[II - A Escada]
Da minha coletânea "Treze Contos Absurdos"
... mas absurdo maior mesmo é, em tempos de leitura em elevador, publicar aqui no RL um texto desse tamanho aí, ó! Isto é um teste...
[Não há deus em meu quintal.]
Onde? Num pedaço de chão vermelho de Goiás, na boca do sertão, é onde fica este quintal que eu percorro todos os dias para chegar até o portão dos fundos, que dá para uma extensa baixada à beira do Rio Paranaíba. Antes de chegar ao portão, espraiar os olhos na baixada até o rio, olhar para a montanha de Minas do outro lado, eu percorro as estações do quintal; em todas, tenho uma parada definida.
Na primeira, uma curiosidade que se repete a cada dia, o galinheiro, quantos ovos terão sido neste dia; trato das galinhas, recolho os ovos em uma cesta de arame, foram apenas sete, alguma poedeira falhou em sua missão; ah, e os meus galos de briga, eram cinco, são só três agora, estão calmos, tudo em paz no galinheiro. Até eu voltar, a cesta de ovos ficará pendurada no prego da trave da varanda do tanque de lavar roupa.
Em seguida, cuido do solitário porquinho manhoso; por que manhoso: às vezes, ele embirra de não comer farelo de arroz; insisto, dou-lhe mais farelo, com sal, receita da minha mãe para estimular o apetite do animalzinho. Também, por que é que até porcos hão de ter caprichos assim, enjoar da comida; troco a água do pequeno cocho de cimento, retiro o estrume para ser usado na horta que fica ao lado do chiqueiro.
Continuando a percorrer as estações do quintal, eu devo regar as vinte e duas covas de tomates que plantei, os doze pés de pimentão, e os quatro canteiros de verdura de folha, dois de alface, dois de chicória. Para eu aprender a gostar de uma verdura, minha mãe diz: “pega a enxada, que eu te ensino a covar, plantar, cuidar, e você vai aprender a gostar”; foi assim com os pimentões, detestava-os, mas quando saíram os primeiros, ela disse: “não vai nem experimentar? Você que plantou, ora, com efeito...”. A mesma coisa se deu com os jilós, o almeirão amargo — o que explica isto, não sei... ou sei? “Planta, cultiva, que você aprende a gostar”... Será o que, o trabalho, a vista dos canteiros, das plantas crescendo pelos cuidados das minhas mãos, ou um sentido maior de cultivar? Será que funciona com as pessoas que plantamos no nosso canteiro... da vida?!
Depois, é a vez de olhar, e só olhar, para a caixa das abelhas — ah, já passa da hora de tirar o mel —; foi nessa época, no ano passado, essas danadas dessas abelhas, enfurecidas por que, ninguém sabe dizer, mataram dois de meus melhores galos de briga! Continuando, olho para o alto, para a copa da imbaúba solitária que nasceu logo abaixo do chiqueiro; ainda outro dia, era só uma arvorezinha xereta, minha mãe disse: “é imbaúba, não corta!” Está cada vez mais alta; já deixa aquelas suas bagas gosmentas caírem no chão duro à sua volta. Mas eu gosto do claro verde-cinza das folhas da imbaúba, não me importo com as bagas espatifadas bem no meio da minha passagem, logo estarão secas pelo sol tórrido de Goiás; cá neste lugar, o carro de fogo de Apolo passa mais perto da Terra! Mais tarde, quando eu for morar a cerca de uma hora das praias do litoral norte de São Paulo, as imbaúbas das matas das serras serão uma dolorida nostalgia deste quintal; daqui eu terei voado nas asas de meus sonhos. Se eu nascer outra vez, não deixarei o meu quintal, prometo!
O último a merecer os meus cuidados é o pé de jiló que plantei perto do portão. A boa terra do quintal confirma o vaticínio — em se plantando, tudo dá: o pé de jiló cresceu, abriu uma basta e bela ramada! À sua sombra, num buraco do chão, moram aqueles dois calangos verdes, ou são vários que usam o mesmo buraco, não sei, são todos iguais, estes bichinhos! Esses calangos, de estranha e bela cor verde, se amadurecessem, se é que algum animal amadurece, será que ficariam amarelos?! Além de sombrear a toca dos calangos, o pé de jiló também dá guarida a essas ligeiras formigas pretas que percorrem os seus ramos em todos os sentidos.
