RESGATE

O filho de Maria Clara veio ao mundo com todos os
traços de Ednam, o avô de seu avô, de quem sequer
ouviu falar.

Quando jovem Maria Clara sonhara com o pai de seu
avô que repetidas vezes lhe parecia pedir
enigmaticamente que procurasse pelo dono da vaca.
Depois que o menino nasceu ela acordou inúmeras
vezes ao longo do tempo assustada, instada por uma
solicitação interna que a levava a abrir a janela a tempo
de ver que a neblina se dissipava para gerar
inesperadamente aos seus olhos um mundo
inteiramente outro em relação à paisagem de todos
os dias nas imediações da residência.

Ela não tinha motivos para atribuir ao filho aquela sua
premência inexplicável. Nem se sentia encorajada a
falar a respeito com quem quer que fosse. O próprio
marido zombava dela atribuindo-lhe pendores
especiais para imaginações criativas.

A família prosperava continuamente acumulando
tesouros de valor incalculável. Seus bens mais
valiosos dispensavam cofres e serviços especiais de
guardas armados. Toda a prosperidade provinha de
uma alegria de viver em família, uma alegria
contagiante que contaminava todas as suas relações
gerando laços de amizades muito sólidas.

O menino crescia assim em ambiente favorável ao
desenvolvimento de uma entidade amável, prestativa,
sensível. Era atencioso, obediente, bem intencionado,

transformando-se aos poucos em um garoto bastante
sensual.

Apesar de todos os cuidados que lhe eram
dispensados, adoeceu durante a noite. Pela manhã,
por mais que se esforçasse tentando obedecer aos
incentivos para se por em pé e se preparar para
comparecer às aulas, não conseguiu levantar. A
esperança de recuperação nas próximas horas
desapareceu no dia seguinte levando o médico a
solicitar apreensivo por exames clínicos. Quinze dias
depois daquela manhã de susto, a tendência no
hospital era de piora lenta e gradual.

Os laços de amizades foram importantes ao equilíbrio
emocional de Maria Clara cujo coração se
despedaçava por aquele infortúnio a que os céus a
haviam condenado. Ela não conseguia divisar no futuro
nenhuma ventura que, advinda daquele momento
amargo, pudesse compensar a perda do filho muito
amado, carne de sua carne. A despeito de sua
perplexidade, entretanto, o carro seguia pelo caminho
que havia tomado em razão de escolhas equivocadas
ao longo de gerações.

Agravando-se o estado de saúde do garoto houve
necessidade de isolamento rigoroso e, em
consequência, a drástica redução das autorizações
para breves minutos de visitas. Maria Clara, que antes
passava os dias ao lado do leito, passou a se sentir
deslocada no tempo e no espaço. Ela e o marido
permaneciam perambulando pelos corredores do
hospital, implorando aos médicos e aos enfermeiros
informações sobre o filho. Recomendavam-lhes calma
e diziam-lhes não haver novidades.

Foi então que numa bela tarde um senhor de idade se
aproximou do casal. Não tinha o aspecto de cansado,
nem era de ancião o timbre de sua voz. Disse-lhes
apenas duas coisas:

— Estão tratando do corpo. Levem-no à cura de sua
alma.

Na manhã seguinte, coincidentemente, os médicos
procuraram o casal propondo a transferência do
garoto. Ele precisava de hospitais em melhores
condições em termos de equipamentos e
especializações médicas. Seria levado em ambulância
até o próximo aeroporto. Tudo já estava agendado, o
hospital de destino o aguardava.

A viagem teve início algumas horas depois e tudo corria
bem até que o tempo virou, o transito piorou e
finalmente foi totalmente paralisado. Sem outra
explicação que não fosse a impossibilidade de
liberação da pista nas próximas horas, os guardas
sugeriram um caminho alternativo, mais longo e em
piores condições. A viagem prosseguiu assim mais
lenta e mais sofrida até um ponto onde o motorista
precisou parar para abastecer.

Saindo da ambulância Maria Clara contemplou
maravilhada aquela mesma paisagem que aos seus
olhos se abriam em suas noites de inquietações. Num
primeiro momento o marido a julgou alucinada. Ela,
entretanto, fechando os olhos o desafiou a arguí-la
sobre o que podia haver ao redor. A tudo respondeu
com precisão descrevendo de olhos fechados os
componentes ambientais que podiam ser observados
pelos olhos de um marido cada vez mais admirado e
convencido da capacidade de premonição da esposa.

Ela, finalmente, anunciou o desejo de procurar por uma
residência em especial existente nas proximidades.

Em tal residência encontraram, no quintal aos
fundos,rapaz de meia idade que salgava em mantas
as carnes de uma vaca expondo-as em um varal ao
sol.

— Meus tios viajaram – disse ele com um sorriso
constrangido – o veterinário considerou necessário
sacrificar a vaca depois do acidente que a vitimou nesta
manhã.

— Você vive com seus tios?

— Sim! Há muitos anos. Meus pais pereceram em um
incêndio. Desde então vivo com meus tios. De certa
forma estou preso a estas terras que pertenceram a
um homem que enlouqueceu. Chamava-se Ednam.

— Seus tios lhe contaram sobre isso? – perguntou
lívida Maria Clara.

— Não! Eles não falam sobre isso. Eu simplesmente
sei. Dizem que sou biruta.

— Por que dizem isso?

— Porque não acreditam em que preciso perdoar
Ednam.

— Perdoar?

— Eu não sei. Perdoar. Tudo o que eu preciso é
perdoar Ednam. Enquanto isso não acontecer não há
nada que vá para frente em minha vida. Meus pais
foram mortos pelo fogo que deveria me devorar. Estas
carnes são os restos de uma vaca que foi saudável
até a semana passada. Quando meu tio achou por
bem me presentear com ela, houve o acidente.

— De que maldade você precisa perdoar Ednam?

— Não sei. Eu daria minha vida por ele. Acho que ele
virou as costas para mim. Deve ter sido isso.

A premência do tempo impediu ao casal de esperar
pelo retorno dos tios do rapaz azarado e tirar a história
a limpo.

O menino e o rapaz, aquelas duas entidades enfermas,
chegaram tão próximas! No entanto, pelos olhos da
carne, não tiveram oportunidade de mutuamente se
contemplarem.

A ambulância seguiu levando o menino doente para
onde pudesse ser posto em um avião com destino ao
hospital.

O tratamento do corpo estava assegurado.

O resgate teria de esperar por novas encarnações.

Lucas Menck
Enviado por Lucas Menck em 24/04/2010
Reeditado em 24/12/2010
Código do texto: T2217268
Copyright © 2010. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.