A Máfia
Fazer simplesmente o melhor, primar pela excelência; esforço contínuo, denodado, que leva certamente à satisfação final de contemplar a obra concluída. O que para uns – pequena minoria – é uma rotina tão simples e natural quanto mudar de sobrecasaca, para o restante da humanidade exige certa dose de concentração e esforço às vezes mal visto, mal compreendido e, não sem freqüência, invejado. Parece que o homem ainda se encontra longe de aceitar, sem lástima e frustração, certos fatos da vida. Um amor não correspondido, um estudo cuja finalidade deturpou-se em razão de outros interesses, uma espera infrutífera são, por um lado, ameaças ao bem estar da alma. Entretanto, se bem analisados e aceitos, podem representar a liberdade de ação, a independência, a vitória sobre a ilusão e a fatuidade.
Essas palavras, que na verdade não eram palavras e sim idéias, dançavam e se remexiam na cabeça de um homem, acendendo de entusiasmo e energia todo o seu processo pensante. Ia ele pelo canto da rua, querendo aproveitar os últimos centímetros da sombra que aos poucos se despedia da calçada, enquanto ruminava esses conceitos filosóficos. Era Ernesto, 56 anos, dirigindo-se para mais um dia de trabalho na empresa que já acolhia seus préstimos pelos últimos 35 anos. Era um dia especial para ele; iria se aposentar. Acordou já inspirado, entabulando pensamentos resultantes de intermináveis projetos mentais que o acompanhavam há vários meses. De mãos nos bolsos e cabeça baixa, ia tão absorto que mal respondia aos cumprimentos de um ou outro conhecido que com ele cruzava. Atravessou a rua e foi para o ponto de ônibus; desta vez, os quase vinte minutos de espera sequer lhe incomodaram. Até passaram depressa, interrompendo seus devaneios futuristas. Entrou e refestelou-se na última poltrona junto à janela. Enquanto olhasse as paisagens mais do que conhecidas, colocaria em ordem os pensamentos embaralhados. “Tem tudo para dar certo, tem que dar certo”, pensava. “Tenho que manter o segredo na companhia”.
Já estava cansado daquela rotina monótona e frugal. Não fazia outra coisa nos últimos dias que não fosse rejeitar e odiar a idéia que, não só ele, mas todos – e isto era o que mais lhe doía na consciência – faziam de sua vida. Pobre Ernesto naquela manhã; mais do que negativos eram os seus pensamentos. Chegavam-lhe a ser repugnantes. “Sou um inútil”, dizia em voz baixa para si mesmo, com receio de que o passageiro ao lado ouvisse e com mais receio ainda de que ele zangadamente confirmasse: "Tudo bem, amigo; concordo que seja um inútil. Agora, me deixa dormir em paz, falou?”. Mas isso não aconteceria. Seu companheiro de viagem dormia feito rocha e ainda roncava. Então sua mente seguia a lhe pregar peças. Planos arrojados, antes de serem concluídos, davam lugar a lampejos de frustração que por vezes desanimavam-no, trazendo a indecisão. Mas desta vez ele não falharia. Iria mostrar ao mundo o seu talento. “Cansei de ser um João Ninguém”.
A família de Ernesto não era grande, porém, maior do que o seu parco salário podia sustentar. Na verdade poderia, não fosse o maldito vício que o embebedava, que por sinal não era o da bebida; embora tomasse alguns tragos com os amigos de vez em quando. O que vinha consumindo as forças e a felicidade de Ernesto era o jogo. Este sim era o responsável por quase todas as desculpas que tinha que dar com freqüência a quem devia; e isso era em quase todos os lugares que freqüentava, exceto junto à corja que o acolhia com prazer sádico porque ali não tinha escapatória; era pagar ou morrer.
Porém, o maior desafio para Ernesto estava dentro da sua própria casa, na figura da mulher, sua maior credora. Com efeito, suportar os trauteios de Dalva era tarefa acima da capacidade dele. Por isso não se afligia, mas refugiava-se, o que era pior ainda. Por amá-la, sofria, mas, por amar também o jogo, sofria ainda mais.
Mas a esperança era a grande arma de Ernesto. Por ela suportava o dia a dia sufocante do banco que, quando confirmou e aceitou o seu pedido de aposentadoria, transformou-se numa espécie de pelourinho acolhedor de mais um candidato à liberdade. Portanto aquele era um dia mais do que especial para ele; é claro que iria aproveitar. Prometeu a Dalva que seria em forma de comemoração. Chegaria em casa cedo, lá pelas seis, e a levaria para jantar, iriam a um cinema e terminariam a noite de forma especial, dedicada aos dois e ninguém mais. Afinal, ele bem merecia. E ela mais ainda. Pois já se perdera no tempo a última vez em que saíram a sós para qualquer coisa, imagina para um programa como este. Custou, mas ela acreditou e ficou esperando. Na companhia, abraços de despedida, tapinhas nas costas e dissimulações de saudades antecipadas eram vistos por Ernesto com a mesma veleidade característica de sua vida até ali. Houve de tudo na despedida: de bolo a aclamações em sua homenagem repletas de verborragia.
