Missa Do Galo
Mara Amélia não curte as tradições religiosas da geração dos pais. Missa não era com ela. Às solicitações da mãe, responde:
Sem essa coroa, me poupa dessa onda. E do Galo, pô, que galo esse? Aqui em Santa Cecília não tem galo. Quem canta de galo é a cana. Os troglô da polícia, os assaltantes e trombadinhas. Galo é para quem tem quintal e mora em casa com portão de entrada e jardim.
Entrou no banheiro disposta a só sair quando tivessem esquecido dela. Até depois de saírem, gostaria de poder permanecer sentada no vaso sem mais incômodo. Se ficasse quieta talvez pensassem que já havia descido. Mas qual, que pentelhação. Aí está Filipe, o irmão, querendo usar o dito. Berra para ele em resposta ao tóc-tóc na porta:
Dá um tempo, cara, usa o da área de serviço, vou demorar.
Filipe, a voz afetada, própria do pessoal de sua grei, responde afirmativo e ao mesmo tempo dissimulado:
— Tinha de ser você. Pra botar um tampax na xota passa duas horas e meia. Saco!
Mara Amélia pensou com seus botões:
Puta que pariu, menstruação é dose e nunca vem sozinha.
A mãe bate à porta chamando para sair. Maria Amélia contemporiza berrando que vai assistir pela tvvisão.
Estou com dor de barriga.
Filipe, investindo no empréstimo do carro da mãe, continua representando o papel de bom rapaz, sugere:
Vamos sair fora, se dá mais tempo você vai perder a missa, mama. Ela sabe o caminho da igreja.
— Amélia! Adverte a mãe, estamos descendo. Nos encontramos na missa. Não demora, filha.
A garota balbuciou de si para consigo:
Vai nessa coroa, vai atrás de teu galo que o meu peru tá garantido.
Geraldo, porteiro do prédio, prossegue na espreita. Espera por Mara Amélia no depósito da garagem do edifício, há cinco minutos. Se ela demora mais outro tanto vai ter de massagear o clitóris com o dedo. Ele não tem muita paciência, e anda meio estressado com as mazelas do salário baixo.
Não vou penar na saudade. Se não vier logo perde o tesão. Fica pra próxima. Por outro lado estou carente duns trôco. Essa vadia! Vou ter de dar um tempo. A mulher anda armando barraco, desconfiada.
— Camisinha falsificada a dessa farmácia no Largo. Da última vez, ploft! Estourou. A ociosa vem aí. Disse que comprava um comprimido do dia seguinte e pra ela estava resolvido. E pra mim? Se ela estiver bichada? Vai saber! Não se deve confiar em ninguém.
Olhando as horas no "Omega" de dez reais, comprado num camelô no Largo de Santa Cecília, em frente à Igreja, Geraldo já está nos finalmente da espera. Dirigindo-se à saída pela garagem. Nesse momento Amélia sai do elevador e chama:
Está com pressa, cara? Está dispensando a diamba? Cabeça feita?
O ponto fraco de Geraldo é um baseado. Mara sabe e mantém a expectativa, mostrando um enrolado entrededos parecendo uma cigarrilha. Ao pressioná-la entre o lábio superior e as narinas, faz biquinho e sopra o ar.
Esse fino aqui, ó, sossega leão, pega no primeiro barrufo. Um tapinha e já fica esperto. Geraldo, chegando-se mais pega-a pelo braço e carrega para o quarto que também é depósito de material de limpeza.
Mara Amélia deita de bruços no colchão que comprou no brechó numa rua próxima. Geraldo puxa a calça dela para baixo e vai enfiando a boca nos confins da adolescente, a língua subindo pelo vinco até a nuca. Ela vira-se, baseado em punho e sorrindo:
Cadê a chama, nenê? Geraldo estende o braço, abre a gaveta da velha mesa e agita os dedos dentro dela até pegar o isqueiro. Está ansioso para dá um tapa no fino. Aspirando avidamente a fumaça, aprova o baseado e começa a bolinar Mara Amélia. Ela diz:
Pode fazer a cabeça, a minha está nos trinques.
Enquanto isso, a mãe de Mara, sozinha dentro da Igreja lotada, sente o olhar benevolente da Santa e sucumbe às solicitações da emoção que toma conta dela. De repente caiu a ficha de como perdeu o controle dos filhos. Não valorizam o que ela pode oferecer a partir da condição de funcionária pública desquitada, sem pensão do ex-marido. Segurando a barra da aceitação de que eles estão sendo educados pelas amizades deletérias e os exemplos vindos das personagens da tv. Desconfia que em breve vai perder a filha para a prostituição. O filho ela sabe que é gay. Flagrante de beijo com o vizinho no corredor.
Deseja aproveitar esse momento, a intensidade desse distúrbio. Rezar. Precisa falar sério com aquela mulher no altar. Tentar uma oração. A Ave Maria tradicional não tem mais força de revigorar a fé. Balbucia uma oração que ouviu num CD de música. Achou adequada para esse momento, misto quente de aflição e perplexidade.
