[XII - A Partida]
Ainda os Treze Contos Absurdos - e dou por bem avisado: este é o território dos sonhos...
[... porque o Agora não passa de um simulacro...]
É inevitável — eu terei partir. Já que a vida é movimento, estar vivo é também a presteza para romper a inércia. Não espero que a minha partida seja uma cura para o tédio dessa vida bucólica, e com toda a certeza, sentirei uma falta impreenchível da suave existência de agora. No entanto, preciso ir, mesmo sem outra razão objetiva para isto que não seja apenas a busca de um futuro — todos buscam um futuro, como posso eu ser diferente? É como ir até a torneira da água da rua que fica lá na varanda de lavar roupa e buscar um balde de água cristalina, lampejando ao sol... o futuro brilha, já me disseram!
A esta hora da tarde não há ninguém em casa; minha mãe foi ao armazém e os meus irmãos estão na escola. Há uma quietude morna no ar parado, há uma calmaria de coisas que perderam seus manipuladores: a torneira fechada; a vassoura escorada no canto da cozinha; o moinho de café com a manivela em baixo; o rádio desligado; as cadeiras reunidas em torno da mesa; a janela, estática, entreaberta para a rua. Na sala, reina o silêncio; não se ouve o rangido das tábuas do assoalho que, ao balançar sob os nossos passos, fazem tinir os vidros na cristaleira. Sobre a mesa de centro, está um exemplar da revista “O Cruzeiro” que a minha mãe deixou aberto na página da reportagem de David Nasser. Tudo na casa são coisas inertes à espera da ação dos vivos.
Eu saio pela porta da cozinha e caminho por entre estas árvores antigas de meu quintal; e detenho-me aqui e ali para avaliar quanto tempo esta ou aquela fruta ainda leva para amadurecer. Enquanto me dirijo para as bananeiras ao fundo do quintal, brinco com uma varinha verde que cuja ponta faço trepidar no chão seco e observo os minúsculos grumos de terra que a pontinha da vara arremessa para longe dos meus pés. Existem poucas coisas em meu quintal: a enxada dependurada na trave do minúsculo telhado da privada de buraco; algumas toras de lenha por rachar, pois, grossas como são, não poderiam ser queimadas no fogão de lenha; o machado encostado à parede da privada — as ferramentas de um lar bem cuidado com o meu jamais são deixadas ao sol ou na chuva.
Do lado direito de quem olha para o fundo do quintal, está a varanda do tanque de lavar roupa; lavanderia é uma palavra por demais sofisticada para designar esta varanda rústica onde há o tanque, um batedouro feito de casqueiro de angico, a trempe de tijolos soltos onde fica o tacho para ferver roupas. Nas traves da varanda, restos de sabão de bola, pedras de anil, alguns trapos. Mais adiante, indo na direção do fundo do quintal, fica o quarador: uma tela de galinheiro esticada sobre a ponta de seis esteios curtos, interligados por um arame liso que não deixa a tela ceder com o peso da roupa molhada. Entre a varanda e o quarador há uma enorme moita de erva-cidreira que vive das águas que escorrem da lavação de roupas; eu não sei como a planta não morre com o sabão da água de enxágüe.
Do meio do quintal, olho o céu e medito: ah, estes tempos de anchura infinita... infinita como o azul profundo deste céu de verão! Há uma enorme confiança de que o futuro que eu parto para buscar será melhor, esta é uma confiança tácita; todos a temos, mas dela pouco ou quase nada falamos — por que falar de algo em que todos acreditamos? É irritante que alguém se ponha a nos pregar o pessimismo, pois este é um tempo em que até a morte é vista como uma fatalidade serena, se é que estas palavras podem se combinar assim. Isto que vivemos agora não tem consistência, escapa sempre; o agora não passa de um simulacro do que ainda há para viver — o futuro é algo que existe em inesgotável profusão no estoque da oficina do tempo, é só a gente partir para ir buscá-lo. O que é mesmo que havia no horóscopo do “Almanaque do Pensamento”? Nem dá para conferir se as previsões foram acertadas, pois o do ano passado já se perdeu, alguém tomou emprestado e não devolveu; é só esperar a edição do próximo ano — o “Almanaque” é uma demonstração de que futuro virá sim!
E agora, enquanto cuido desta plácida horta de couves, deste canteiro de salsa e cebolinha, temperos que a minha mãe jamais dispensa, masco uma folha de hortelã e sinto que o mundo não me acumula de necessidades artificiosas que me enchem de ansiedade — bastam-me, portanto, este quintal, estas poucas coisas que tenho; a quem pouco não basta, nada basta — aprendi com a minha mãe que nem sequer sabe quem foi Epicuro. Amanhã será como sempre foi: igual a hoje... mas então, aquele futuro — para quando será?
Chegando ao muro que dá para rua dos fundos, ouço uma música estranha, bastante diferente das músicas que estou habituado a ouvir. Subo numa pedra e espio a rua. Vejo um grupo de rapazes que cantam e dançam ao som daquela música que vem do que seria um rádio portátil — se emite som, tem dial, ponteiro de sintonia e de volume, só pode ser um rádio; e portátil sim, pois está ligado no nada. Eles usam bonés, calçam tênis, usam roupas bem diferentes das minhas, usam camisetas pintadas com dizeres em inglês, coisa estranha, pois na escola predomina o francês. De fato, eles não cantam, e nem dançam — eles declamam a música e se retorcem mais que contorcionistas de circo! Quando eles percebem minha presença, começam a troçar de mim e a fazer gestos de ameaças. Um deles veio gingando até o muro, deu um salto e tentou me dar um tapa; mas eu pulei da pedra em que estava, peguei meu estilingue, a capanga de pedras e voltei a espiá-los. “Seu idiota, você de novo! Vou dar jeito em você” — gritou o que tinha tentado me bater. Saquei do estilingue, comecei a disparar contra eles uma rápida saraivada de pedras, mas sem intenção de acertá-los — só para assustar, pois sei que uma pedrada assim matou o gigante Golias — e deu certo: saíram correndo rua afora, prometendo voltar para me bater! Sou bom de briga, a ameaça não me assustou: que venham, estarei preparado!
Desci do muro e voltei a casa. Lá estava minha mãe, preparando o café da tarde. Enquanto ajeitava os bolinhos fritos na bandeja, ela sorriu-me:
— Então? Ainda pensa em partir?
— Não, mãe, eu acabo de afugentar o futuro a pedradas de estilingue!
Sem saber do que se passara, e demonstrando que não fazia a menor fé nas minhas promessas de partir, ela tornou a sorrir:
— Eu sabia, eu sabia! Você, sempre com a cabeça cheia de sonhos! Mas você precisou do estilingue para espantar o futuro?!
Foi a minha vez de sorrir-lhe:
— É... a senhora vê?! A gente precisa se preparar para o futuro!
Ela continuou sem entender o que meu estilingue tinha a ver com espantar o futuro, mas sabe que sou cheio das imaginações, essa seria mais uma! E tranqüilizou-me com seu otimismo habitual:
— Ora, não se preocupe à toa, a própria vida cria o futuro!
Mas então, além dos muros do meu quintal, a vida vai criar aquilo que eu vi na tarde de hoje — aquela gente agressiva, aquele ritmo que nem música é, aquela dança, aquelas contorções simiescas? Que futuros a vida cria... Mas ainda assim, volto a dizer é inevitável — quando eu acordar deste sonho do passado, terei de partir! Ah, que futuros a gente sonha!