Um dia de Sol Poente
O sol já se baixava no horizonte perdido. Com força alaranjada ele roubava a energia da donzela, e ela só fazia contemplar enquanto cosia na varanda de sua residência. Os pensamentos iam perdendo a cor aos poucos... a irmã de repente nem existia... a noiva era a irmã, que sumira no altar ao longe... os vitrais da igreja estavam partidos... os risos eram tristes... a mãe cantava a velhice nua e pálida... Do altar veio nada e, ao invés de fincar quietude, quis o que tinham para dar. Laranja intenso.
A donzela piscou repetidamente buscando compreensão no que a fazia enfiar a agulha no tecido branco. Observou-se por algum instante. Picou o dedo com a agulha e viu uma gota de sangue, a qual, sem pensar duas vezes, levou a boca e sugou. Fora um gesto totalmente aleatório, todavia uma angústia lhe cresceu no peito, devastando a natureza virgem escondida em seu seio. Ela chorou por um instante sem aparentes lágrimas firmes.
Largou o que fazia e os pensamentos desconexos; permitiu-se. As lágrimas finalmente desceram em seu rosto, embora já não lhe significassem nada. Ela nem ao menos buscou enxugá-las, por mais que a incomodassem. Ficou paralisada enquanto os fios em laranja ao seu redor iam diminuindo em quantidade. Seu vestido era bonito e bem costurado por suas delicadas mãos macias, e ela que podia senti-lo belo quando não o costurava, nunca o notou incorporado a sua figura. Esperava que alguém o sentisse antes do sol se pôr, uma verdadeira pessoa de olhos aptos aos desprazeres da costura detalhista. Queria brincar de roda com as meninas mais novas e sujar de cores o vestido, girar e girar, e rir depois.
A donzela era velha e pálida.
O sol ria disso e lhe roubava as esperanças. Como se ela ao menos soubesse que as tinha.
Os últimos três fios de sol que lhe passaram pela vista pareciam zombeteiros. Subitamente, a moça sentiu o sangue pulsar nas veias. Seus braços simplesmente não eram mais adornos das vestes, caídos brancos, imperceptíveis. Precisavam que agarrasse aqueles fios com toda sua força de mulher. Ela o fez num urro de vontade e eles a levaram na contrapartida da dor.
Correu por toda sua vida. Foi sendo puxada e viu sua antiga morada, com sua pintura cor-de-rosa e seus jardins destruídos pelo inverno e pelos bichos-de-terra em carmim. Uma rocha podia lhe trazer tantas palavras... nada mais que um mero objeto gigantesco que habitava a vida em conjunto. Todas as palavras reveladas ali foram culminações de momentos de aflição. Todo o resto era sempre passatempo ou atuação. Custava-lhe admitir que podiam ser apenas hábito ligeiro. Eram todos rosas de papel, voavam com brisas roucas entrando pela janela; angústia de pairar no eterno cotidiano.
Logo a frente estava o bar onde todos, e aqui ela recorda todos por alguns tipos mais marcantes de vizinhos, que se reuniam escondidos para ouvir o rádio e contemplar sua lataria prateada. Pessoas intranqüilas por demais, que discutiam havendo a oportunidade de suplicar coragem íntima. Dona Lia, por exemplo, fazia bolos enquanto mulher em paz com seu propósito. Pedia auxilio dos filhos e, pacientemente tirava as botas do marido com um pedaço gordo de doce na mão. Poucos podiam prever que o que a levava a fazer aquilo, castigava-a consumindo qualquer aparição do seu genuíno ser. Ao fim do dia, Lia perdia o contato com a felicidade imposta e esmagava o resto de bolo com as mãos, cuspindo migalhas banhadas a vodka e ainda, acontecia pouco, a cada dois meses, mas de vez em quando ela quebrava pratos e corria pela sala da casa; evidentemente estando segura do sono pesado dos seus satisfeitos. Ela freqüentava o bar depois dos surtos, sendo a figura da madrugada.
