GALAXY

- Puta merda! O que você fez, seu imbecil?

Já era dia e José Antônio mal sabia. O ar da manhã gelada batia sem dó no rosto de Helena enquanto ela lutava para arrancar a calcinha suja de terra. Ao seu redor, um campo de mato orvalhado e resquícios da noite abandonada.

Helena primeiro molhou os lábios pra depois abrir os olhos. Sabia que o que eles podiam ver a envergonharia. E de fato, a razão lhe serviu dedutivamente bem: vários seres não-recicláveis jaziam em posições sexuais variadas, congelados no cansaço do orgasmo inalcançável; eles abençoavam as várias latas de energéticos. Ela se lembrava claramente que o que via era o resto de uma manifestação política.

A calcinha cheirava a álcool. Helena se desfez dela enquanto José Antônio procurava desesperadamente seu cachimbo escavando o mato alto. A calcinha lhe trouxe o cachimbo, ele teve nojo e se desfez da desfeita, levando o cachimbo à boca com as folhas de papoula na mão.

- Eu não fiz porra nenhuma, foi o puto do Henrique que chamou os caras pra tocar a parada.

Helena se aproximou de José Antônio com um saião hippie de uma mulher desacordada chamada Carmem, cujos cabelos foram raspados pela metade direta do couro cabeludo. Helena manteve a dúvida sobre se aquilo ocorrera antes por moda ou depois por protesto. José, que havia terminado o primeiro fumo entre choques térmicos e lapsos cômicos do que foi de memória do dia anterior, olhou a moça se aproximar com desconfiança forçada para sustentar o charme. Helena puxou um galão de lata e se sentou ao seu lado.

Os dois rapazes que dialogavam alto demais para a sensibilidade auditiva matinal de Helena se distanciaram um pouco na busca das chaves da picape.

- Liga pra ele, cara! Você não vai querer que o Madruga acorde sem uma explicação do que...

Helena olhou para José Antônio e reparou com eficiência incomum no seu pescoço encardido com riscas de sangue, fato esse que a iniciou numa série de questionamentos acerca do passado do rapaz e sua ligação com o dela. Os dois estavam no mesmo círculo sonoro-eletrônico de batidas acordadas com o pró-unificação dos CUTB, e havia a forte tendência de um encontro numa mesa de poker ou entre a partilha de um cano de cerva. Do nada, sua mente desnudou o rapaz e Helena só desejava adivinhar suas proporções genitais. Imaginou se elas seriam capazes de lhe dar prazer e se o corpo dele saberia como se comunicar com o dela. As mãos que eram delicadas com o cachimbo suportariam a fragilidade dos ombros gemendo e o quadril saberia se mover ao som da melodia de seus dedos.

- Me dá uma tragada?

- Você fuma cachimbo?

- Não, nunca fumei.

José Antônio passou o cachimbo para Helena e sua mão, sem querer tocou nos dedos da outra. Ele sentiu de repente a frieza da manhã. Ao seu redor toda a desgraça do que foi um protesto sem fundamento. Sua capacidade de acordar um dia depois do outro mantendo os olhos abertos para ver o que mais de patético existia em sua vida ainda o deixava atordoado. “Quando você vai parar de respirar um minuto em homenagem ao minuto que perdeu percebendo a desgraça do mundo?” A Helena ao seu lado era a mais comum das Helenas antes do nome, mas ele nem queria saber da manhã dali. José perdera o gosto da papoula e choramingava silenciosamente seus pensamentos cheios de pretensão artística.

- Ontem à noite nem deu pra completar a apresentação da proposta cultural. Ia ter uma performance bem bacana da persona universitária atual. Digo, da brasileira, né?

Ele tomou o cachimbo de volta e notou que Helena lhe sorria no apelo de uma conquista.

- Pois é. Mas se quer saber nem existia a possibilidade de se levar isso a sério. Você fazia parte de algum conselho? (ela o olhou se esquecendo que sorrira antes buscando sexo) Pra falar a verdade, eu nem sabia que isso existia. Vocês foram bem estúpidos de fazerem isso aqui. A primeira sexta do mês é o dia da Galaxy.

- Sabíamos disso, na verdade esperávamos que isso sustentasse o projeto.

