[XIII - Conto de Areia: O Solitário Vôo da Coisa]
... e mais outro absurdo da coletânea "Treze Contos Absurdos"
[A Fenomenologia ensina que não há sentido oculto nas coisas]
Depois de tanta luta apenas minha,
Depois de tanta auto-idolatria do meu poder,
Depois da trágica assunção da minha finitude,
Depois minha subsunção no gênero dos fracos,
Aquela coisa, finalmente, alçou o solitário vôo
Rumo às suas próprias possibilidades...
Aquela "coisa" brotava de mim... todos sabiam muito bem disso! E mais: identificavam-na como coisa minha. Não importava saber o nome dessa coisa; e mesmo que fosse possível, a começar de mim, ninguém estava interessado em nomeá-la — era bastante saber que, por ela, chegava-se a mim, e por mim, chegava-se a ela. Estava impregnada da obra de minhas mãos, estava inextricavelmente marcada pelas minhas opiniões.
Não sei como começou, e nem posso precisar a data em que ficou nítida a presença da coisa no capinar dos meus dias. Quando vi, quando tomei tento, ela já estava pegada em mim... amanhecia, anoitecia, e ela estava junto a mim. Por vezes, eu queria, eu tentava me ausentar do nosso espaço de existência mútua — de nada adiantava, pois a coisa, pegajosa, voltava a colar-se em mim. Vivemos assim, doentes um do outro, eu dela, e ela de mim, por um bom tempo.
Como sempre acontece, sutilmente, as pequenas mudanças foram tomando vulto, e por fim, agruparam-se num novo modo de ser, de fazer, de ter: outro tempo amanheceu no mundo. Senti-me estranho, alijado dos fatos da vida — era questão de tempo: um dia, acordei cedinho e não mais a vi perto de mim; corri, abri a janela para o azul infinito do mundo e... surpresa!! Lá estava coisa, alta no céu! Voava majestosamente, altaneiramente, voava sem mim, para longe de mim, como se nunca antes em tempo algum estivera ligada a mim. Agora, ela despedia-se de mim com acenos de asas. Atônito, em resposta, eu apenas acenava fracamente com a mão frouxa, mal suspensa no ar...
Enfim, senti-me aliviado... o que quer fosse, agora, estaria em um mundo a parte do meu — para sempre. Há sempre um modo de dizer tudo de si, sem nada subir à tona do jorro de palavras: de fato, eu não disse nada! Estou pronto para morrer.