UMA APOSTA DO OUTRO MUNDO
O gre-nal, sempre foi um clássico de grande rivalidade no futebol gaúcho e aos meus longínquos 17 anos já era assim. A diferença é que não havia atos de violência e guerra entre torcidas como hoje. A corneta era livre e restava ao perdedor sofrer a gozação e pagar a aposta. Naquela época aposta era coisa séria e tinha que ser paga ou era cobrada na marra. Naquele domingo, o Inter havia virado o jogo e vencido a disputa. Na nossa turma não havia discriminação e conviviam fraternalmente colorados como eu e gremistas companheiros leais. Tudo se restringia ao campo de jogo.
O Olímpio, gremista fanático havia me proposto a aposta.
– Quem perder raspa a cabeça, com navalha. Quando o Olímpio sumiu, naturalmente acompanhados de um membro barbeiro devidamente equipado, saímos em busca do tratante. Quando o localizamos em casa de uma tia, não reagiu e pacientemente cumpriu a promessa, em público. Era assim, tinha que ser um ato público. O Olímpio era um cara legal, companheiro sempre pronto a assumir broncas que nem eram dele, mas, mexer com alguém da turma era como comprar briga com o próprio. Bom lutador, não recusava adversário. Tinha sempre uma história de conquistas amorosas, que sabíamos não passar de gabolice, pois o que mais se sabia era de seguidos e sonoros tapas desferidos por seus alvos de cantadas mal sucedidas. Assim, após a cobrança da aposta rumamos para o clube dos ferroviários, onde sempre acabava o domingo com longas e animadas discussões regadas a cerveja. Lá pelas 23,00 h, já com o grupo reduzido, pois alguns já haviam ido embora, o papo futebolístico esgotou e a conversa agora girava em torno de estórias de fantasmas, aparições e bravatas de quem as havia vivido. Seu Amaro, um senhor de seus 60 anos, já aposentado, bebericava sua cervejinha atento disfarçadamente ao que se conversava. Lá pelas tantas, levantou-se e tomou a palavra.
– Muito bem, quero ver quem de vocês tem coragem mesmo ou se é tudo fanfarronice. Pago um engradado de cerveja à quem for até o cemitério e me trouxer uma caveira. Houve um silêncio mortal e todos se entreolhavam. Ninguém parecia disposto a encarar tal façanha e vendo que ninguém se apresentava, falei,
- Eu aceito!. Novo silêncio, apenas alguns murmúrios. Naturalmente o Olímpio deu um passo a frente.
– Se você topa eu também vou. Falando isso, aproximou-se e me segurando pela manga falou ao meu ouvido,
- Tu não ta pensando em violar sepultura ta?
- Não, respondi. O Olímpio sabia que eu já tinha um plano e para ele bastava. Meu tio era o ecônomo do clube e com um sorriso malandro estendeu-me uma lanterna de mão por sobre o balcão. Também já havia adivinhado o que eu pretendia. Tomamos nossas bicicletas, a minha vermelha e a dele evidentemente azul e rumamos para o cemitério que ficava a uns 1.500 m do local. No caminho o Olímpio propôs uma parada. Estava ansioso por saber o que eu havia bolado.
- Tá, agora explica como vamos trazer uma caveira. O cemitério fica na aldeia de São Nicolau, próximo a igreja em homenagem ao santo.
- Sabe a igreja? Tem um porão alto onde guardam os esqueletos de famílias que já nem existem ou cujos remanescentes se foram há bastante tempo. Descobri o local, na última festa de São Nicolau, quando eu e a Martinha, fomos procurar um local mais sossegado pra fazer aquelas coisas que não podemos em público.
O porão tem uma portinhola com tela e nem tem fechadura, pois ninguém imagina que alguém queira entrar lá. Logo após a entrada, a direita havia um velho sofá que naquele dia veio a calhar. Só vi as ossadas, quando íamos saindo e o farol de um carro em movimento refletiu sobre elas. Martinha felizmente não viu, pois já havia saído o suficiente. Dei graças a Deus, porque ela iria com certeza desmaiar, o que me teria criado um grande problema. A portinhola desta vez estava entreaberta facilitando o ingresso. A luz da lanterna surgiram ossadas e caveiras jogadas ao acaso.