Isso de calango verde amadurecer era um jeito que o meu tio Nicolino arranjou para protegê-los: “pêra aí, não mata os calangos não, deixa madurar primeiro!” Eles gostam de se aventurar longe da sua toca. E quando não ganham na corrida do meu cão pastor alemão que lhes vem no encalço, eles têm arrancados pedaços das suas enormes caudas, alguma coisa sempre há de perder quem perde uma corrida, senão qual a graça de viver e correr; em desespero, quase cotós, eles entram no buraco embaixo da copa do pé de jiló. Nunca matei os calangos, pois eu esperava, o bom conselho do meu tio, que amadurecessem... Passei a vida esperando, e antes deles, amadureci eu, estou pela hora...
Finalmente, vencidas as estações do quintal, passo pelo portão e caminho até à beira do Rio Paranaíba, sento-me no topo de um barranco e observo a largura desse rio que banha essa goiana cidade de Itumbiara. Do outro lado, Minas, as origens, a Serra da Mata da Corda, as corredeiras do Alto Paranaíba, a Fazenda Barreirão da minha infância, as suas terras banhadas pelo sol e pelas águas do Paranaíba — mundos perdidos de mim, ou, o mais certo, eu perdido deles! Eu não me canso de olhar o rio ir-se, olho e olho... olho as águas do rio até que, num susto, num balanceio de cabeça, passa a minha vontade de ir com elas; fico ali, mesmando no barranco, espero a tardinha cair.
Hoje não tem lua cheia, não haverá a prata do luar sobre as águas rasas do córrego que deságua no rio. Pena... eu gosto de ver lua surgir detrás do morro de Minas, do outro lado do rio! Gosto de pescar mandis-prata em noite de lua cheia, quem me ensinou esse gosto, não sei, o viver esfiapado, o devagar da vida nos ermos, os gorgolejos dos corgos enluarados da Fazenda Barreirão, o gorjeio triste de pássaros pousados nas pedras-de-amolar, as águas correndo em volta das pedras... tive, tenho mestres na natureza!
Escurece... volto para casa, abro o portão dos fundos do quintal, repasso tudo que fiz, mas agora, começando pela ordem inversa, isto, é, começo pelo pé de jiló. Colho jilós até encher os bolsos; observo a faina incessante das formigas pretas; sem se trombarem, elas sobem e descem velozmente pelos ramos do pé de jiló, têm sebo nas canelas essas formigas! Imagino quem teria passado sebo nas canelas das formigas, coisa de um deus desocupado, já que se ocuparia de algo assim, passar sebo em canela de formiga.
Em seguida, passo pela horta, olho os tomateiros nascentes, desbroto mais alguns pés de tomate; passo pelo chiqueiro, o porco manhoso está bem, comeu o farelo que lhe dei; retiro o estrume mais recente. É a vez das abelhas; corro os olhos, reconcluo que está na hora de tirar o mel, torno a lembrar-me dos dois galos mortos, foi no ano passado, ao certo, não sei, sou jovem, mas já misturo os anos passados. Sigo quintal acima, apanho a cesta de ovos pendurada na trave da varanda; com a cesta na mão, vejo se há paz no galinheiro, há sim, os galos estão quietos, o único frango novo que lhes disputava a autoridade foi para a panela no domingo passado; as galinhas já vão se empoleirando para a noite.
Recolho-me a casa. Amanhã, desenrolarei o fio dessas atividades no sentido contrário, e mais tarde, quando retornar de olhar rio onde estive até que me passasse a vontade de ir com as águas, repassarei o fio das atividades outra vez... No dia seguinte, percorrerei o quintal outra vez fazendo as mesmas tarefas e sairei para o rio... e quanto retornar do rio...
Mas nesta manhã de hoje, uma surpresa! Ao adentrar o quintal, noto que há algo errado no ar: as galinhas estão alvoroçadas, as abelhas revoam inquietas, o porco grita como se fora a hora da morte, os calangos, coitados, cotós ainda da última corrida perdida para o cão, correm como doidos sobre o topo do muro. Eu olho para o lado do rio e vejo: no meio do quintal, perto do chiqueiro, ereta, como se estivesse fincada no chão, há uma escada de madeira dessas feitas com dois varões e degraus de tocos de ripa, escada de algum pedreiro, parece, mas não tem pedreiro trabalhando em casa. Aproximo-me, a escada é sólida, é real; apenas toca o chão, não está fincada! Olho para cima, tentando ver onde se apóia... é tão alta, tão alta... não entendo como pode ficar assim, ereta, pois parece estar escorada... no vazio! Nenhum pedreiro, gigante que fosse, usaria uma escada dessas; a subir por ela alguém mais pesado que um gato, quem é que já não viu um gato subir escada, os varões murgueariam com o peso... ou não?