Às cinco, ligou para Dalva. Chegaria um pouco atrasado em função da necessidade de atender aos pedidos de uns outros amigos – não mais da empresa – no sentido de lhe prestarem outra homenagem. Ernesto sabia que não era para aceitar, mas não teve como; seria uma tremenda desfeita. Entre eles estavam Jabara – que Ernesto conhecia desde os tempos de adolescência – e outros mais recentes. Não se podia afirmar com convicção que era Jabara o melhor amigo de Ernesto, mas sempre lhe fora fiel e com isso ganhou total confiança ao longo do tempo. Mas a reputação de Jabara perante a sociedade não era das melhores e até passava longe dos simples débitos monetários do nosso personagem principal.
Muito bem, Ernesto entrou no carro e foram parar no Taliatteli, um dos mais caros e requintados restaurantes da Barra da Tijuca. Sem problemas e tudo por conta de Jabara. No caminho conversaram animadamente. Ernesto ao lado do companheiro que dirigia e mais três no banco de trás. Dentre eles havia um totalmente estranho ao recém aposentado; os outros chamavam-no Nico, na intimidade. Domenico, seu verdadeiro nome, era um italiano radicado em nosso país há menos de cinco anos. Era um homem vigoroso, apreciador das massas óbvias de sua pátria, que veio ao Brasil em 89 para longas férias de três meses com a mulher e o filho de 28 anos. Queria, na verdade, fugir um pouco da pasmaceira habitual que eram seus dias lá em Florença.
Gostou tanto do clima favorável a negócios escusos que esqueceu seus escrúpulos de bom samaritano e acabou envolvendo-se em rapinagem e contrabando, crime que por aqui é visto por outros olhos e, a depender deles, até passável. Mas Nico deu azar. Quis estender demais as mãos ávidas de enriquecimento ilícito, portanto fácil, e acabou perdendo tudo. Foi parar atrás das grades, de onde conseguiu safar-se graças a certas influências e algum dinheiro que possuía. Mas os poucos meses que passou enjaulado foram suficientes para deixá-lo à beira da falência. Os companheiros de crime fugiram do país levando o produto de suas trapaças. A mulher o abandonou. O filho casou-se após formar-se em advocacia e retornou à Itália, levando a mãe e o seu sofrimento. Nico vivia agora de frustrações inquietantes e das lembranças que lhe atormentavam. Queria reencontrar-se mas via dificuldades e não achava apoio.
Nunca tanto se divertira Ernesto e nunca tanto bebera naquela noite. Vez por outra, e enquanto lhe permitia a lucidez, vinham-lhe à lembrança as zangas e desconfianças de Dalva; não podia fazer isso com ela. Mas quando as doses que se sucediam juntaram-se à eloqüência sem nexo de seus companheiros sem juízo e sem família, ele tornou-se um deles e, com eles, entregou-se à farra e as horas se passaram. Aquela noite, já quase dia, quando chegou Ernesto em casa e os dias e as semanas seguintes, foram para ele e, por conseqüência, os de sua família, piores do que todo o tempo que passaram juntos. Por isso, acabaram-se separando. Tudo o que possuía resumia-se a umas poucas tralhas, um automóvel meio surrado, meia dúzia de livros e seu minguado salário. O resto, deixou para trás: boa casa, boa mobília e muitas outras coisas de valor que conseguira ao longo de tantos anos com a magia da economia e a sabedoria da poupança.
Saiu finalmente a aposentadoria. Vivia num três cômodos que alugara lá pelas bandas do Catete, fazendo do seu tempo uma sombra que o perseguia. Cobrando-lhe atividade. Algo mais do que investidas dominicais nos jóqueis clubes da vida e prosas amenas misturadas a carteados e pedras de dama pelas calçadas do bairro. Assim passaram-se as semanas e os meses. Porém, a idéia, a grandiosa idéia que, segundo ele, era infalível, não lhe abandonava, ou melhor, ele não deixava que lhe fugisse dos sonhos. Cercava-a de todas as maneiras e exigia sua presença constante nas grandes horas de ócio em que não tinha muita coisa a fazer senão sonhar acordado. Mas, se dependesse dela – da idéia – já estaria, há muito tempo, longe daquela cabeça volúvel e inconstante de Ernesto. Se pelo menos dinheiro tivesse para começar...
