Escombros de uma vida inexistente

Prólogo: Não gostava muito de ver TV, mas talvez eu precisasse dela e, por não ter muita disposição para ligar o aparelho, passei então a assistir à minha própria vida. Não havia controle remoto, por isso esperava que os canais se alternassem sozinhos entre o sonho e a realidade e, por vezes, não sabia qual era a emissora da vez...

__

Na confusão estabelecida entre o real e o ilusório, meu corpo começou a mostrar falhas de transmissão e eu não percebia. Nas poucas vezes em que falava, raramente era ouvido, e os outros só pareciam me notar em meio ao metrô lotado e às aglomerações, em que as mulheres gordas me olhavam com censura por eu existir e elas terem de contrair a barriga. Fora tais momentos, não ficava no caminho de ninguém nem sentia o ímpeto de me fazer notar. Um dia esbarrei em alguém com tanta violência que caí no chão. De onde terá essa pessoa surgido? Apertei os olhos contra a luz e pude enxergar algo, uma mão que se estendia para me ajudar a levantar. Fiquei tão perplexo que me levantei sozinho e comecei a me afastar rapidamente, enquanto o dono da mão me encarava incrédulo.

— Não fuja de mim, seu tolo. Não vê como somos iguais?

Não, eu não via nada, muito embora as coisas parecessem diferentes ao redor, como se tudo estivesse mais cinzento do que o habitual ou a figura do homem apresentasse uma luz bruxuleante. Eu fui embora e continuei a assistir à vida que passava, sem brigar nem reclamar e quase nunca elevar a voz ou a cabeça. Esperei que algo ocorresse, que minha vida partisse de algum ponto, fosse um emprego que me realizasse ou uma pessoa que complementasse, ou mesmo um raio que se abatesse sobre mim e me fornecesse alguma energia... Esperei porque meus sonhos me completavam e não achei que houvesse urgência em partir de ponto algum.

Até que, num belo fim de tarde no parque, levantei os olhos de um livro e avistei algo vindo em minha direção. Não, não era um raio; era um meteoro prestes a virar um... meteorito. De início achei que estivesse perdido novamente na fronteira difusa da consciência, até que o fenômeno pareceu nítido demais para ser concebido por minha mente limitada. Senti um motor orgânico vibrar dentro de mim; os gritos se acentuavam ao redor e o pânico se espalhava. Comecei a me afastar da catástrofe iminente, mas a dúvida me fez esperar demais.

O impacto ocorreu a alguns quilômetros do lugar, mas a destruição estendeu a mão até mim inexoravelmente. Após o barulho de ensurdecer, fui imediatamente soterrado pelo que supunha serem galhos das árvores e fragmentos incandescentes da rocha. Ao conseguir descobrir parte do corpo – para o qual tive medo de olhar – pude vislumbrar uma figura encapuzada se movendo rapidamente como se não tivesse pés. Ao se deter sobre mim, porém, notei um par de galochas prateadas combinando com a capa, e dentro deles uma escuridão completa.

Apesar da estupefação perante os fatos, eu já sabia: era a morte, vestindo trajes à prova de fogo (!), que levantava dramaticamente uma foice reluzente acima do capuz. O movimento seguinte foi largo e rápido, e por um instante pensei que ela tivesse errado o alvo, até que uma massa viscosa se desprendeu da lâmina. Era o espírito do homem que eu um dia havia esbarrado. Ele havia se jogado sobre mim e recebido todos os escombros sobre si, ao que indaguei a causa de tal atitude. Ele respondeu:

— Como você, tive uma vida sem existência. Agora, fiz por merecer minha morte, em meu primeiro e último ato consciente.

— Não sou como você. Não me sacrificaria por ninguém – retruquei.

— O sacrifício também é um ato de egoísmo. Você ainda tem muito que aprender, mas não se preocupe, você ainda tem muito, muito tempo - riu-se, dissipando-se com as partículas finas e luminosas que ainda caíam.

Fui tomado pelo terror ao ouvir aquelas palavras ditas com tanto sarcasmo. Não queria saber de nada de "muito, muito tempo", não com minha mente desperta e meu corpo debilitado. A morte já havia retomado seu caminho quando gritei desesperadamente. E eu? Ela trovejou: Somente aquele que vive tem direito à morte. Você não está vivo o suficiente. Nada posso fazer por você.

Fui tomado como morto pela equipe de busca e virei lixo, posto num saco e depois jogado num buraco. Então, lentamente minha consciência começou a apodrecer com meu corpo. Lentamente.

A Diniz
Enviado por A Diniz em 11/04/2010
Reeditado em 06/02/2011
Código do texto: T2189636
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2010. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.