Aos que me lêem, eu lembro que não sou Jacó, o da bíblia, sou Carlos Rodolfo Stopa, e não estou deitado na terra, placidamente a sonhar, tendo uma pedra como travesseiro. Como pode alguém sonhar tendo a cabeça pousada numa pedra, se não for Jacó, aquele que, com a ajuda da mãe Rebeca, enganou ao seu próprio irmão, Esaú; uma boa intriga há de ter uma mulher, como causa, ou cabeça. A escada sonhada por Jacó, diz a bíblia, Gênesis, 28:10,13, tocava o céu, havia anjos de Deus a subir e a descer por ela, e lá no alto, estava o Senhor prometendo dar a Jacó e a sua descendência, a terra onde agora estava deitado, com a cabeça na pedra.
Mas a escada que eu vejo toca o vazio, não o céu; não há anjos a subir e descer por ela; a escolher, por minha conta, eu preferia os demônios, estes, na minha mitologia particular, têm sexo, faço questão das fêmeas, é claro! Lá no alto, nem vejo onde termina a escada; há sim, o nada, o vazio, não há um deus prometendo-me sequer a pouca terra deste quintal onde piso neste instante, imagino a cara do dono do imóvel, se soubesse que deus me prometera um pedaço de sua propriedade, o quintal, que fosse! Sem anjos, escorada no vazio, sem deus no topo — bastante inferior àquela de Jacó, portanto! Se mais vale o real que o sonho, há uma diferença essencial a meu favor: Jacó sonhou a sua escada, acordou e nada viu, decerto, pois era apenas coisa sonhada — mas eu não sonhei; eu vi e toquei a minha escada; o porco é testemunha, pois é o animal que estava mais próximo da aparição.
Desconfiado, eu dou voltas e mais voltas em torno da escada, se sonhando não estou, só posso estar louco... como pode haver uma escada estar assim, apontando para o vasto céu, mas escorada no nada?! Um absurdo, deve ser coisa deste sol ardente de Goiás... E o absurdo não fica só nisto — há esta voz, no fundo de meus ouvidos, sim, uma voz em que me incita a subir os degraus —; que voz é essa? Quem ouve vozes é doido mesmo; esta era a desconfiança que eu tinha de mim, quando eu ouvia vozes de antigas modas de viola, enquanto pescava mandis lá no Ribeirão de Santa Maria, junto à cachoeira da usina velha. As cachoeiras falam com a gente, quem já ficou perto de uma delas, fartou-se de ouvir, mesclada ao fragor das águas, a música de sua preferência.
Agora, ouço esta voz, sem confusão com as águas do ribeirão, e tenho ainda mais razão para duvidar da minha sanidade! Mas lembro-me de ter feito tudo direitinho, tratei das galinhas, recolhi os ovos, tratei do porco; cuidei das plantas, olhei as abelhas, vi as formigas pretas no pé de jiló, os calangos verdes que jamais amadurecem... ora, os doidos não conseguem fazer coisas com coerência! Ou será que conseguem?! Os coerentes são doidos, já que passam a vida vigiando-se para serem coerentes? Quem se vigia, e vigia também aos outros, é doido, pois!
Torno a ouvir a voz que me manda subir a escada; eu olho para o alto buscando a razão por que subir. “Não pergunte”, insiste a voz, “apenas suba a escada e supere os limites!” Eu ponho o pé no primeiro degrau, firmo a mão direita na lateral da escada, torno a olhar para o alto, mas tenho medo de que a escada caia, não me parece nada firme, os varões, parecidos com aqueles dos mastros das bandeiras dos santos de junho, murgueiam-se, as ripas rangem... insistir comigo é besteira, jamais subirei numa escada escorada no vazio! E, além disso, que raios de limites seriam esses, se eu não posso vê-los?! Afasto-me da escada e ponho-me a contemplá-la; é real mesmo, não há dúvida, eu não estou louco, toco-a com as mãos, com a testa, para acordar, caso estivesse dormindo! Como posso ser louco se sou capaz de cuidar de todas as coisas do meu quintal?! Ou sou louco exatamente por cuidar do meu quintal?