Mas qual era o plano? Este se resumia numa palavra apenas: contrabando. Nico emprestou-lhe o dinheiro. Tornaram-se amigos naquela noite e nunca deixavam de se encontrar para trocarem idéias, camaradagens ou partilharem a mesma garrafa de bebida. É claro que algum interesse existia naquele relacionamento. O círculo de amizades de Nico era outro, que o fizera reerguer-se, também à base de troca. – Que tal dez mil, dá para começar? – ele perguntou numa tarde de Sábado. Estavam em casa do italiano. Ernesto, que bebia Whisky importado, o que adorava, mas, por razões óbvias, raramente fazia, respondeu:
– É um bom começo. Passarei alguns dias em Buenos Aires investigando as fontes; vou mantê-lo informado.
– Não é preciso. Faça tudo do seu jeito; sei que se sairá bem, nos vemos daqui uma semana.
Quem conhecia o nosso amigo aposentado e o encontrasse agora, por certo toparia de imediato com a diferença. Andava alinhado; dentro dos melhores e mais bem acabados ternos. Usava óculos escuros que lhe acentuavam a vaidade e trazia os cabelos pintados; rejuvenescera boa dúzia de anos. Ernesto era de baixa estatura e procurava compensar tal desvantagem usando botas encorpadas de solado reforçado, só para ganhar alguns centímetros. Parecia que prosperava. Sorriso fácil, mas de poucas palavras, quando tinha de falar de si e de suas atuais atividades, desconversava; tinha negócios no estrangeiro e pronto. Aí, mudava de assunto, falava do interlocutor, demonstrando algum interesse e simpatia, o que geralmente agradava.
A convicção dava-lhe agora outros ares, ares de empresário. Vivia em viagens, trazendo mercadorias. Com dinheiro para investir, encontrou na capital Argentina as pessoas que procurava. Melhor ainda, as indicações valiosíssimas que conseguiu levaram-no até Córdoba, na Espanha. Lá estava o paraíso.
Aqui convém ressaltar o tipo de negócio em que se foi meter Ernesto, para ficar milionário. Haja vista que mercado no Brasil é que não faltava para o que ele estava querendo. Ao longo de décadas soube criar um círculo de amizades num dos segmentos mais populares e explorados de nosso país: o carnaval. Podia gabar-se de conhecer de A a Z dentro das agremiações do Rio de Janeiro; era um carnavalesco de mão cheia. Não se prendia a nenhuma escola. Gostava de todas, comparecia a todas elas e procurava aproveitar de cada uma as vantagens de cada época. Na verdade, preparava terreno para o que pretendia fazer no futuro. Estava certo de que seria o único a por em execução tal plano mirabolante; mas vamos a ele.
Nada tão simples. Ernesto queria ser o fornecedor exclusivo de todo o couro necessário para a confecção de bumbos, pandeiros, tamborins, enfim cada item de percussão que utilizasse aquela matéria prima. Os contatos que logrou fazer em Córdoba, cidade do couro, deixaram-no excitantemente entusiasmado, o lucro final atingindo cifras inacreditáveis, tendo em conta o acordo vantajoso que conseguira fechar na Europa. A oferta seria irrecusável. O seu preço bateria qualquer concorrência, se houvesse alguma. O cálculo que fez do que seria necessário para superar a demanda de cada escola, multiplicado por todas a que pudesse servir, o levaria à tranqüilidade da independência financeira; em cinco anos estaria rico; o minguado salário? Deixaria lá no banco que ajudou a enriquecer. Que sugou dele trinta anos de um trabalho que detestava. Não tanto pela rotina que o obrigava a manipular um dinheiro tão alto. Mas, para seu desânimo, o contato era uma quimera; que o desesperava. Porque sentia a realidade. Via tão próximo o bem e sentia como ia longe o seu desfrute.
Montou escritório na avenida Venezuela. Nos fundos, três cômodos espaçosos serviam de depósito. Passou a ter reuniões semanais com Nico, que lhe apresentou outro sócio: Arnaldo. Apresentar não é bem o termo, pois Ernesto já o conhecia há algum tempo; apenas de vista, mas o conhecia. – Arnaldo ser-nos-á bastante útil no empreendimento – disse Nico –, e hoje vamos analisar uma estratégia que, a julgar pela conversa que já tive com ele, tem tudo para dar certo. Falo de expandirmos o negócio pra outros estados, o que acha?
– Já tinha pensado nisso – respondeu Ernesto. Esforçava-se por criar uma postura natural sem exagerar no entusiasmo. – será ótimo para todos nós; vamos precisar de muito conhecimento e de mais capital – completou.