Ajoelha-se sempre fixando a atenção naquele olhar de vivacidade, como se não houvesse mais nada a fazer no mundo, senão acreditar na possibilidade de ser ouvida pela santidade que a imagem representava.
Oh Mãe de Deus olhai por nós da altura do teu ninho. Quando fores usar teu carinho, olhai por nós da altura do teu ninho. Vem buscar os teus filhos no caminho, Mãe, fica aqui comigo. Sou sozinha. O teu calor arde em mim como uma chama. Chama-me. Oh Mãe como pude esquecer teu caminho? Oh Mãe de Deus dá-me teu perdão, teu perfume. Dá-me teu perdão, dá-me tua luz, quero teu lume. O teu calor arde em mim como uma chama. Atende-me porque estou a pedir. Oh mãe! Ouve-me! Estou aqui. Vem me busca! Estou sozinha. Olha por mim, senão por outro motivo, porque estou aqui.
Misturou palavras às da canção. Sabia apenas que tinha de fazer uma oração. E como as letras das velhas orações haviam perdido a força do inusitado, que entusiasma e motiva a crença na fé, esse era seu jeitinho de renovar a esperança de que seria ouvida. Afinal, que tinha a perder? Confiava num milagre. Por que não?
Que podemos fazer, oh Mãe? Não há mais afinidades entre eles e nós. O mundo mudou muito, muda todo dia mais, e cada vez menos tens voz e vez. Não faço parte das tristezas e alegrias deles. As músicas que eles ouvem em mim causam alergias. Os objetivos deles são por demais diversos dos meus. Ouve-me! Senão por outros motivos, porque estou aqui... Os santos deles são as personagens da tv. Ela, a tv, é o altar, e as missas são os longos programas, os Big Brothers, as novelas, as Angélicas da vida.
No subsolo do edifício Mara Amélia está a se vestir. A maresia do baseado tomou conta do quartinho fechado. Geraldo sopra o talco que amontoou em mãos para que o odor não se espalhe pela garagem. O celular toca.
Quantas "g"? 5? Está feito. Dentro de sessenta, esquina de Augusta com Paulista. Bom para ti?
Certo, frente à livraria Cultura. Preço igual. Da mesma. Não alterou nada.
Estou nessa. Sem crise! Aquele trampo a gente resolve na boa.
Não esquenta pra não quebrar as ventas.
Geraldo insiste com Amélia numa presença maior da verdinha. Por fim, ela enfia a mão num pacote e pega com o indicador e polegar da destra uma porção da droga e diz:
Hoje vai ter prestação de conta e eu fumei mais do que vendi. Vai sobrar pra mim. Vou ter de dar um jeito de serenar os ânimos com o Cabral. Fica com essa presença. Presente de mamãe Noel. A gente se vê sexta à noite. Axé!
Na Igreja, a mãe de Mara provoca um certo constrangimento nas pessoas próximas. Elas estão surpresas com a visão da mulher que está a levitar a uns trinta centímetros do chão. O roso em êxtase encanta as beatas próximas, como se o fenômeno fosse sinônimo de santidade. Algumas se benzem e querem tocá-la, como se desejando compartilhar do milagre. Alguma bênção poderia vir de um simples toque na mulher com aparência de santidade.
Filipe mantém-se à distância. Está confuso, não sabe o que está a acontecer com a mãe. Tem medo de se aproximar daquela espécie de poder. O desconhecido sempre lhe acovarda. Fazia parte dos povos do medo. Da gente que não usa a razão porque não possui força ou bíceps para manter uma opinião consistente por muito tempo. Amofina-se! Não aceita a luta de gerações, a superação dos paradigmas obsoletos dos pais. É compassivo até demais, em troca de alguma mordomia, vende a alma. Basta alguém lhe fazer um agrado e ele logo começa a abanar o rabo.
O pároco da paróquia é chamado. Alguns seminaristas que participam das festividades do Natal estão amontoados em redor. Os coroinhas, os padrecos e curiosos todos querem tirar do evento inusitado o maior proveito possível. As devotas e também os insones que imitam os sátiros pagãos. Eles estão na Igreja para melhor censurar os costumes cristãos, olhando com lubricidade algumas religiosas novinhas, como se realmente quisessem delas algo mais que vidiá-las.
Nesse lugar de criaturas, grande parte das quais cheias de pusilanimidade, correndo à margem da possibilidade de viver uma experiência individual fora do lugar comum da cultura estabelecida. . . Para elas um acontecimento desses é motivação para questionamentos insólitos. Perplexidade.
Os rostos hesitam em se olhar na cara. Os olhos fixados no acontecimento quase impressionista. Havia certa incidência de luz a emanar da mulher ajoelhada. Dela, não sabiam ao certo, chegava às suas narinas, como uma bênção de Natal, o perfume delicioso de flores silvestres.
