SORO DA VERDADE

Vomitou o almoço todo. Ainda com o dedo na garganta, expeliu todos os antidepressivos que acabara de tomar.

Não sentia mais fome por que o seu próprio vômito causava-lhe nojo.

Sentado no sofá, mudando os canais em busca de fantasmas, sentiu uma forte náusea. Não queria mais vomitar, não havia mais o que vomitar. As cartelas do medicamento estavam vazias, já haviam sido digeridas para depois serem expelidos.

Olhou para o braço, viu o inchaço que uma picada recente proporcionava. O inchaço advindo da picada aumentava e ele não se via picar.

Passada a náusea, assimilado o inchaço, as ranhuras na parede não eram empecilho, não havia gravidade que o mantivesse no chão.

Saiu do chão.

Era fácil sair do chão por que podia subir pelas paredes. Punha as mãos na parede e escalava subindo cada vez mais alto. Não olhava para baixo, pois o tombo seria grande se, porventura, olhasse para baixo, olhasse para trás, o tombo o levaria ao chão.

Era um rapaz tímido, mas genial, era feio, mas bom, pensava.

Pensava.

Pensava em tantas coisas sobre si mesmo enquanto escalava as paredes. Que tamanho teria o maior prédio do mundo? Ficaria cansado se escalasse o prédio mais alto do mundo? Poderia voar até os Emirados Árabes para escalar o prédio mais alto do mundo? Podia!

Surpreendentemente, ao se soltar da parede — talvez por não olhar para baixo —, não se viu caindo, despencando com susto nos carros que iluminavam a noite da cidade lá embaixo. Voou.

Foi um voo supersônico. Em poucos minutos vislumbrava o Golfo Pérsico, as construções futuristas e inúteis no meio do deserto e lá estava o prédio.

Pousou sobre o prédio e ele era minúsculo diante da grandeza do prédio, mas, se o escalasse, se provasse a todo o mundo que era inerente à gravidade e subisse o maior prédio do mundo apenas com as mãos espalmadas na parede, então não seria tão pequeno.

Antes de escalar, teria de descer. Pensou que se estava no topo, se já alcançara as alturas voando, então o esforço de se assemelhar a uma lagartixa na parede, rastejando na parede vertical, era já antiquado.

Voava. Mesmo que os helicópteros congestionem o céu, que a poluição da China o impeça de ver a China lá embaixo, bastava saber que voava.

Voava rasante sobre os pobres mortais que não podem voar. Ele podia voar.

Utilizava-se da velocidade supersônica de seu voo para apreender o máximo possível no menor tempo, já que no dia seguinte precisaria trabalhar, já que colocaria seus óculos e voltaria a ser um rapaz tímido, mas genial, feio, mas bom. Mas não agora.

Enquanto fugisse do sol que a todo o momento queria nascer no horizonte e se pôr no outro extremo, estaria seguro. Conseguiria fugir do tombo se não olhasse para baixo e se visse mudando de canais.

Desviava rapidamente assim que se deparava com uma aeronave. Não poderia ser visto para não descobrirem sua identidade. O que as pessoas não pensariam a respeito de um homem voando? Pensariam ser um avião, um pássaro? Um pássaro regurgitando? Um homem sentindo náuseas enquanto voa?

O que faz um homem vomitar enquanto voa incerto sobre o destino de seus dejetos, sem saber sobre quem o vômito vai atingir?

Pois o homem vomitava todo o almoço daquele dia. Talvez fosse a turbulência, o congestionamento no céu que o fizesse trepidar durante seu voo e lhe causava esse mal-estar.

Era estranho ver um homem voando enquanto expelia seu interior. Estranho ver outro homem voando. Não era apenas ele no mundo inteiro a levantar voo e sentir náuseas.

Queria alcançar o outro homem, mas este não queria ser alcançado. Quanto mais se aproximava, o outro acelerava desfazendo-se de dentro para fora.

Inútil a aproximação.

De tanto vômito, o outro homem acabou por desaparecer. Simples assim: jogando o interior para fora, todo o resto se extingue.

Restava ainda um fio de cabelo voando veloz e ele, tímido, esticou os braços, meio descrente de que pudesse fazê-lo, e pegou o fio nas mãos.

O fio da própria história se perdia no vento, na turbulência de uma tempestade.

Os raios fustigavam a pele e a chuva impedia a visão. O açoite o fazia cair lentamente, desprovido da capacidade de voar.

Estranho, mas lá embaixo não chovia. Tudo brilhava com o sol, que, enfim, conseguira pegar um fio de cabelo seu, que o segurava pelos cabelos e castigava com raios de calor.

O raio de calor atravessava a janela da sala. A luz da televisão se dissipava diante do sol.

O inchaço no braço era já imperceptível. A mordida daquele inseto perdia o efeito. Podia vestir uma camisa e sair para trabalhar. Podia deixar o controle da televisão de lado, vestir uma camisa e tomar o controle de sua própria vida.

Mas o programa na televisão era transmitido somente aos sábados, sabia. Óbvio supor que era sábado e não encontraria emprego num dia como este.

Aos sábados não poderia pensar em trabalho. Quem sabe na segunda ou talvez na terça.

E sem pensar em trabalho, livre da cobrança de si mesmo para que procurasse um emprego, restava a televisão.

Procurou fantasmas na televisão e não encontrou.

Para encontrar fantasmas tomou novamente da seringa. Seringa em mãos, injetou no braço seu voo supersônico.

Subiu nas paredes do maior prédio do mundo para vomitar lá de cima. Do alto do Burj Dubai.

Fabiano Rodrigues
Enviado por Fabiano Rodrigues em 23/04/2010
Código do texto: T2214629
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