– Por isso estou trazendo o Arnaldo. A experiência dele está mais do que comprovada. – Arnaldo possuía uma transportadora. Ele e Nico tinham muita história para contar; Ernesto não fazia idéia. Porém, limitou-se Nico a esta colocação e acrescentou: – Quanto ao capital, falaremos mais tarde. Agora, que tal mostrarmos ao nosso sócio as nossas mercadorias?
Era inicio de setembro. Ernesto andava às voltas com outros implementos que Nico acrescentou ao negócio. Conseguir mais vinte mil dólares não representou dificuldades. Ernesto precisava de dez mil; ele foi generoso e dobrou-lhe a quantia. Novas idas à Europa fizeram-se necessárias a fim de aumentar o número de fornecedores. Nico colocou dois dos seus caminhões a serviço das transações. Foi aí que o nosso amigo começou a desconfiar que havia algo de estranho no ar. Sua atuação limitou-se a receber as mercadorias e estocá-las. Tinha nos serviços dois funcionários manipuladores não só da matéria prima para os instrumentos mas, muitos, muitos produtos acabados e outros mais, onde o couro não entrava. Eram caixas de todos os tamanhos, de papelão à madeira, porém, sem identificação de sua origem; foi ter com o sócio em casa deste.
Chegou pela manhã de sábado; Nico dormia. Acordado pelo caseiro, desceu para falar com Ernesto que já há quarenta minutos aguardava-o na sala de estar. Notando o italiano, ainda metido em ceroulas, que o outro não estava de bem com o dia, tentou trazer bom clima com a oferta de um drinque. Ernesto, que não perdia oportunidade de um fino trago, aceitou, mas, nem por isso alterou os ares de afetação que trazia. Nico sentou-se em um sofá de frente para ele; esticou-se para uma mesinha a sua frente e acrescentou outra pedra de gelo à bebida.
– Quantas pedras? – perguntou.
– Duas; obrigado – respondeu Ernesto. – Há três semanas você não aparece; sabe o que vem acontecendo? – o italiano já estava preparado para uma reação às mudanças que fizera e respondeu:
– Com certeza você se refere aos produtos acabados que estou adquirindo...
– Mas não é esse o negócio! – falou Ernesto, interferindo. – É perder dinheiro, o país já exporta estes produtos.
– Não precisa se preocupar; esta parte pode deixar por conta do Arnaldo, que ele sabe o que fazer.
– Não estou certo disso – falou, sem conseguir disfarçar a falta de simpatia para com o outro. – E o couro? Não recebo mais remessas de couro.
– Cancelei todas as remessas.
– ?!...
– Preste atenção – prosseguiu Nico – , não sei porque está preocupado. Estamos no caminho certo; vamos ficar ricos. Você só tem agora que seguir nossas recomendações. Se continuar como está sem dar palpites desnecessários, vai acabar tudo bem. Estamos combinados? – Ernesto não respondeu. Ele prosseguiu. – Já fez a sua parte e muito bem; está ganhando um bom dinheiro para isso e poderá ganhar muito mais... se for inteligente.
São muitas as situações da vida onde o dinheiro fala mais alto; diria até que a maioria. Está aí o tipo de asserção que podemos proferir sem o mínimo receio de incorrermos em erro. Não deve haver mortal que, de algum modo, não tenha chegado a tal encruzilhada: a honestidade da vida simples mas consciente, ameaçada pela falácia de uma riqueza duvidosa. Após 35 anos de uma vida funcional exemplar cujo padrão sequer oscilava, pois nunca houve perspectiva fora de sua rotina operária, via-se agora Ernesto obinubilado pelos efeitos entorpecentes de um longo sonho. Somente os fatos concretos, e com sua participação, despertaram-no para uma realidade que sua inocência nunca teria sido capaz de avaliar; em que a paz ameaçada não clamasse por cuidados.
Não é necessária muita imaginação para concluir que o negócio era para lá de sujo e que, na verdade, era um meio disfarçado de encobrir a real atividade deles. Ernesto seguiu desempenhando suas funções, agora com mais cautela. Se antes apenas desconfiava, a certeza veio com o que ocorreu numa noite. Estava até mais tarde, cuidando de por em ordem alguns papéis. Não era seu costume passar das dezoito horas no escritório; já iam perto das vinte. Tendo verificado umas pastas e outros papéis, viu que estavam em ordem. Levantou-se para guardá-los no arquivo. Ao puxar uma das gavetas, verificou que, por baixo, havia um pequeno bloco de anotações; por curiosidade, pegou para ver o que continha. Ao abri-lo e manuseá-lo encontrou dados como datas, várias numerações e quantidades em gramas. Os números representavam as notas correspondentes às mercadorias. Voltou então ao arquivo, comparou os códigos com os instrumentos adquiridos e foi verificá-los. No depósito havia, num dos cantos da entrada, algumas pilhas de caixas de pandeiros com vinte e quatro unidades em cada. Pegou uma caixa e abriu, tirando um instrumento. Sacudiu e não sentiu nada, mas viu que pesava um pouco mais do que o normal; tirou do bolso um canivete e abriu, com um corte longitudinal, o couro, próximo a um dos cantos do pandeiro; encontrou o que procurava. Colada de forma bastante hábil por baixo da camada de couro original, havia outra camada de couro mais rústico e, entre elas, também presos por cola, cinco papelotes – parecendo cocaína.
