PECCATA MUNDI

E sem que os continentes ardessem em chamas ou que o céu se rasgasse em duas partes, Jesus estava de volta. A princípio, surpreendeu-se com a tamanha transformação das criaturas de seu pai. Noutro instante, tudo era curiosidade e fascínio: ele se manifestara num grande centro comercial.

Vagou entre os passantes sem saber exatamente onde procurar. Não havia a onisciência, mas a intuição. Parou um instante, intrigado com algo que via numa vitrine. Era uma televisão, canal aberto. Deixou-se ali por bastante tempo e imaginou como o pai não tivera idéia semelhante. Um esbarro, no entanto, acordou-o do devaneio.

Avançou sobre a multidão que não o reconhecia. Nenhum traço o assemelhava ao Cristo. Era apenas mais um. Viu uma cruz no alto de uma torre. Deja vu e ânsia de vômito. Baixou os olhos. A voz de um homem lhe capturou a atenção, um pouco mais adiante na rua. Repetia com autoridade: “O céu está próximo!”; para toda a multidão da praça que se abstraía de lhe ouvir. Riu-se. Relembrava a longa e estafante viagem que fizera para estar ali.

Os camelôs ofereciam toda sorte de objetos de uso, mas nenhum era o que queria. Ele precisava encontrar o que lhe queimava o espírito. Os vendedores insistiam. Jesus perguntou a um deles. Não sabia ao certo.

Em desalento, caminhou um pouco mais e percebeu que em meio à multidão uma mulher fitava-o com olhos lacrimejantes.

- Meu senhor, sou Verônica!

A mulher jogou-se aos pés e ele enrubesceu. As pessoas olhavam aquela cena curiosas e supunham algumas razões, talvez conjugais. Ele, no entanto, ainda paciente, pedia desculpas e tentava esclarecer a mulher do engano. Não a conhecia. Sem novamente o deja vu, mas persistia a ânsia de vômito.

Desesperada, ela repuxava as vestes do homem quase a despi-lo. Em repentina fúria, bradou e fez o instante calar. Todos os olhos fitaram o homem, em raiva vermelha, com uma das mãos paradas no alto pronto a descer a palma no rosto da mulher. Um cego, certo do fim do espetáculo, lançou uma moeda ao chão congratulando os atores, riso no rosto.

O ardor do espírito arrefeceu a fúria quando viu, atrás do vidro em que explodiam mil fagulhas do sol, o tão-esperado. A mão desceu, e fez-se acalanto no rosto da mulher enquanto os pés seguiam em passos lentos.

O coração, novamente humano, recuperou sensações há tempos muito vividas. Empurrou a porta, manchando de sujeira e suor o vidro límpido, ignorou a atendente e, ávido, lançou-se sobre a bancada de chocolates.

Lambuzou-se de puro pecado negro em barra, em pedaços, em calda.

Transfigurou-se, pela segunda vez. E ascendeu aos céus em docíssima glória.