À Promessa de uma Mentira (O Templário de Anjou)
À Promessa de uma Mentira (O Templário de Anjou)
A figura do cavaleiro cambaleava pela areia. A vista ofuscada pelo intenso sol do deserto. Os olhos febris, em pleno delírio. A cota de malha a arranhar sua pele sob a pesada armadura e o sangue coagulado colando seus cabelos sobre a testa.
Seguia arrastando uma pesada espada em cruz, inútil contra a imensidão desértica.
Quando por momentos, recuperava o raciocínio, lembrava-se de não estar longe do mar nem dos exércitos cruzados, que estavam à oeste, perto do litoral. Mas continuava desorientado, vagando pela Terra Prometida.
O sangue dos infiéis cobria a lâmina da enorme espada, lâmina que viera desde Anjou, na França, para atender o chamado de Deus naquelas terras. Seu fio rasgara inúmeros corpos, servindo-O da mais sangrenta maneira.
O arrastar da arma, levantava nuvens atrás daquela figura que penava pela vastidão árida e pedregosa. Já não era a mesma figura que outrora caminhava arrogante nos castelos europeus. Entardecia, o sol alongava sua sombra; o vento, o rastro de sua espada
Em sua caminhada sem rumo, o cavaleiro vislumbrava por vezes um homem com um cajado. Estático no horizonte, para além de qualquer alcance. Esperava por ele. Deveria ser Jesus aguardando-o com sua merecida recompensa por lutar contra os infiéis.
E quando terminava seu feliz delírio, voltava a sentir o sangue que lhe cobria as faces, as mãos, formigando por todo seu corpo, sem discernir o que seria do inimigo ou o que seria seu. De onde viria o vermelho que lhe tingia o espírito?
Cavalgada, sim houvera uma cavalgada. Deixara atrás de si as colinas de Arsuf, perseguindo o exército derrotado de Saladino, derrubando os retardatários da retirada. As espadas erguidas, reluzindo antes do golpe, reluzindo uma cor mais rubra a cada vez que desciam. “Deus o quer!”, bradavam seus companheiros, todos templários, a águia azul bordada no peito ao lado da cruz cruzada.
Todos mortos, já não lembrava de quê, naquele calor esturricante, parecera chover a morte. Homens e cavalos seguiam e tombavam, matando e morrendo como um só. Onde estava seu fiel puro sangue? Como o perdera? Só tinha de pista a flecha que trazia cravada em suas costas, que já pouco sentia. Seu corpo adormecendo lentamente, a atenção da dor, voltando-se para a sede, para o peso do próprio corpo, para o estalar de suas têmporas.
“Onde está Deus em tudo isso?”; veio-lhe naturalmente. “Deus, por que nos deixa perecer às centenas diante do inimigo?”, resmungou sua mente. “Onde estavam as muralhas que cairiam por milagre diante da cruz que traziam em suas armaduras, onde estavam as cidades que se renderiam ao ouvir seus gritos sagrados, como a Jericó da Bíblia?”, lembrava-se dos mortos sob a sombra das muralhas árabes, cravados de flechas, cobertos de óleo quente. “O papa nos prometeu terras férteis e riquezas infinitas, cavaleiros de toda parte atenderam ao chamado de Deus e agora morriam por mentiras?”.
E a revolta lhe assaltava os pensamentos de maneira impune, ele tentava afastar tais heresias quase com a mesma freqüência com que elas lhe vinham.
As pernas vergaram-se, tentou resistir, mas percebeu terem-se esgotado suas forças. Caiu de joelhos, apoiou-se na espada, erguendo o olhar ao céu em súplica. Não conseguia ver que horas eram, nem em que direção o astro seguia. Suas pupilas dilatadas tornavam sua vista um borrão de cores e formas, que se turvavam. Já ouvira dizer que a morte nunca era nítida.
Afinal o deserto daria cabo do que um exército de mouros com flechas, magias e cimitarras não fora capaz. Qual seria o sentido de tudo aquilo? “Deus o quer!”, pensou. E já não compreendia.
No horizonte que seus olhos agora fitavam, surgiram vultos montados. “Miragens ou demônios?”, questionou-se o cavaleiro.
As ilusões seguiram adiante em direção ao homem ajoelhado no meio do deserto. Os passos dos animais eram bem realistas, assim como as lanças que seus mestres carregavam.
“Pior que os dois”, permitiu-se o desafortunado num meio sorriso de ironia.
A tropa o cercou. Todos portavam grandes arcos e lanças. Os olhos ferozes por debaixo do tecido negro dos turbantes.
“Onde está o seu Deus agora, franco?”, falou o que parecia ser o líder.
“Onde estava o seu quando estavam atrás daquelas colinas?”, replicou.
“Não são palavras sábias para a momento, franco.”, afirmou o árabe.
A resposta foi um sorriso cínico.
Um mouro girou sua lança e cravou a ponta cega onde a flecha penetrara nas costas do cavaleiro. Mal sentiu a dor voltar imensa, o outro já tombou. Inerte sob o céu poente.
Os mortos não têm sonhos turbulentos, descobriu o templário quando reabriu os olhos. Teve a expectativa de saber como seria o céu ou o inferno diante do purgatório de onde vinha.
Estava deitado sobre um leito macio, parecia estar numa tenda, repleta de seda... “Bom sinal”, julgou.
“Falou com Deus, cavaleiro?”, perguntou uma voz macia.
“Ainda não, mas estou ansioso por fazê-lo”, replicou.
“A sua fé não foi capaz de tão simples obra?”, veia a pergunta por resposta.
Diante da qual, surpreendeu-se o enfermo. Olhando para o lado, viu quem lhe falava à cabeceira da cama. Sentado, um senhor vestido majestosamente, fitava a entrada da tenta por onde penetrava a luz do sol.
“Seus companheiros têm me dado muito trabalho, cavaleiro”, falou voltando os olhos para os do francês.
“Ontem seu general mostrou valor”, prosseguiu. “Ele faz jus à alcunha de Coração de Leão.”
“Quem seria o senhor?”, perguntou o atônito europeu.
“Sou a bandeira deste exército, o líder desta Jihad, creio que me conheça por Saladino, senhor da Síria e do Egito.”
Estava diante do homem mais odiado por toda a cristandade. Não se parecia em nada com as decriçoes demoníacas que lhe atribuíam. Era baixo, parecendo até mesmo frágil. Mas seus olhos, sua maneira imperiosa de falar, deixavam claro o que de fato havia ali.
“O homem que nos tomou Jerusalém”, completou o templário.
“Os erros de seus nobres me entregaram Jerusalém”, respondeu tranqüilamente.
Fazendo um gesto de cortesia, levantou-se: “Vou deixá-lo repousar agora. Entretanto gostaria de ouvir um pouco sobre a jornada que lhe trouxe ao Oriente, cavaleiro, ficaria grato de conhecer sua história.”
“Antes me responda por quê continuo vivo.”
O senhor de tão gigantescos exércitos, chamado de demônio devorador de homens nas missas do Ocidente, suspirou. “Qual é o absurdo de se salvar um homem fadado à morte no deserto?”. “As cruzadas vieram de longe trazendo uma guerra furiosa consigo, tornando muito de nós fanáticos pelo combate. No entanto, caso fosse um árabe encontrado no deserto, o que chegaria ao líder inimigo não seria mais que sua cabeça. Afinal, franco, quem são os infiéis?”.
Não houve resposta. Os olhos claros do cavaleiro encaravam o teto, reflexivos.