– Esta aqui serve, está bem velha, mas ainda inteira,
–Falou o Olímpio, tirando o pó com cuidado.
– Porque uma tão velha? Perguntei.
– Hora. Pode ser que o defunto já tenha reencarnado e aí, não vai mais precisar. Dei de ombros e antes de sair, juntei uma lápide quebrada, mas, que ainda permitia ler, abaixo de uma cruz gravada na pedra, aqui jaz Antoni...Não dava pra ler o resto, mas servia.
– Pra que isso? Perguntou.
– Precisamos provar que estivemos no cemitério, respondi prendendo a lápide no bagageiro da bicicleta. Era uma noite clara de verão e a lua cheia anunciava que teríamos mais uma longa noite pela frente. Quando entramos no clube, a noticia já se espalhara e a platéia já era bem mais numerosa. Algumas garotas já estavam presentes e uma delas avançou em minha direção. A Martinha não estava nada feliz com a história e agarrando minha orelha puxou com toda força.
– Seu cretino! Agora deu pra violar cemitério?
– Calma, não é nada disso, apenas tomamos emprestada. – Você vai devolver isso tá?
– Claro, respondi com a orelha ainda em fogo. Desenrolei a caveira e a colocamos ao centro da mesa de sinuca com a lapide posicionada ao lado.
– Declaro que vocês têm 24 cervejas geladas, na conta do seu Amaro aqui presente. Falou meu tio. Depois dos aplausos gerais, mais pela possibilidade da cerveja grátis do que pela façanha que acabávamos de cumprir, contei a Martinha o que havíamos feito para obter a caveira e ela já bem mais amistosa, me fez prometer solenemente que eu a devolveria
– Palavra de índio. Afirmei. Já eram umas 3 horas da madrugada e a conversa animada, foi repentinamente interrompida por uma tempestade destas que surgem de repente com ventos tão fortes que não deu tempo nem de fechar portas e janelas. Faltou luz e minha tia tratou de acender uns lampiões de querosene e um deles, posicionado à esquerda da caveira, criava um ambiente fantasmagórico. A estas alturas já havia gente comentando que não se devia mexer com estas coisas,
– Viram? Isto foi um sinal.
A cerveja já havia acabado e a luz voltara. Resolvemos então devolver a cadeira.
– Desta vez eu vou com você, falou Martinha,
– Só pra garantir. Completou.
Saímos então, eu a Martinha, o Olímpio e a Claudinha? Sim, desta vez o Olímpio tinha alguém para acompanhá-lo. A Claudinha era uma garota alegre muito bonita e era meu par predileto para uma dança quando eu estava sozinho em algum dos bailes do clube. Ela própria já havia rechaçado várias investidas do incorrigível Olimpio. Mas, naquela noite o clima parecia ter favorecido a aproximação dos dois.
A tempestade havia passado e incrivelmente a noite voltara a ser clara com um céu estrelado e a lua iluminando tudo como antes.
Desta vez fomos a pé, curtindo cada um sua namorada e dava pra perceber que o Olímpio estava mais alegre e feliz do que nunca.
Chegando ao local, o Olimpio ajeitou a caveira e fez um montinho de terra, tirando uma vela do bolso.
– Pra que isso? Perguntei.
– Sua tia me arrumou esta vela. Vou acender, só pra garantir. Dizem que os espíritos se acalmam quando a gente acende uma vela.
Depois de garantir que não haveria um incêndio, tomamos o caminho de volta. A Martinha agora estava carinhosa e a lua insitava ao romance e caminhávamos entre beijos e gestos de carinho.
Lá pelas tantas, olhamos para trás e nem sinal do Olímpio e sua namorada. Desta vez a nossa aventura servira para que finalmente o Olímpio tivesse sua namorada e certamente não estavam perdendo tempo. Martinha olhou-me com um sorriso sugestivo e sua mão segurou minha orelha. Já esperava o puxão, mas desta vez, transformou-se em uma doce carícia.
– Porque você falou palavra de índio?
– Hora, porque índio não mente.
– Legal, vou falar isso pras minhas amigas.
– Vai não. Índio não mente, mas índia mente.
Bem o resto desta história é impublicável.