A surpresa de Ernesto poderia ter sido maior; foi aliviada pela curiosidade que o fez bisbilhoteiro. No primeiro ato teve a sorte, que não o acompanhou ali até o depósito. Com a ação repentina que domina qualquer um em situação idêntica ele enfiou o instrumento caixa adentro e virou-se para ir embora. Mas não encontrou o interruptor para apagar a luz; melhor dizendo, nem foi a ele. Sua visão tomou outro rumo. Da porta espreitava-o o olhar de Nico. Ali estava como quem espera paciente um desfecho já conhecido.
Ernesto já possuía, por natureza, uma tez embranquecida, dessas que fazem um sol benevolente acabrunhar-se na dor da rejeição. Se então a pele não evidenciou a lividez, os olhos esbugalhados denunciaram o susto e a surpresa. Quase lhe saltando das órbitas, eles iam de Nico a Arnaldo logo atrás e do lado de fora; estavam tensos e ansiosos.
– Não deixa de ser uma agradável surpresa ver a dedicação do nosso amigo ao trabalho. – disse o italiano. Arnaldo acabara de subir um degrau e estava agora do lado de dentro ao lado dele.
– Fica normalmente por aqui até tarde ou hoje é um dia especial? – concluiu.
– Agora não tenho dúvidas, confirmei minhas suspeitas. Vocês são... são...traficantes.
– Ernesto estava trêmulo, com dificuldades para articular as palavras.
Foram dois choques seguidos que o pegaram de surpresa em forma de duas descobertas que o desconcertavam. A primeira de menor grau, embora perigosa, seria compreensiva e dividiria com ele o segredo. Mas a outra era cruel, nada podia fazer. Tampouco ele. Sentiu-se nu no centro de um picadeiro abandonado cuja lona, traída na tempestade, expôs-se à verdade do espetáculo a céu aberto. De dono do circo, findou palhaço, triste e sem graça.
Nico, demonstrando toda a calma do mundo, agia como se, em sua vida, um fato como este representasse não mais do que simples rotina. Vivera até ali ligado ao crime e do crime era cúmplice e aliado. Em seus cinqüenta e quatro anos mal vividos soube sugar o quanto pode de quantos se deixaram ludibriar. Era réprobo convicto de sua maldade como Ernesto era ali convicto de sua asneira. Deu dois passos à frente, alcançou uma cadeira e puxou-a para si, sentando-se. Então falou: - já que não existe mais segredos, que tal falarmos de nossas metas verdadeiras? – cruzou as pernas calmamente, enquanto aguardava uma resposta. Ernesto precisava pensar numa saída adequada. Os pensamentos embaralhados tentavam impedir-lhe a lógica do raciocínio. Contudo, uma nuvem de lucidez acenou-lhe com a precisão do bom senso. Sentiu que tinha que jogar; se falhasse estaria perdido.
– O que quer de mim? – começou com esta pergunta
– Absolutamente nada.
– Não entendo; poderia ser mais claro?
– Com prazer. Você já é nosso sócio; só tem agora que colaborar um pouco mais.
– Não sei se estarei disposto a colaborar com traficantes. – as feições de Nico se avermelharam com esta frase de Ernesto. Os olhos coruscavam e certa dose de ira tornou-se indisfarçável. Ernesto chegou a arrepender-se de ter soltado aquelas palavras que frustraram sua intenção primitiva de conter seus reais sentimentos. Mas já era tarde. O italiano seguiu frio nas palavras, contrariando o seu estado interior.
– Lembra quando lhe disse que tudo acabaria bem se usasse de inteligência? Agora não tem escolha.
– O que tenho que fazer? – perguntou, como se pressentisse as conseqüências de sua rebeldia.
– Você vai saber; mas quero prevenir: não comecei neste negócio ontem, portanto já conheço todas as artimanhas. Gosta da vida? Então é melhor colaborar; desse modo poderá viver ainda muitos anos. – Dizendo isto, olhou de soslaio para Arnaldo que não perdeu tempo em soltar seu sorriso sardônico.
