A Calcinha de Emily Dickinson

- Emily Dickinson!

- O que tem a Emily Dickinson? – perguntei esfregando na mesa meu copo cheio de cerveja.

- Imagine a calcinha de Emily Dickinson! – gritou Homero, com pequenas porções de saliva lubrificando seu lábio inferior.

- Pelo amor de Deus, Homero, cale essa maldita boca! É sério, estou comendo esse queijo todo, não me faça imaginar isso!

- Por que não, meu chapa? O que tem de mais imaginar a doce calcinha de Emily Dickinson?

- O que tem de mais? Você só pode estar brincando, campeão! – dei um gole curto na cerveja – Eu lhe digo o que há de errado em imaginar isso.

- Se atreva, Nelson... – Homero se ergueu de sua cadeira.

- Como assim? Atrever-me? Eu falo o que quiser!

- E daí? E quem está te impedindo? – Homero me fitou confuso.

Ignorei suas perguntas.

- A mulher vivia no século dezoito...

- Dezenove! – fui interrompido.

- Ta, ta... Dezenove! Então, a desgraçada era reclusa, morava provavelmente numa caverna...

- Na casa dos pais! – novamente interrompido.

- Pelos deuses! É só um modo de falar, seu idiota! Pare de me interromper! Se você me atrapalhar novamente, que Deus me ajude, eu vou acabar com sua raça! – não pude me conter – Posso continuar?

- Você é um palhaço mesmo – retrucou Homero com voz sóbria e claramente contrariada.

- Pois bem, a mulher vivia isolada, revoltada e cuidando dos pais. Morava em Massachusetts, naquele frio todo, com toda aquela roupa. Você já imaginou a calcinha dela? Imaginou o fedor? Ela não tomava banho todos os dias, por todos os diabos!

- Fedor, fedor... Tudo é fedor para você, Nelson! Deus fede, as ruas fedem, a merda fede...

- E a merda não fede? – foi minha vez de interromper.

- É uma forma de dizer que tudo fede pra você!

- Então você deveria citar algo que realmente não feda!

- Você me enoja, Nelson!

Ergui minha garrafa de cerveja e servi mais um copo. Bebia lentamente enquanto observava a feição sofrida de Homero. Ele era apenas um garoto mimado, que conheceu gente errada na escola estadual para a qual foi transferido. Não conseguiu resistir à tentação de ser um moleque folgado e começou a fumar aos quatorze anos, roubava aos quinze e pegava sua primeira DST aos dezesseis. Uma ascensão incrível. Mas por ser magro, sempre andava com uma faca para se garantir. Nunca foi um bom lutador, mãos pequenas e leves, as pessoas sempre amassavam seus dedos durante os apertos de mãos, era um desastre concentrado. Sua face sofrida era esfolada por anos e anos de espinhas. Sua auto-estima atual foi totalmente minada pelas acnes de outrora. Seu nariz desengonçado era um pouco mais aberto que o convencional (cacete, o que é um nariz convencional?). Sua boca parecia que havia apodrecido. Seu lábio inferior era caído demais, e o superior grande demais, mas tinha uma coloração escurecida. Seu queixo pequeno demais, dava forma arredondada ao seu rosto. O cabelo grande amenizava a forma oval de seu rosto, porém ele definitivamente não nascera para ser um sucesso entre as garotas. Mas os seus olhos continham um brilho raramente visto, que se acentuava à medida que bebia. Talvez aquele fosse o grande trunfo de sua aparência bagunçada. Feio desse jeito se envolveu aos vinte e dois anos num acidente de carro. Era uma fuga veloz e não fugia da polícia. Fugia de traficantes que queriam sua cabeça por algumas mancadas que havia dado, envolvendo um pequeno estoque de maconha que ela simplesmente dera sumiço. Seu carro capotou diversas vezes e o corpo finalmente arremessado para fora. Seu estado era tão deplorável que os traficantes ao cercarem o corpo de Homero semimorto, preferiram deixar ao cargo de Deus a finalização da obra. Mas ele não morreu. Ficou em coma induzido e por dois meses internado no Hospital São Paulo. Saiu com muletas e novos conceitos. Mais firmes que essas muletas que sustentavam seus passos. Com incentivo dos pais terminou, em um supletivo, o segundo grau e fez o vestibular para o curso de jornalismo. Passou tranquilamente, impressionando toda sua família e alguns gatos pingados que se consideravam amigos. Parecia que havia nascido para escrever, para ler, para interpretar todas aquelas letras em conjunto. Nascera para se comunicar. Conseguiu um bom estágio, com um salário razoável, podendo sustentar-se e ainda conseguindo adquirir algumas regalias. Foi efetivado e passou a ganhar bem mais dinheiro. Passou a morar numa rua da Vila Mariana e finalmente poderia dizer que tinha uma vida normal (cacete, o que é uma vida normal?). Adorava conversar sobre literatura, principalmente comigo que embora não tivesse me formado em nada, tinha uma bagagem cultural bem pesada. Eu aceitava as ladainhas dele, aquelas conversas para ele eram discussões acadêmicas. Para mim um passatempo engraçado e na maioria de suas vezes, estressantes.

- Você é quem me enoja, Homero! Eu estou comendo queijo, e você vem comentar sobre as roupas de baixo de uma poetisa morta?

O queijo Ementhal cortado em cubos estava suave e se despedaçava fácil a cada mordida. Espetei mais um com o palito e voltei a mastigar.

- Eu ainda não entendi a conexão entre a calcinha de Emely Dickinson e um pedaço inocente de queijo.

- Após o acidente você ficou retardado? Você já chupou uma garota?