Havia certas movimentações interiores, de caráter inconsciente, coletivo, emocional, como se uma mensagem subconsciente estivesse abrindo passagem do íntimo daquelas pessoas em direção à consciência delas, fazendo-as se expor umas às outras, quisessem ou não, tivessem ou não vergonha do que estavam a manifestar. Uma aura de ar frio madrugador invadiu a coletividade que estava a observar aquela mãe ajoelhada. Orando.
Simplesmente não poderiam controlar o impulso que as dominava de dentro para fora, como se suas hipocrisias não pudessem mais ser jogadas para debaixo do tapete das simulações psicológicas de salão, dos gabinetes, das ante-salas burocráticas onde a vida profissional delas proliferava na subserviência, no servilismo e na mediocridade.
As conversas de salão de cabeleireiras não poderiam ser conversadas. Os bate-papos de comadres em visitas de rotina, não faziam o menor sentido. Seus jogos de dissimulação não conseguiam ser jogados. Elas estavam todas se olhando em profundidade sem que seus olhos estivessem voltados umas para as outras.
A compreensão repentina do porquê estavam na Igreja, brotou como uma flor coletiva saída à fórceps do alter ego coletivo. A Igreja explorava os seus medos fazendo-os reverenciar os rituais da tradição. Nenhum deles era fiel ao Templo cristão. Estavam ali para cumprir uma rotina religiosa burocrática. Se fossem realmente cristãos, estariam abrigados nos textos sagrados de suas experiências espirituais.
Estavam na Igreja porquê, desde a primeira identidade que tiveram, a do medo, quando foram expulsos do útero por uma contingência da natureza, mantiveram desde então a fidelidade intestina, orgânica, ao temor de perderem a proteção uterina e entrarem num mundo onde teriam de ter a coragem de criar uma experiência individual fora dos padrões uterinos da família, da escola, do grupo social, da academia, do ambiente profissional.
Aconchegavam-se nessa casa gerida por padres, pela burocracia interesseira da hierarquia da Bolsa de Valores do Vaticano, para melhor poderem, coletivamente, negar os valores ensinados por Cristo. Os valores da interioridade, da busca da experiência individual fora dos padrões da família, da sociedade, das instituições. Estavam na Igreja porque não tinham coragem de fundar sua própria experiência de vida, fora desses padrões.
Ignoravam deliberadamente que a cultura e a civilização haviam chegado a um estágio a partir do qual os colégios religiosos e os leigos eram sinonímias das mesmas determinações antropológicas, culturais, pré-históricas, cromagnon.
Estavam na Missa do Galo para trair a Cristo, não três vezes, semelhante a Pedro, mas três mil, trezentas mil vezes. Não poderiam ensinar, exceto um mínimo, do que fosse realmente pertinente à motivação de vida de seus filhos. Sabem que o mundo muda rápido, e que eles nada aprenderam sobre adaptarem-se a essas mudanças. Não têm a humildade de reconhecerem-se inaptos para aprender e muito menos ensinar os novos paradigmas da cultura globalizada pela ferocidade dos interesses canibais do senhor Mercado. E prendem sua hereditariedade biológica numa gaiola das loucas de uma cultura fragmentada, ornamentada pelos padrões do obsoleto.
Estavam na Igreja porque aconchegados aos cristianismos curriculares, acadêmicos, de corriola, como forma de fugir de um enfrentamento com a verdade elementar de que não tinham mais o que dizer aos descendentes. Tudo que poderiam ensinar a eles era sua maneira obsoleta de vivenciar seu medo original. Não tinham a coragem elementar de reconhecerem que nada tinham a fazer, exceto a simulação de uma "cultura" arrivista, corruptela dos apresentadores xuxalizados dos programas de tv. Financiados e produzidos pela classe social dos burgueses que tudo o que querem das pessoas das novas gerações é que se adaptem ao consumismo degenerado de bugigangas nos Templos do senhor Mercado, nos shopping center dos corações agregados às Sinagogas de Hambúrgueres.
Aquele momento de verdade teve muitas outras conseqüências na vida daquelas pessoas que viam aquela mãe de joelhos implorando um caminho para a educação dos filhos. Um caminho que não existia. Ela não mais poderia ser agente de uma utopia que havia acabado. Não poderia representar ser a genitora de sonhos, do sonho americano, que há muito havia acabado. Do sonho do "tio Sam" que se transformou em morte, em terrorismo de Estado, à semelhança do sonho de dominação globalizada de Hitler.
Aquelas pessoas, que de alguma forma participaram do êxtase daquela mulher que orava de forma veemente frente ao altar de Santa Cecília, não mais seriam as mesmas. Mas nenhuma delas, ao sair da igreja, tinha uma idéia precisa do que poderia fazer com esse conhecimento que havia adquirido, quem sabe por osmose, naquele momento de epifania. Porque, de alguma forma, alguma divindade esteve presente neles. E lhes modificou a percepção que tinham da limitação fenomênica de suas vidas.
Os que tinham filhos se perguntavam de que modo poderiam salvá-los de si mesmos.