ANTES QUE TUDO ACONTEÇA

Não pretendo ser vítima da surpresa, optei por ser pragmático. Para maior segurança e garantia de que realmente num piscar de olhos tudo acontecerá na extrema rapidez de um milionésimo de segundo, sem tempo nem possibilidade de antes do fim ainda ter de suportar instantes de sofrimento, preferi encher os tambores dos dois revolveres calibre 38. Ficarei com um em cada mão, os dedos indicadores nos gatilhos, seguro de minha decisão e sem qualquer traço de medo. Não haverá tempo para temores. Pretendo acionar ambos ao mesmo tempo sem qualquer hesitação, num rápido piscar de olhos. Será por esse meio ou pela forma mais cruelmente dolorosa, não tenho mesmo a menor escolha como os demais, portanto já fiz minha opção. Resta somente sentar e esperar um pouco mais os primeiros sinais, tendo esperança de que haverá tempo suficiente para acionar os gatilhos bem antes que tudo aconteça. Torço para que seja assim, prefiro uma morte sem demora.

Agora, muito antes de tudo que me possa vir à mente, até mesmo porque não existe qualquer outra alternativa a ser ruminada, estou olhando o céu à espera, os revolveres em minhas mãos, atento à procura dos indícios. Muitos pobres coitados correm por aí enlouquecidos, desesperados, chorando, clamando, rezando ave-marias ajoelhados no asfalto, outros tantos já se conformaram e solucionaram seus pavores muito antes de mim. Embora eu vá resolver a indesejável questão, da qual não se tem saída, de forma idêntica à deles ou semelhante, faço meu próprio tempo. Sou dono do meu próprio instante. Ademais, se bem possa parecer masoquismo, arde em minha alma o desejo de assistir ao começo de tudo, ver se terei condições de presenciar os primeiros tormentos antes que cheguem até mim. Ou será que as coisas acontecerão de modo súbito e inesperado? São muitas as possibilidades, e, claro, não vale a pena ocupar-me com esses pensamentos inúteis. De todo modo, nenhum problema, ainda assim vou esperar. Talvez eu encontre uns segundos para utilizar as duas armas antes de eclodir o inevitável.

Minha mulher não teve o mesmo sangue frio que eu para "sofrer aguardando", como ela se referiu à vigília por mim determinada. Disse somente que iria meter-se na multidão em polvorosa até encontrar o meio mais fácil, rápido e indolor. E desapareceu. Uma tola, tanto faz de um jeito ou de outro porque vai acontecer queiramos ou não. Mas eu não contei a ela sobre os revolveres, portanto imagina-me apenas como um idiota sem saída, um louco, quem sabe?, sem nenhum temor de deixar-se despencar no mesmo instante que tudo e todos. E ser esmagado, arrastado, aniquilado ou simplesmente virar pó repentinamente enquanto se deixa envolver pela vigília angustiante.

Encerrados em iguais pensamentos também se foram amigos, parentes, vizinhos, conhecidos, multidões. Muitos deles certamente ainda continuam zanzando sem rumo à espera de um milagre, algo capaz de evitar o que não pode ser evitado. Enlouquecerão muito antes da derrocada e embarcarão inconscientes no vagalhão, que os engolirá feito rápida e silenciosa serpente, penso. Contudo, sofrerão por momentos, minutos ou segundos, quem sabe? Assim eles quiseram. Tudo bem, nessas horas cada um em seu próprio universo íntimo toma a decisão que melhor lhe aprouver. Eis a hora mais adequada para o correto uso do livre arbítrio.

Uns incansáveis cientistas bobalhões, neste exato intervalo, procuram fazer o que jamais poderão concretizar, o impossível, na tentativa de, utilizando os meios mais modernos disponíveis, deter essa força indomável. Eles bem sabem - ah, e tentaram nos enganar a princípio usando palavras amenas e explicações desprovidas de nexo, mas em vão porque logo descobriu-se a aterrorizante verdade - que de nada adiantará seus esforços, pois é certo e do conhecimento de todos que cálculos os mais complexos foram exaustivamente feitos e hipóteses até estapafúrdias e mirabolantes se levantaram nesse intuito, sempre redundando em nada. Não há nenhuma possibilidade de saída para o caos iminente. Melhor que eles tenham seus próprios revolveres, sem esquecer-se de enchê-los de balas.

Faltam pouco mais de dez minutos para acontecer, conforme previsão comprovada. Já escuto estampidos vindos de diversas direções, recrudesceram os gritos de terror, crianças não abatidas pelos próprios pais ou por terem fugido antes de serem massacradas ou, decerto, porque aqueles que os colocaram no mundo não tiveram coragem para tanto, choram em muitos lugares, em altos brados, e o lamento brota de todos os lados parecendo que o horror em toda sua extensão a nascer e berrar feito recém-nascido nas entranhas dos desesperados. Procuro permanecer indiferente e lanço um sorriso melancólico às minhas mãos segurando os revolveres. Acaricio cuidadosamente as duas armas, cônscio de que nelas está o meu consolo.

Cansaram-me os olhos de tanto fitar o céu. Pisco por instantes tendo a impressão de ver nuvens formando nitidamente uma imensa e ameaçadora garra, que vem macabra em minha direção. Então um indescritível clarão rompe as nuvens a uma velocidade inacreditável em busca da terra. Só me é possível escrever esse final antes de acontecer: se alguém sobreviver, conserve este documento para a história, se é que ainda haverá algo da humanidade para contar. Você, sobrevivente - caso consiga chegar a isso, embora eu ache improvável - não escutará o barulho dos meus revolveres, mas já os tenho às têmporas e estou absolutamente indiferente. Potente, desfigurado, furioso, o céu está desabando sobre nós! Pronto, é agora, não me resta mais nenhuma chance para nada. O caos abre sua bocarra para engolir-me. Porém, sem lhe dar a mínima chance sou mais rápido e puxo, ao mesmo tempo, os dois gatilhos. Abraço a morte.

Gilbamar de Oliveira Bezerra
Enviado por Gilbamar de Oliveira Bezerra em 08/04/2010
Reeditado em 05/09/2010
Código do texto: T2185758
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