Daquele dia em diante passou a ter Ernesto os seus passos vigiados. Entrara, com toda a força de sua ingenuidade, para uma máfia onde a morte passou a ser possibilidade cada vez menos remota e, em seus dias de medo e depressão, uma opção válida e definitiva. A falta de dinheiro do passado deu lugar à falta de tranqüilidade de agora, não sabia qual das penas era a mais dura mas por medo ou por garantia pedia a Deus em suas preces uma justa comutação. Pensava com freqüência em fazer o que seria certo e natural em uma situação como esta. Levando o caso à luz da investigação policial, teria a seu favor uma lei, mas contra si o fantasma da perseguição imposta pela força do crime; seria loucura, não sairia desta com vida. O que fazer então? De uma coisa sabia; precisava optar por uma de duas escolhas, ambas repletas de risco e incerteza, mas tinha que optar.
Tomou uma decisão; não fê-lo sozinho. A falta de firmeza e de vontade, parte integrante na sua formação de caráter, nunca lhe permitiram tal discernimento. Procurou Jabara, em quem confiava, menos por razões para isso do que por imposição da longa amizade de mais de vinte anos. Como não tinha motivos para não confiar – tampouco outras amizades tão duradouras, por eliminação, escolheu aquela. O primeiro conselho foi o mais radical, nem por isso deixou de ser acatado. Urgia que largasse tudo e todos e fugisse por uns tempos. Para o mais longe que pudesse. Que mudasse de cidade, de estado e, se possível, deixasse o país. Reuniu todo o dinheiro, quantia considerável, e partiu. Escolheu o Chile para viver. Ali ficou por um ano e meio. Ficou no passado o deslize que o tornara um exilado e desterrado. A saudade apertara. Empuxado pela dor de não ver os filhos e a terra, retornou; na bagagem o medo e a esperança.
Por aqui muita coisa havia mudado. Parece que, de alguma forma desconhecia, a sorte favorecera mais uma vez o nosso amigo. Nico acabou recebendo novo golpe em sua trajetória de malfeitor. Semanas após o sumiço de Ernesto, o local foi invadido por policiais federais, numa reação surpresa. Na reação houve troca de tiros. Arnaldo tentou escapar ao flagrante e reagiu mas foi morto ali mesmo. Nico, mais frio e mais experiente, deixou-se algemar; foi preso com outros dois comparsas. Ernesto, que preferiu ficar incomunicável em sua fuga, a fim de evitar riscos, só soube mesmo do fato um dia após o seu regresso. Procurou por Jabara que o notificou quanto ao ocorrido.
– Meus contatos com o italiano sempre foram raros – disse Jabara.
– Falando a verdade, após aquele dia em que saímos juntos para comemorarmos a sua aposentadoria, não o vi mais do que três vezes. Quando então fiquei sabendo do seu envolvimento com o tráfico de drogas, não mais o procurei.
– Onde está preso?
– Na Itália.
– Na Itália?
– Isso! Você conhece a Lei por aqui. Como tinha dinheiro, conseguiu trazer da Itália um bom advogado com uma liminar pedindo sua extradição. Em todo caso duvido muito que esteja atrás das grades. O que fez todo este tempo lá fora? – perguntou Jabara –, imagino que esteja aliviado agora.
– De certa forma sim – respondeu Ernesto. – Se eu soubesse antes do ocorrido teria retornado ha mais tempo.
– Garanto que foi melhor assim. O homem só deixou o país há quatro meses. O caso rolou um bom tempo na imprensa, pois acabou envolvendo gente grande da Cosa Nostra; houve muitas idas e vindas antes de ser solucionado. Em todo caso, foi bom que estivesse longe. Quer um conselho de verdade? Resolva sua vida por aqui e caia fora para sempre; com a Máfia não se brinca. – Jabara mantinha os olhos fixos em Ernesto como a estudar sua reação; ele coçou a cabeça e falou com desânimo.
– Tudo o que fiz neste tempo lá fora foi gastar. Cada vez que olhava para as notas e pensava em sua origem suja, alimentava a minha indignação, só queria gastá-las. Em pensar que tantos anos trabalhando para frutificar uma idéia resultaram neste fiasco.
– O que fez quando se viu sem dinheiro?
– Desta vez, pelo menos, não fui tão idiota. Como tinha que viver por lá, decidi arriscar tudo o que possuía num empreendimento, modesto a princípio, mas que poderia render-me um bom dinheiro e tirar-me do terrível ócio que já durava um mês. Aluguei, por mil e quinhentos dólares mensais, uma pensão em San Antonio, balneário turístico da região de Santiago na costa do Pacífico. Como não tinha experiência, arranjei um sócio, Hernandes. Tive sorte. Em um ano e duas altas temporadas depois, consegui triplicar o capital investido.
– Não parece que queria se desfazer do dinheiro.
