INCONSCIENTE
Aimi voltou mais cedo, viu a mãe que ainda passava a ferro a roupa de seu irmão mais jovem e atirou-se na poltrona parecendo animada.
-- Vou com elas amanhã cedo – disse como quem simplesmente participa uma decisão tomada.
Tinha os olhos puxados, trazidos de seu avô oriental, e era uma jovem muito bonita. Dona Guiomar não esperava a filha tão cedo naquela noite e menos ainda que estivesse com aquelas idéias. Não esboçou nenhuma reação. Girando no dedo o colar de pedrinhas redondas, a moça jogou as pernas sobre o encosto da poltrona, esforçando para adquirir uma postura sexi. Com o cantinho dos olhos tentava surpreender sinais de contrariedade no rosto materno.
As moças viajaram pela manhã, sobrando para dona Guiomar a constrangedora missão de acalmar o futuro genro, a quem já não era necessário dizer muito sobre o temperamento independente da jovem.
A companhia era agradável. As amigas eram colegas remanescentes das primeiras classes da pré-escola e Aimi seguia feliz. Conhecia os caminhos pelos quais conduziria o noivo a um clima favorável em seu retorno. Além do mais permaneceriam no acampamento apenas dois ou três dias. Viajavam bem dispostas, tagarelando e rindo e assim completaram mais de dois terços da viagem. A partir de então os olhos pesaram para Aimi sem que as outras se dessem conta de seu desconforto.
Encontraram um alojamento confortável. Deixaram seus pertences no quarto e saíram batendo pernas, aproveitando um restinho de sol. Aimi não se sentia muito bem, mas sempre fora habilíssima em dissimular. Em dado momento o vômito era eminente. Ela não teria como se manter naquela agonia. Aproximou-se da borda do lago, inclinou o corpo sobre touceiras de capim e com a mão em conchas colheu da água levando o líquido à boca. O que aconteceu em seguida, além do desconforto do vômito que veio incontido, Aimi desejaria esquecer para sempre.
As amigas a acompanharam até a farmácia, ela estava lívida. O farmacêutico, um homem de fala mansa, as afastou dizendo que precisava de ar, era necessário abrir um pouco a blusa e ingerir antiácido. Ele em seguida fechou a cortina, serviu alguma coisa escura de um frasco e enquanto ela tentava ingerir, ele escorregou as mãos acariciando entre as coxas.
-- Isso não é nada – dizia em tom de quem acalma – vai passar a tempo de você se divertir à noite.
Ela se torceu, mas ele estava em condições favoráveis para tocá-la e não teria aberto a cortina naquele momento. Usou as duas mãos para acariciar coxas e seios. Ela apenas fechou os olhos, seu corpo oscilou deslocando a cadeira que por sua vez levantou a franja da cortina, revelando a cena. O farmacêutico simulando nervosismo e impossibilidade de equilibrar o corpo da moça sem ajuda apelou para uma das garotas, instruindo-a a ajudar Aimi a dobrar o corpo mantendo a cabeça abaixada. Mostrando preocupação incomum fez questão de levá-las em seu carro até o alojamento e não arredou pé antes de certificar-se de que sua paciente permaneceria em repouso no leito.
Então veio a chuva que se derramou barulhenta por vir forte em meio ao vento. Quando a chuva passou vieram os comentários sobre os estragos causados nos arredores. Aimi permanecia acamada enquanto as colegas participavam das conversas na sala em meio aos outros hospedes. Uma criança havia desaparecido durante o temporal.
Habituados a viajar com os filhos, os pais ocupavam um trailer estacionado na orla da praia, em um camping. Eles não eram desatentos. Mas longe do movimento da cidade grande davam crédito ao menino para gozar da liberdade à beira mar. E o menino não era de todo inexperiente, alcançava já seus dez anos de vida. Foi só durante a chuva forte que um perguntou ao outro sobre onde o havia visto pela última vez. E assim que a chuva passou, saíram ambos a perguntar aflitos pela criança percorrendo caminhos que jamais imaginaram existir por ali.
Antes das duas horas da manhã havia equipes constituídas para as buscas, sempre infrutíferas. A criança não estava em parte alguma. A chuva voltou. Voltou dessa vez na forma de garoa sem vento engrossando ocasionalmente, mas resolvida a não cessar tão logo. As equipes, molhadas até os ossos, vasculhavam as grutas, as construções abandonadas, os bares, as sorveterias. Procuravam nos barcos e canoas, equipamentos de lazer e de pesca dos quais alguns jaziam virados ao sabor da maré cheia, na areia repleta de galhos e lixo.
No leito, Aimi, entorpecida sentiu tudo virar e uma luz muito forte a ferir-lhe os olhos. Era uma luz muito branca e muito intensa que aos poucos foi perdendo intensidade e adquirindo uma tonalidade de um amarelo desmaiado. E então ela viu o menino que se debatia puxado por uma coisa disforme, um animal alado, um monstro. Garras afiadas, asas de um furta cor predominantemente verde escuro, brilhante.
Aimi, aparentando sonambulismo, levantou do leito e alheia a tudo e a todos, parecendo não ver nem ouvir, saiu na escuridão da noite, na chuva miúda intermitente, a recitar palavras desconexas:
-- Luz branca e intensa... luz amarela... monstro verde, alado.
Incapazes de contê-la pela força incomum que demonstrou possuir misteriosamente saíram atrás excitados, jogando luz de farolete. Ela seguiu naquele transe, mudando seus passos na escuridão, passando incólume por obstáculos pelos quais os outros não passariam sem um mínimo de iluminação. Seguiu assim, semiconsciente, até um ponto onde havia uma cratera aberta pela enxurrada entre pedras e areia encardida. No fundo da cratera, preso pelos galhos de algumas palmeiras tombadas pelo vento e arrancadas da terra com suas raízes, o menino havia desmaiado.
Foram necessários alguns homens para retirar a criança nos braços.
Aimi talvez não tenha testemunhado o salvamento que em transe fez acontecer. Ela caiu assim que terminou aquele seu passeio incrível.
Caída, encharcada, enlameada, estava morta.