo do milho verde assado em braseiros na calçada; cães vagabundos, prefiro dizer vagamundos; meninos jogando de bolinhas de gude; velhos espiando a cena, como eu que estou cá no vértice da curva; um pedinte pardacento, o seu chapéu de feltro tem um buraco por onde escapam mechas de cabelo; biscatinhas, essas pré-putas, pois ainda são virgens, acredite-se, esse tempo é assim, e putas de ofício misturam-se num vaivém pela calçada; engraxates descalços, um deles machucado, coitado, perdeu a unha do dedão, topada numa pedra; homens armados, chapéu baixo, abra quebrada, são jagunços, não policiais.

Numa aparição anterior, o largo surge tranqüilo, vazio, só umas poucas carroças de aluguel, fazem fretes, mas a esta hora, o movimento está fraco, ainda não fizeram para pagar as despesas do dia; hoje estão assim, vagos, os olhares dos carroceiros, essa gente vive da mão para a boca. Sob um céu azul, azul, sol quente, o largo quase dorme. Está limpo como o céu, não sei como pode alguém falar que o céu é limpo, será que não há lixo no céu, corpos etéreos não comem, não bebem, não fazem sexo, um lugar terrivelmente monótono deve ser o céu, tal como este largo da tarde de hoje. Dizer que o céu é limpo parece um atrevimento, frase típica dos poetas; Dante esteve lá, tomara se pudesse confiar em sua palavra, se é que palavra de poeta merece crédito...

Às vezes me pergunto se esta rua vai dar num porto de mar... nunca a segui até o fim, pois o sonho termina nesta curva ampla, vejo a rua seguir... para onde? Quando tento ir além da curva, a aparição some; nunca saberei aonde vai dar essa rua, essas águas. Será o cemitério, o destino desta rua? E por que me deu na teia de indagar se o cemitério estaria no fim da rua?

Ganho a minha noite quando uma das aparições dessa rua bucólica volta ao visor amplo da minha mente — penso em “A Cidade em Letras” — cenas de um trabalho narrativo poético que venho lutando, lutando nada, mentira; venho é enrolando, enovelando, para terminar! Se a sensação de finitude me ataca, sinto a morte bafejando em meus ouvidos, tenho ganas de apressar, concluir o livro; mas, humano, tenho esse mal crônico — sou tomado por uma sensação oceânica de ser, tinjo-me de eternidade, esqueço-me dos meus dias... e o livro fica para o depois, para o depois de depois de minha morte; quem o terminaria por mim? Alguém que sonhasse os meus sonhos, eu não tenho!

E amanhã será outro dia branco, sonambulando em cima de instrumentos, sentindo as vozes, as coisas, as gentes, tudo longe... Na manhã de hoje, e falo do hoje que foi ontem, dia que seguiu à outra noite ruim, sim, na manhã deste hoje, havia fumaça na estrada, queimada ao lado da pista. Nada sério. Apenas surgiu uma dúvida... seria uma coisa dos meus olhos mal-dormidos? Não sabia dizer. Demorei a entender, era mesmo fogo, em manhãs assim, a mente lenteia, preguiçosa. Assim como se embrenha, se perde nessa visão daquela rua, rente à curva do córrego da cidade...

Não, eu não sei se existe isto de amar errado... se a gente ama, então ama, sabe, sente que ama, não pergunta se é errado, ou certo, pronto. Mas existe isto de amar o impossível? Ou a gente torna impossível aquilo com que, de fato, não sonha, mente que sonha? Os sonhos instrumentam a vontade, dá-lhe rumos, braços, forças... A gente quer tudo agora, agora, amanhã, será tarde... ou será que amanhã, se não for um amanhã muito distante, o sonho ainda persistirá? Há sonhos recorrentes, como o daquela rua, ela existe, em algum lugar deste mundo, e vem-me a mente nessas aparições, nesses filmes... O amor — um sonho recorrente, como o transitar pelo sonho desta rua?

É madrugada, estou só. Não quero ir para os bares, ou não sei se quero, o que já é meio caminho andado para, daqui a pouco, um degrau a mais na ansiedade, eu ganhar a rua dos bares. Ganhar a rua... ganhar a rua... transitar pela rua, como num sonho, assim, bem ao revés dos versos do poeta. Deambular à toa, ouvir o ronco do motor do meu carro, o barulho dos pneus no asfalto. Embalar-me nesses sons. Nos próximos minutos decidirei isso. Quando eu puser a última palavra neste texto que estou a lhe escrever, saberei se vou. E amanhã você saberá se fui... a menos que eu não volte dos bares. Dê-me um motivo convincente para eu ficar fora dos bares — ah, acho que você não sabe de motivo nenhum, vai ver, está com vontade de vir comigo!

Mas, você não acha que é muita presunção pensar que a gente vai sempre voltar de onde foi? É e não é possível que eu volte, há tantas formas da morte nos alcançar, tomara não me exponha ao ridículo, quero uma morte grande, admirável! Cá dentro de mim, saio para rua, para os bares, para o arco da noite que cai sobre a minha cabeça; mas espero voltar... a menos que esteja morto, até um cão vagamundo volta; aquele cão amarelo que eu vejo passar nos dias chuvosos está voltando, os seus são modos de quem volta, não está indo! Nisto, voltar, sou melhor que um cão. Sou? Invejo o cão, não sabe que vai morrer, e não está nu, pois ele [já] é nu, sem o saber também. Sou, e não sou.

Ah... e se eu for para os bares, vou me lembrar de não beber demais, vou pensar que você está comigo e cuida de mim. Cuidará depois do meu sono, nunca vi, nem cheirei você, não toquei o seu rosto com a minha testa, um modo que tenho de comprovar a realidade, mas você entra nos meus sonhos... quem sabe possa ver aquela rua comigo? Juntos, possa a aparição nos permitir ver aonde ela vai nos levar!

Beijo,

C.

Carlos Rodolfo Stopa
Enviado por Carlos Rodolfo Stopa em 02/06/2010
Reeditado em 22/04/2012
Código do texto: T2294527
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