– Aí é que está. Meu sócio foi o responsável por todo o sucesso do negócio. Era um sonho que tinha e só precisava do capital para começar. Quando conseguiu, se agarrou a ele com tudo. Eu apenas me limitava a tomar conta por duas ou três noites na semana, que era quando ele saía para as suas imperdíveis pescarias. Conheci ali um homem que passou a se hospedar com freqüência. Era muito rico e por causa dele mudei de vida e de cidade.
“Com a baixa temporada, os negócios em San Antônio, como sempre, decaíram. Queria conhecer outros lugares. Aquele homem singular chamou-me a atenção. Em conversas noturnas, pois sempre bebíamos juntos, fiquei conhecendo boa parte de sua vida. Exalava firmeza e confiança em suas maneiras e eu me sentia bem em sua presença. Possuía uma cadeia de hotéis em Valparaíso; era influente também politicamente. Não sei por que mas sua simpatia por mim levou-o a convidar-me para uma de suas inaugurações. Aceitei imediatamente”.
“Devo dizer que juntei aventura a negócios e devo aqui confessar que, aceitando o convite para gerenciar o cassino do seu novo hotel, fi-lo na intenção exclusiva de um ganho fácil que, de forma insidiosa, já vinha me dominando há algum tempo”.
– E deu certo? – quis saber Jabara, já curioso.
– Muito mais do que isso. A princípio, quero dizer que não permaneci mais do que seis meses no tal cargo, mas o resultado disso é inenarrável.
– Como assim?
– Já disse que consegui triplicar a renda que tinha antes. Agora digo, sem constrangimento, usei parte desse dinheiro para saciar meu antigo vício, o do jogo. O vício, que durante décadas me manteve ao lado dos fracassados, desta vez faria mais: limparia minha consciência e meu bolso de tê-lo ganho ilicitamente. Foram incontáveis noites de jogo e orgia. Jogava e ganhava, jogava e ganhava. Até que uma noite quis dar um ponto final àquela vida.
– O que fez?
– Convidei, entre várias mulheres que, um pouco atrás dos apostadores, sapeavam o jogo, a mais bonita e que tinha sido, só por coincidência, minha na noite anterior, a vir comigo à mesa de jogos e fazer um palpite. É bom que se diga, tinha eu já adquirido uma passagem de retorno ao Brasil para o dia seguinte. “Preto dezoito”, ela me balbuciou. Ainda me lembro da expressão de cada uma daquelas testemunhas ao verem o montante de fichas que posei no tabuleiro sobre o número marcado, correspondente a tudo que eu possuía. Quando a voz do Crupiê cantou o resultado, não pude conter minha emoção.
– Perdeu toda a sua fortuna?
– Ganhei!
– O que?!
– Exatamente quatrocentos e oitenta mil, duzentos e vinte dólares.
– Você está rico!
– Nunca tive tanta sorte – disse Jabara, admirado.
– Eu, tampouco. E o que mais me incomoda é que em nenhum momento eu fiz sequer um mínimo esforço para merecer este dinheiro. Agora faço uma pergunta: o que vai ser da minha vida daqui para frente? – Jabara, com um sorriso de satisfação estampado no rosto, como se desfrutasse o prazer que não via no outro, de possuir tamanha quantia de dinheiro, aproximou-se, colocando-lhe a palma da mão sobre a testa, dizendo.
– Não vejo sintoma de doença física em você, mas acho que devia consultar um bom psiquiatra. Você está louco? Tem meio milhão nas mãos e diz que não sabe o que vai ser da sua vida? Eu te digo – prosseguiu –, você está rico. Pegue este dinheiro e vá viver na Europa. Não... na Europa não – lembrou-se da Itália. – Vá para a América ou Ásia, sei lá, mas aproveite a vida.
Mais um ano se passou. Vamos encontrar Ernesto numa situação de vida verdadeiramente próspera. Parece que a sorte o pegara mesmo em cheio. Já não mais amargava aquele sentimento depressivo de não querer dinheiro. Pelo contrário, queria vê-lo multiplicado e conseguia. Uma vez mais aceitou o conselho de Jabara e definitivamente deixou o Brasil. A sorte surgira em San Antônio e para lá ele voltou. E levou Jabara consigo como paga pelas boas idéias. No mesmo balneário e com o mesmo sócio, Hernandes, Ernesto, se rico já era, virou milionário. Pelo menos era o que ele queria, tornar-se um milionário. Derrubara a antiga pousada e erguera ali o melhor e mais luxuoso hotel de San Antônio. Valparaíso também ganhou sua marca; um verdadeiro Hotel Cassino no centro turístico da cidade acabou por torná-lo famoso e conhecido. Hernandes, na qualidade de sócio e homem empreendedor que era, como não podia deixar de ser, ganhou também riqueza e destaque.
