Duvidoso Descanso

A noite foi longa e agitada. Muitos embalos, muita loucura. Depois de tudo que rolou durante a madrugada, fica até difícil saber como foi que conseguiram ver o sol nascer. São oito horas da manhã, César chega no apartamento que divide com mais três amigos e encontra dois deles extasiados, olhando o infinito. Ele é aquilo que muitos chamam de “rebelde sem causa”. Rapaz de classe média, sem motivos aparentes que pudessem levá-lo àquela vida. Nessa manhã, seus olhos transmitem uma angústia diferente da costumeira. Sentado nas costas do sofá, ele contempla o quadro de Janis Joplin desenhado à carvão, estrategicamente pendurado na parede maior da sala. Seus pensamentos não fazem muito sentido, a sensação é de que está mergulhado num pesadelo. Ele ainda não tem certeza se realmente aquilo aconteceu ou foi mais um dos seus delírios.

Dos que dividem o apartamento com César, o mais novo tem dezoito anos. Seu nome é Teófilo, e todos o conhecem por Téo. Sua relação com seu pai – um figurão da alta sociedade, daqueles que tem muito dinheiro – é bem complicada. O que se sabe é que o pai não conseguiu superar a morte de sua esposa, o grande amor de sua vida. Ela morreu no parto de Téo. Sabia que seria um risco a gravidez, mas mesmo assim insistiu e acabou perdendo a vida. Um sentimento de culpa o acompanha desde que entendeu o drama que o trouxe ao mundo. Envolvido em grandes transações financeiras, seu pai nunca fez muita força para entender a fragilidade do único filho.

Do outro lado da sala, esticada no sofá, encontra-se Talita. Ela não é um exemplo de felicidade. Leva a vida do jeito que dá; não há romantismo algum em suas palavras. Pelo contrário, sempre com cinismo faz piada com a desventura. Seus pais nunca se entenderam, e, para evitar coisa pior, acabaram se separando. Em meio a tanto egoísmo, o casal não percebeu que a filha entrou num caminho sem volta. A melhor opção foi sair de casa e cair na vida. Além da solidariedade duvidosa dos que vivem no vício, Talita consegue sustentar-se fazendo programas com homens que ainda se interessam pelo seu corpo.

Oito e trinta. Alguma coisa deve ter acontecido, a ausência de Janinha – a grande paixão de César – não é normal, pois os dois estão sempre juntos, principalmente nos finais de noite. Quando Janis Joplin morreu, Janinha era muito pequena, mas uma identificação quase que espiritual com a infeliz cantora mudou completamente o rumo de sua vida. O trinômio “sexo, drogas e rock and roll” define bem a vida dessa jovem que ainda não completou vinte anos.

Discursando para as paredes, César fala amargamente sobre si. Um misto de revolta e remorso parece ser a fonte da sua oratória. Não há esperança em suas palavras; ouvindo o seu discurso, tem-se a impressão de que ele deixou uma tarefa pela metade: faltou-lhe coragem para fazê-la por inteiro.

O telefone toca e interrompe sua lamentação. A campainha do telefone desperta a sua mente, a cada toque a certeza de que o pesadelo é real. Olhos fixos no infinito, incapaz de se levantar para atender, consciente de que aquilo que não queria que fosse, desgraçadamente, já era. Janinha está morta, e César, covardemente, espera que o tempo se incumba de lhe conceder o duvidoso descanso.

Laerte Cardoso
Enviado por Laerte Cardoso em 10/05/2010
Reeditado em 06/11/2010
Código do texto: T2248972
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