Neste instante, enquanto eu olhava para o alto onde devia estar deus, uma baga da imbaúba esborracha-se na minha cara e fico cego com aquela coisa gosmenta em meus olhos. Mas se nada cai, uma folha de árvore, uma pena de galinha, sem ordem de deus, então, esta baga, por quê; ora, deus não gosta de gente pobre, que vive a lamber embira, como eu, atira-lhes bagas de imbaúba na cara; quem sabe acordo para a vida! Corro às cegas para o tanque e lavo-me até que saiam todos os vestígios da baga.
Quando torno a olhar para o fundo do quintal, não mais vejo a escada, sumiu, alguém a levou, para onde?! Procuro alguma coisa diferente, alguma explicação para escada suspensa; mas dos dois lados do quintal só vejo os longos muros da divisa, exatamente no lugar em que sempre estiveram; olhando para o fundo, vejo à minha direita, o pé de jiló e depois, já no limite, o portão de sempre, aquele que é a minha saída para o rio. Nada, explicação nenhuma! Os bichos aquietaram-se, parece que tudo voltou a ser como antes, ainda bem, o quintal resiste a milagres assim! Ainda há tempo de ir ao rio; devo voltar ao meu barranco, preciso olhar as águas passarem até que passe a minha vontade de ir com elas. Certamente, correm essas águas ao encontro de outras ainda maiores, para tal objetivo correm todas as águas que há neste mundo! E na boca da noite, eu retornarei ao meu quintal e percorrerei as estações no sentido contrário ao da vinda.
Sinto que não devo falar a ninguém de casa sobre a escada; o que pensariam de mim?! O que mais poderiam pensar de alguém que vê escadas escoradas no vazio e ouve vozes que vêm do nada? Que está louco... ou, que está inventando moda para escapar ao serviço do quintal! Percorrer o quintal todas as manhãs, uma atividade rotineira, além de maçante, é uma circularidade atroz; é como se os espíritos dos que percorreram este quintal em outros tempos se reencarnassem em mim; sou cavalo de quantos deles?
Mas, hoje, essa ida ao quintal valeu a pena, pois ali, onde eu construía o meu mundo, vi que os adultos plantaram uma escada suspensa no nada, se algo é sem nexo, ou aborrecido só pode ser coisa de adultos, e sopraram aos meus ouvidos aquela voz que me prescrevia um modo de vencer na vida... justamente subindo essa perigosa escada, sem anjos, sem deus, sem promessas de terras, e pior: suspensa no vazio! É o que todos fazem, por que não aplicar a mesma receita a um menino perguntador? Ah, a imbaúba, sim, “é imbaúba, não corta não, meu filho!” — ainda bem que não cortei! Foi a imbaúba, ela sim, fincada no chão, sabe crescer, subir acima das outras árvores, a me chamar a razão despejando-me uma baga na cara!
Agitei-me, sufoquei-me como num pesadelo. A pena do trabalho tem o corpo alheio como objeto: cerca o corpo, evita que fuja e dele se apossa para obter algum proveito. As minhas circunstâncias de nascimento me impõem trabalhos, não há como evitá-los, cumpro a pena de ser quem sou! A minha vontade está dobrada pelo destino, o meu corpo está submetido a ir a escola, a varrer o quintal, tratar dos animais, arrumar a cama...
Mas a minha mente está longe, bem longe da moenda... enquanto os meus olhos estranham o labor das minhas mãos, sobrevôo o meu corpo atirado no lagar onde me pisam as obrigações que não resultam em suco algum. Quem, ou o quê poderia libertar-me? E aquela escada... será que voltará em um sonho, mas desta vez, escorada em algum ideal, num projeto de vida, desses que, feitas as contas, corridos os tempos, só resultam mesmo em... nada?!
Desperto, e nada, estou só neste quarto, nesta casa, nesta cidade de Penas do Desterro, a uma hora das praias do Litoral Norte de São Paulo... Ao longe, nas matas da Serra do Mar, as imbaúbas altaneiras me plangem, sou corda bamba de um instrumento quebrado... os dedos macios do vento me plangem, falam meu canto, minha música!