E Jabara? Bem, este tinha também o seu quinhão, mas precisava dar sua contribuição para merecê-lo. E para as necessidades que iam surgindo não havia melhor contribuição do que o trabalho. Jabara ganhou um posto de destaque e respeito. Era diretor administrativo da empresa. Possuía também dinheiro e posição. No decorrer do primeiro ano, foi tudo sem problemas. Mas daí pra frente começou a se sentir injustiçado. Ver os dois, principalmente Ernesto, em vida de nababo, ganhando e gastando dinheiro à rodo com quase nenhum trabalho e muito deleite, fez acender-lhe a inveja. Com isso, negligenciava cada vez mais e, como resultado óbvio, caiu a produção. Como conseqüência, demissão para Jabara, perda do emprego e, como não podia deixar de ser, da amizade.
Tudo muito natural se tivesse ficado nisso apenas, mas não ficou. Ferido no orgulho, na confiança e, o que é pior, no próprio bolso, ele se vingaria. Recordemo-nos do homem pacato e influente que dera uma chance a Ernesto em seu Cassino e era agora o seu maior concorrente. Pois este mesmo homem fizera o mesmo com Jabara e tentou, por sua vez, a mesma proeza que mudou a vida do outro. Mas a sorte é caprichosa. Em vez de dar, tirou-lhe o que tinha. Ficou desgraçado, não existe outro termo para designar o que foi a sua transformação. Bebia, e com freqüência. O dinheiro e as roupas perfumadas que atraíam antes as mulheres, deram lugar aos circunlóquios misturados ao cheiro do álcool que agora as repeliam.
As frases de Jabara, em seus momentos de delírio alcoólico, acabaram por atrair um dos freqüentadores do local. Este homem era um brasileiro, Rodrigo era o seu nome. Há pouco mais de uma semana em férias no Chile, estava tentando sua sorte na roleta pela terceira noite consecutiva quando viu que Jabara pronunciara o nome de seu irmão, largou tudo e foi até onde ele estava. Sentou-se à sua mesa no fundo do salão e começou a lhe fazer perguntas sem, no entanto, nada lhe arrancar devido a sua forte embriaguez. Já altas horas, jogando, agora para passar o tempo, viu que o bêbado dormia curvado sobre a mesa. Rodrigo devolveu suas fichas, mandou chamar um táxi e levou Jabara para o mesmo hotel em que estava hospedado. Nesta mesma manhã, à mesa de amplo salão de café, viam-se dois senhores que conversavam em voz baixa. Em sua frente, rico e enfeitado café da manhã. Destoavam de tal maneira entre si nos trajes e nos trejeitos que chamavam a atenção e isso constrangia visivelmente Rodrigo. Jabara servia-se de um café duplo e quase amargo e comia vorazmente um pedaço de bolo.
– O que quer de mim? Não vê que não passo de um vagabundo? Não tenho nada que possa interessar a você – falou. Enquanto comia uma fatia de melão, Rodrigo respondeu: – Tenho certeza que sim. O nome de Arnaldo diz alguma coisa a você? – Jabara titubeou, mas ao mesmo tempo invadiu-o uma sensação de insustentável leveza. Quando soube que eram os dois irmãos, parece que previu a concretização de sua vingança; soltou a língua.
– O que ganhou com isso? – Se não levasse nada já se daria por satisfeito em ver a ruína do seu inimigo. Mesmo assim foi-lhe oferecido um bom dinheiro para acabar com a vida de Ernesto e consumar a sua vingança. Não aceitou. Não tinha coragem. Então, que fosse a Itália e trouxesse Nico. Isto ele fez. Teve dinheiro e mordomia para tal. O italiano estava atrás das grades. Contudo, gostou da idéia; estava arruinado e tinha aí uma chance, no dinheiro de Ernesto. Eis aqui, da trama, o desenlace.
Jabara ficou por lá, pela Itália. Pelo menos é o que se presume, pois nunca mais foi visto. Mas isto é para nós o que menos importa. Ernesto foi seqüestrado por dois comparsas de Nico. O resgate? Custear, sem importar como, a libertação do mafioso. Por lá também se compra a liberdade, porém, bom é que se diga, à maneira italiana, e só assim. Isto quer dizer que Ernesto, para ficar vivo, dessa vez sem escapatória, quis fazer parte do mesmo time; não deu outra. Nico enriqueceu novamente. Mais um negócio sujo entre os dois, desta feita, com a conivência e participação de Ernesto, um parceiro e tanto. Como num filme, a cena da invasão policial se repetiu, só que agora em território italiano. O fim de Arnaldo foi o fim de Nico: a morte. E o fim de Ernesto, o mesmo fim do italiano antes da morte. Se a sorte continuar, vai lhe restar toda uma vida de sonhos e de lamentações. Para repetir o que fez e da forma que o fez, melhor que fique atrás das grades. Antes ser um João Ninguém