- Já, já chupei sim.

- Você já pegou muitas doenças venéreas, não?

- Já, já peguei – dessa vez Homero respondeu com olhar direcionado ao chão, mostrando um pouco de constrangimento.

- Já comeu gorgonzola? Ricota? – perguntei erguendo o palito com um queijo espetado.

- Já, e isso não é gorgonzola, muito menos ricota – respondeu apontando para o queijo que eu levantei.

- Ta certo, eu sei que não é! Então, vai viu uma garota feder lá embaixo na boceta?

- Claro, muitas delas fedem!

- E já olhou lá dentro para ver o que tinha de errado?

- Não, nunca fiz isso, por que faria? – agora Homero que espetava um cubo grande de queijo e o colocava lentamente na boca.

- Primeiro, pare de colocar o queijo na boca como se estivesse chupando uma pica. Segundo, a aparência de uma boceta mal lavada é parecida com um ralo de pia cheio de ricota ou gorgonzola. Escuro e com rastros brancos.

Homero travou. Tentou regurgitar o queijo tragado, porém foi em vão. Correu para o banheiro, em vão de novo. Vomitou no caminho.

- O que foi Homero?! Nunca ouviu falar nisso? Pelo amor de Deus! Você é um cabaço mesmo! – eu dava risadas altas e batia o pé em plena euforia.

- Você é um desgraçado! – ouvi apenas a voz abafada de Homero percorrer o corredor do apartamento – Eu devia lhe obrigar a limpar isso tudo!

- Tente! Apenas tente! – eu já preparava os jabs e ganchos, praticando contra o ar.

Homero chegou com uma toalha e um copo de coca-cola na mão. Sentou lentamente no sofá e suspirou, como se estivesse cansado de viver. Apenas estava cansado de ouvir tanta baboseira. Fez sinal negativo com a cabeça e vagarosamente dispensou a toalha em sua nuca. Parecia abatido.

- Começamos falando de literatura e terminamos no vômito. Belo feito, hein senhor Nelson? – ao finalizar a frase, arrotou.

- Eu diria que foi um nocaute ideológico. Você é uma gazelinha, Homero. Perdeu suas bolas naquele acidente. Como pode um homem vomitar por esse motivo? Pelo amor de Deus... – cocei a cabeça fazendo um ruído perturbador.

- A literatura, Nelson, começamos com a literatura. E você sempre descamba para a sujeira.

- Sim, literatura. E A CALCINHA DE EMILY DICKINSON EM ALGUM DIA FOI CITADA NA LITERATURA?

- Não! Nunca foi, mas foi um comentário à parte, a mesma coisa de citar as bolas de Jorge Amado.

- O que você quer? Que eu vomite também? É isso? Está revidando?

- Não, estou apenas fazendo uma colocação, apenas isso – olhou com indiferença para os meus olhos. Seus olhos pareciam vazios. O brilho se fora com o vômito.

Levantei-me e busquei meu casaco. Vasculhei meu maço de cigarros e não achei nenhum. “Pros diabos, compro um na padaria”, pensei. Fui até a cozinha e abri a geladeira. Não havia sobrado nenhuma garrafa, porém encontrei uma latinha esquecida no compartimento de verduras. Peguei-a e dei uma bela golada. Soltei um arroto e voltei para a sala. Estendi a mão para cumprimentar aquela mão pequena e ossuda, porém não tive retorno. Ele apenas olhava para a janela dando curtos goles em sua coca-cola.

- Tem um cigarro aí, Homero?

- Na gaveta da cozinha. Tem um maço de L&M lá.

Voltei para a cozinha, porém no caminho, senti uma pancada na cabeça. Vi um clarão, como fogos de ano novo. Tentei me segurar em algum lugar, mas me senti caindo num abismo sem fundo. Quando finalmente caí, recobrei a consciência e olhei para o meu redor. Tudo normal. Um cinzeiro jazia ao meu lado, pesado, feito de puro ferro. Lembrei da cacetada que havia levado na cabeça e procurei por sangue. Nenhuma gota. O desgraçado havia jogado o cinzeiro em mim, maldito bêbado. Procurei por cortes no corpo e nada também. Lembrei do papo sobre as bolas de Jorge Amado e prontamente abaixei minhas calças procurando alguma violação no meu rabo e, graças ao bom Deus, nada. Aparentemente tudo estava em ordem, o apartamento estava arrumado, as garrafas estavam na lata de lixo, exceto pelo carpete da sala que estava imundo e cheio de pó. Mas até o cinzeiro que acertou minha cabeça não continha cinzas.

Lembrei do que Homero havia dito, sobre os cigarros na gaveta da cozinha. Ao procurá-los, encontrei um papel com meu nome. “Vamos ver o que esse merda preparou pra mim”, sussurrei enquanto abria o papel.

Nelson,

fui acertar umas contas antigas. Embora você seja meu grande amigo, infelizmente não pude contar muitas coisas para você. Me perdoe. Em breve lhe deixarei informado.

Dei um murro no armário da cozinha e o xinguei mentalmente. Tomei posse do maço de L&M vermelho e saí do apartamento, trancando a porta e despejando a chave dentro do compartimento da mangueira de incêndio que ficava no corredor do andar. Desci o elevador olhando para o chão, aguardando a chegada no térreo. Passei pela recepção suntuosa e bem decorada e cumprimentei o sr. Antônio, porteiro sofrido, com o bigode amarelado e quase desdentado. Ganhei a rua Bartolomeu de Gusmão e me dirigi à estação Vila Mariana.

Boa sorte, Homero, seu puto.