José soltou o cachimbo, segurando-o com os dentes pelo canto da boca, fazendo com que Helena desestruturasse a cena na adição de um novo aspecto masculino ao rapaz. Ele lhe estendeu a mão direita.

- Faço parte do Conselho sul da URSERJ. José A, prazer!

- José A?

- A e ponto. Significando Antônio.

- Ah... (ela riu para os primeiros raios de sol de dentro dos pensamentos do rapaz) Você queria passar mistério sobre sua identidade.

Ele deu uma longa tragada descobrindo a conexão germinativa com a moça.

- Toda identidade é um mistério. Mas não, não pretendia fazer suspense ou coisa parecida ou causar alguma impressão especial. Tipo, você nem faz meu tipo físico de garota e acordei meio mal do estômago pelo bagulho que tomei ontem.

- Você é só José Antônio?

- Isso!

Helena sorriu discretamente pra si e entrou novamente no jogo de informações interessantes sobre José Antônio. Fora o fato dele ter um nome, seus pressupostos opinativos só tinham relações com devaneios sexuais. Ela gostaria de perguntar se tinham transado na noite anterior e, com a negativa, se gostaria de transar naquele momento. No mais, ela sabia que as palavras em sua mente circulavam estúpidas num mesmo eixo; todavia não havia espaço para algo diferente daquilo: ele era um conselheiro e Helena achava tudo aquilo extremamente enfadonho.

- O meu é Helena.

Eles se olharam uma vez mais e ele finalmente entendeu que ela talvez gostasse de sexo pelas frescas horas do dia. Helena cruzou as pernas, esticando-as na grama e ele pôde intuir que a moça estava sem calcinha; seu sorriso foi cruelmente safado. No minuto seguinte, José A. já estava sentido uma excitação progressiva no seu pênis. Helena começou a cantar uma música pop de alguma novela virada de costas para José Antônio.

José deu um tapinha no ombro de Helena, chamando sua atenção. Ele balançou a cabeça num convite que a moça não precisou decifrar duas vezes. O botão do jeans soltou para quilômetros de distância indo parar na testa de Igor, um calouro de matemática que xingou alto, bocejando. Helena puxou o saião pra cima dos seios e se posicionou em cima de José A. Durante longos quinze minutos ele tiveram relações sexuais.

- Foi legalzinho.

- Desculpe, pensei que era isso que você queria.

O casal estava deitado na grama sentindo o orvalho derreter nas costas suadas. Os outros iam começando a caminhar cambaleantes, carimbando sombras nos rostos de Helena e José. Provocavam ruídos de cochicho realmente chatos àquela hora pós-coito.

- E era. – respondeu Helena após algum tempo de transe.

- É. Acho que realmente foi legalzinho...

José concordou com Helena por conveniência, mas raciocinou honestamente relembrando as fotos do sexo e reconheceu ali nada menos que uma performance meia-boca.

- A gente se vê? – Helena perguntou porque ficou com pena do rapaz de cara triste. Nunca vira um homem tão infeliz após o sexo.

- Acho que sim. Ainda vamos trabalhar aquela performance que eu te falei pra usar outro dia... – ele olhou para cara dela forçando um sorriso – que não seja o dia da Galaxy.

- Ah é! Galaxy agora só em um mês. Tá tudo limpo pra vocês e seus grupos de conselheiros discutirem seus assuntos sérios, que visam... – ela não sabia o que dizer e sua voz foi perdendo o ritmo pro constrangimento – o bem da comunidade universitária brasileira.

Helena sorriu orgulhosa de sua capacidade de falsear sorrisos.

- Você é uma artista, Helena?

- Eu? Não! Quem dera... Não – ela cuspiu um riso de descrédito – nada a ver.

- Você faz que curso.

Helena pensou em responder, depois pensou no porquê dava tão pouco crédito às artes. Ela lembrou de sua amiga Carla, do tempo em que jogavam pingue-pongue no recreio do ginásio. Ela ria bem alto num tom leve e lento, e inspirava Helena a escrever a descrição do sorriso em seu bloco de ideias. Aliás, pegou o bloco no bolso e, por acaso, ele existia agora. Seria o bloco um protesto artístico?

- Olha, acho que pouco importa que curso eu faço! Deixa isso pra lá que é uma conversa muito tola. Hoje é sábado, mais um dia pra aloprar e depois é domingo e aí volta tudo ao normal. E é assim que eu escolhi viver: sendo normal e aloprando, normal e aloprando até sei lá, sabe?

