MACHADO DE PEDRA
O fim do trabalho naquele dia teria que ser antecipado. As alterações do clima eram visíveis. O vento forte arrastava nuvens negras de horizonte a horizonte. A mataria no entorno do sítio balançava em todas as direções tal qual espanador em mão de faxineira desastrada. Os relâmpagos que podiam ser vistos rasgando as nuvens negras para os lados do sudeste estavam diminuindo os intervalos e já se distinguiam os trovões num som rouco e ameaçador. Nem uma ave no céu sobre nossas cabeças, nem uma formiga no chão sob nossos pés. Nenhum som alem do farfalhar do vento que parecia querer arrancar as derradeiras folhas da galharia fina da caatinga.
Desde o início da semana eu estava trabalhando na parcela 12 no terço médio da Pedra Furada, Município de Venturosa, porta do sertão de Pernambuco. Mais de sessenta metros a partir da base da montanha e pelo menos trezentos metros acima do vale onde o leito pedregoso do riacho, seco nessa época do ano, brilhava qual espelho em dias de sol.
A parcela 12 era diferente das demais. Por imposição da topografia, media 12 metros lineares de comprimento e a largura era definida entre a barreira e o precipício, com escarpas muito próximas dos noventa graus. O piso de arenito em franco processo de erosão era convite permanente para acidentes de consequências imprevisíveis. Era visível nas cicatrizes das rochas que em tempos remotos várias grutas existiram por ali. No limite superior da parcela, a trilha se estreitava de tal forma que apenas uma pessoa por vez podia passar para a parcela seguinte onde a Dra. Sofia tinha encontrado restos humanos e peças cerâmicas.
Possivelmente o sepultamento secundário de alguém importante devido ao volume de artefatos que acompanhavam o morto.
Quem teria sido aquele povo que habitara local tão inóspito, pelo menos na atualidade, onde a única vantagem consistia em ser ponto privilegiado de observação?
Qualquer coisa que acontecesse ao redor, num raio de muitos quilômetros seria avistada pela sentinela naquele sítio.
- Não vai descer doutor?
- Vou sim. Quero apenas marcar melhor esse ponto.
- Todos outros já desceram.
- É, mas esse volume d’água que vem por aí pode botar a perder tudo que já limpei.
- Essa não vai ser a primeira chuva que esse material vai levar. Eles estão aí pelo menos há dez mil anos...
- Mas eu removi a camada de proteção. Tem a ponta de um machado com algo agarrado nele...
- Bem. Eu vou descendo na frente. Não quero ser pegada por um desses raios. Ande logo com isso e desça também. Não quero que nada lhe aconteça. Você faria muita falta ao projeto...
- Só a ele? Perguntei com segunda intenção explícita...
A Dra. Sofia sorriu e desceu pela trilha. Fiquei observando aquela mulher e pensando na sua beleza.
Era um perfeito exemplar da miscigenação brasileira. Pele negra, olhos verdes musgo, cabelos longos que caiam pelos ombros em ondas suaves, estatura mediana e curvas perfeitas que a natureza caprichara no preenchimento. Voz suave, melodiosa além de possuidora de vasta cultura. Extremamente criteriosa e com invejável disposição para o trabalho.
Quando ela desapareceu na curva da trilha, voltei à posição de cócoras e toda minha atenção para o trabalho. Não sei precisar quanto tempo decorreu entre a descida da Dra. Sofia e o meu despertar envolto pelo nevoeiro denso e cinza, as gotas da chuva tamborilavam no meu chapéu e batiam nos braços dando a impressão de serem agulhas de gelo penetrando na carne. Rapidamente fiquei de pé e guardei na bolsa a pá, a colherzinha de pedreiro e o pincel. Tateando a parede de rocha, procurei um abrigo. Seria tolice tentar descer. A trilha estreita e íngreme não oferecia segurança devido ao volume d’água que caía tornando ainda mais fugidio o piso de areia originado da decomposição do arenito.
Procurei a melhor posição dentro da fenda na rocha para me acomodar. Não era o abrigo que eu precisava, mas era o que a natureza tinha para me oferecer. A noite envolvia tudo. Escuridão total, somente interrompida pelos flashs dos relâmpagos.
Mecanicamente apalpei o machado de pedra que havia colocado no bolso do colete logo após tê-lo deslocado. Havia de fato resto do que fora o cabo, mas se desfez em contato com as cerdas de pelo de marta do meu pincel. Ainda assim coloquei esses restos no saco plástico. Noutro saco restos da fibra que servira para fixar a pedra ao cabo, pois essa fibra seria decisiva para a datação pelo carbono catorze.
Mesmo considerando remota a possibilidade de adormecer sob aquelas condições, afixei na rocha dois grampos de alpinista, passei a corda de nylon e amarrei ao cinto de segurança. Mesmo que o chão fosse levado pela enxurrada eu ficaria preso. Enquanto comia uma barrinha de cereal, notei a luz difusa de uma candeia subindo a trilha. Dois vultos escuros em pouco tempo estavam parados diante da fenda onde eu estava amarrado. Tentei falar, mas a voz não saiu.
O vulto maior carregava nos ombros um fardo que me pareceu ser um corpo humano ou um saco cheio. O vulto menor tinha nos braços o que julguei ser uma criança. Devido à bruma eu não conseguia distinguir os rostos dos vultos e ouvia os sons, sem poder distinguir palavras, do que talvez fosse uma conversa.
Outro grupo se aproximou. Acenderam a fogueira. Agora sim com os reflexos da luz amarelada e bruxuleante do fogo eu pude distinguir a cena do sacrifício humano.
O volume que viera no ombro do vulto grande era na verdade uma pessoa que foi colocado em frente à fogueira. Um dos participantes deu o golpe de machado na nuca da vítima. O sangue jorrou. O vulto menor que julguei ser mulher sugou o sangue e transferiu para a boca da criança o conteúdo da bochechas cheias. Outras crianças vieram beber na fonte aquele líquido grosso, cheio de vida e de bravura. Outros adultos esquartejaram a vítima com facas de pedra e o cheiro acre-doce da carne humana assando penetrou em mim. O machado de pedra foi usado várias vezes para quebrar os ossos longos a fim de permitir que a medula óssea fosse sugada pelas crianças.
Por um lapso de tempo peguei no machado em meu bolso. Estava impregnado de algo viscoso que julguei ser sangue. Imediatamente limpei a mão na parede rochosa.
O vento aumentou de intensidade, a bruma se dissipou e os vultos se foram com ela. A chuva cessou e a lua prateou o ambiente. Diante de meus olhos o sítio parecia intocado. Nenhum resto do banquete antropofágico.
Desatei os nós que me prendiam à rocha e rapidamente marquei o local da fogueira. Minha vontade era coletar imediatamente os carvões restantes onde imaginei ver fumaça, mas o zelo científico exigia que todo sítio fosse descrito e desenhado antes de se fazer qualquer coleta.
Pela manhã quando cheguei ao acampamento, a Dra. Sofia me contou o sonho que tivera durante a noite. Coincidentemente era a descrição de tudo aquilo que eu havia presenciado.
Durante a escavação que fiz no local da fogueira, cinquenta centímetros abaixo do nível atual, recolhi três machados de pedra iguais ao que estava no meu bolso, duas facas de sílex e carvão. Muito carvão que o teste do carbono catorze revelou estar ali há, pelo menos, trinta e nove mil anos antes do presente.