Lá dentro dançavam outros personagens também inexistentes à luz do dia. Apresentavam-se de quando em quando para entornar uma dose de pinga, e ouvir lamentações próprias. Quando não brigavam aos berros com tudo que se movesse na penumbra do alcoolismo, serenavam juntos ao som de uma balada leve. Depois tudo era paixão e haviam traições. Ainda bem que tinham o bar. Num período de negação das virtudes da alta costura, a donzela visitou o local com olhos longes. Aparentemente tudo lhe repugnou vendo pessoas que se mentiam de dia, mas quando retornou a casa o quarto a recebeu em risadas e riu de tudo incessantemente; riu até perceber que ria de si. Então chorou e nunca mais voltou ao bar ou aos risos. Dedicou-se a Deus e a costura.
Em mérito efêmero, existia uma praça bem ao lado do bar. Uma coisa boba toda verde, com flores falsas que cresciam agarradas a uma forma pré-selecionada. Ela mereceu um suspiro da donzela, tão incoerente... Tinha gente ali sempre com pouca idade, sem juízo algum que partilhava de desejos curtos. Uma efusão transbordante. As amigas passavam de braços dados e fingiam ser mais velhas para impressionar os rapazes, que por sua vez tocavam seus violões para os companheiros de estudos e fitavam as moças com olhos esnobes, mas com corações palpitantes. Um teatrinho que mal reivindicava platéia.
Somente num único dia aquela praça pareceu de boa existência. A lembrança da donzela era confusa e só contundente em sonhos, mas ela forçava pra conectar as partes. Havia, no entanto, uma massa predominante que destacava o sentimento da memória e isso bastava em importância. Era certo que ocorrera à noite. Chovia e uma apreensão aterrorizante crescia no peito como um padrão sonoro inconstante que cresce sem se saber sua significação. Ela voltava de um recital de balé em que as irmãs Jane e Lílian destacaram-se como condutoras de jovens aprendizes. Uma bela peça despida de verdade. Aquilo foi o ponto crucial para o início da perturbação angustiante. Sem entender a tal causa de bobagem ilógica, a moça correu dos parentes num borrão de apatia cinzenta. Uma garoa leve abriu o palco. A praça, a luz intensa amarela abraçando os pingos retos, os bancos vazios, molhados – ela se viu em tudo como um guardanapo que se desdobra à mercê de alguém. A praça era a plenitude da beleza vazia em si que se apropria da essência alheia a fim de te acalentar seus despertares.
Finalmente a praça fora percebida. Agora a donzela estava no meio de um grande círculo de vitórias. Sua vista, embaçada com tantas descobertas. Queria entender porque todos os instantes de grande valia em sua vida foram massacrados pela força errante do hábito. Sentia-se como uma freira a contra-gosto. Agora que recuperara seus pedaços espalhados pelos cantos do berço, ela podia deixá-lo. Contudo descobrir o que é partir, de repente, se revelou o motivo para ficar. Partir daquela varanda de tecidos, senão o já tinha concluído; partira logo há muito. Ela não era mais a donzela que se encaixava nos espaços do tempo. Eles começavam a ser para sempre seus.
Por fim, o fio único do sol que restava. Toda a reflexão debatida no reviver do sol queimando chegara ao lúdico. Ali estavam a senhora e a menina. As duas no chão, curvadas e sujas, com os vestidos levantados e as mangas puxadas. Achavam-se inteiramente entregues ao entretenimento e riam a cada jogada errada da outra. Jogavam bolas de gude. Os cabelos, à essa altura, já estavam embaraçados, uns cinzas, outros vistosos. O que importava eram as laranjas que rolavam entre elas. Vinham do pomar no horizonte. Nenhuma das duas as notava, somente a mulher que se pôs ali no meio, com seu vestido claro e sua pele vermelha de sangue pulsante. Não tentou pegar as laranjas, elas passaram direto e refizeram sua memória.
A mulher, então, se entregou a paz do constante poente – o que eu lhe deu forças para fazer o que sua mente gritava: do poente todos os fios – ela os pegou na raiva do erro latejante e caminhou até as duas figuras atrasadas – enforcou-as. Matou na fúria indecente do que se põe. E por fim, tudo que podia ser feito foi feito, atentando ao desrespeito às regras da vitória, a mulher de branco se dirigiu à derrota dos vingadores. Desceu a ladeira em direção ao bar. Entrou e pediu uma dose de conhaque. O líquido desceu quente. Virou-se para o dono do bar e pediu que aumentasse o rádio. Ficou ali, somente ali, ouvindo uma balada honesta até que a noite lhe revelasse o caminho a seguir.