E se nada mais importasse?

Publicado no PSVsite Crônicas - Desafio "E se"

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Três da madrugada e ainda acordado. Com sono e sem conseguir dormir. Sentia-se mal. Um incômodo em si. Quando o homem deitou e fechou os olhos para finalmente não pensar em mais nada, começou a pensar em tudo ao mesmo tempo. E foi afundando num mal-estar geral. Uma sensação de preocupação... mas com o quê? Com tudo? Com a vida? A única certeza agora é que não aguentava mais se revirar na cama, e que às seis da manhã acordaria com o celular despertando e iria trabalhar morrendo de dor de cabeça e com aquela cara de fantasma.

Decidiu fazer alguma coisa para passar o tempo. Foi até a sala e ligou a televisão. Um filme. Uma cena. E uma assustadora coincidência com o que viu na tela fez um arrepio percorrer todo o seu corpo. Aquela cena que ele um dia viveu... Sentiu a cabeça girar e o peito ferver como se uma represa arrebentasse dentro dele jorrando sangue. A visão desencadeou uma avalanche de lembranças há muito tempo esquecidas que inundou sua mente. Uma pessoa, um lugar, uma época... Foi a gota d’água. Sua respiração parou e uma náusea profunda subiu de dentro dele, vomitou num esguicho repentino e junto ao líquido amargo uma coisa sólida emergiu de sua garganta e foi lançada ao chão, no meio da poça que se formou no tapete. Tossindo e ofegando, o homem olhou para o resultado de seu enjoo e viu o que havia expelido: uma massa de carne coberta de sangue e vômito. Se afastou, subindo no sofá, horrorizado. O que é isso? Um tumor? Vou morrer? O que foi mesmo que eu jantei? Deus do céu, está se mexendo! Está... Não sabia o que pensar. O filme na televisão continuava, o homem olhou para a tela e... nada aconteceu. Não sentia mais nada. Seu mal-estar havia passado completamente. O susto também estava passando. A respiração se acalmando. Aos poucos foi percebendo uma sensação espantosa, a sensação de se sentir plenamente bem. Sentia-se em paz, como nunca havia se sentido antes. Uma paz absoluta.

Desligou a televisão e foi para a cama. E aquela coisa estranha que tinha vomitado... já não importava mais o que era. Jogaria no lixo. Depois lavaria o tapete. Nada mais importava, nada incomodava. Nenhum pensamento. Agora só queria dormir. Foi para o quarto, deitou e logo adormeceu, tão bem, tão tranquilamente, que um leve sorriso ficou em seu rosto.

Seu corpo só foi encontrado semanas depois. A decomposição já havia apagado seu sorriso. Sua paz levou ao sono, e no sono, agora, durava eternamente. Pois não poderia continuar vivo. Não com seu coração jogado no tapete da sala.

Gustavo Carnelós
Enviado por Gustavo Carnelós em 09/04/2010
Reeditado em 09/04/2010
Código do texto: T2187552
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