- Sei. Foi bom te conhecer, Helena! Esse é um nome místico, não é? Digo, na mitologia grega e tudo. Não é assim que contam?

Ela riu presa na conversa mais chata de sua vida.

José Antônio tinha sua mente funcionando num esquema de não-comprovação racional e objetiva de falar e falar procurando ainda alguma justificativa que validasse o sexo como tendo sido bom e produtivo e não comum e inconsequente.

- Não. Ninguém nunca me contou nada.

Helena, sem graça, se virou de costas e andou, fechando o paralelo que a mantinha no jogo das palavras vazias. José bateu com as mãos nos quadris sem pistas de como pescá-la de volta pra si. A derrota forçou o rapaz a planejar uma forma de liquidar o evento sexual de suas lembranças cotidianas – a primeira oportunidade veio numa lata de cerveja que o fez recordar da reunião do CUTB naquela tarde, que logo puxou a associação dos estudantes de teatro amador e a compra de comida pra gato. Daí os pensamentos jorraram e ele se esqueceu que estava no meio de um campus fedendo a sexo e álcool num protesto desacordado dos conselhos universitários. Só existiu o viço de uma garota que sumiu dali levando uma parte sua amarrada numa camisinha. E ele se enganou quanto a isso também.

Helena dirigiu até uma padaria, onde pediu um copo de café puro sem açúcar seguido de outro num pré-pedido. Ela deixou que a quentura lavasse sua cavidade bucal, permitindo-se a isenção de pensamentos opinativos na lentidão de um cerimonial.

- O senhor pode ler a página do dia sete de abril, por favor?

O dono da padaria olhou com olhos de aborrecimento, mas tomou das mãos da moça o bloco do ginásio e começou a folheá-lo. Helena o observou ainda no ritual de beber o café devagar e lavando.

O senhor pigarreou como num palco:

- “Dia sete de abril. Hoje a escola mais uma vez anunciou o início das olimpíadas de gramática e matemática e vôlei. Já foi a terceira vez nessa semana. Alberta e eu decidimos sair da fila durante o pronunciamento e agora escrevo do banheiro feminino no terceiro andar. A gente está fumando, mas tudo bem porque já sei que vou parar aos dezoito e porque ela está cantando. Sua voz é tão alta demais e suave demais, quase numa incoerência sem saída. Às vezes, sinto que Alberta é algo pra me mostrar que eu não consigo ver...” Aqui não dá pra entender – ele resmungou – Ah... “Fiquei pensando um bom tempo no que faria da vida quando estivesse fora do colégio. Queria ser do meio do caminho, como num filme americano – um road movie – queria ser um daqueles bares de beira de estrada por onde todo mundo passa mas não fica. Sei lá, são algumas das bobagens que penso enquanto ela canta.”

Ele virou a página para verificar que ali terminara o dia sete de abril. Enfim olhou pra Helena, que bebia o café em outro mundo, que não correspondia exatamente ao passado e muito menos ao futuro; talvez fosse um mini-mundo, desses que ficam em blocos anacrônicos.

O senhor deu uma risada honesta enquanto relia uma frase.

- Engraçado como aqui você escreve: “Alberta é algo pra me mostrar...” como se ela fosse uma coisa. – ele ri novamente e olha pra Helena, que ri de volta, deixando o dinheiro no balcão.

- Obrigada.

Helena sai da padaria e dá partida com o carro de volta pra um lugar planejado em sua mente com espaçamentos para desvios de percurso propositais. Atrás do espectro vazio do carro, o dono da padaria aparece afoito com o bloco em suas mãos. Ele balança a cabeça e volta para dentro, guardando o bloco dentro do avental. Ele pensou de súbito no dia em que seria uma coisa para onde os caminhos se voltam. Tinha certeza de que o caminho daquela moça seria retornável e, para seu espanto: sua certeza era a de um homem (com ênfase livre na palavra de mais agrado). Ele podia ser a ênfase por enquanto – não haviam limites que não descansassem num regresso. E o dia era vinte e nove de maio.

J Jesse
Enviado por J Jesse em 30/05/2010
Reeditado em 02/06/2010
Código do texto: T2289111
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