BABYBABÍ

BABYBABÍ

“O Homem vive em múltiplos mundos.

Cada mundo tem uma chave diversa.

O homem não pode passar de um ao

outro sem essa chave. Sem mudar a

intencionalidade e o correspondente modo

de apropriação da realidade.”

(Karel Kosik: Dialética do Concreto)

É função da dialética apontar de onde provêm os fenômenos, como os mesmo se constituem e quais suas interdependências. Na análise da forma de desenvolvimento do material, é necessário garantir a destruição da pseudo concreticidade conclamada com o método dialético-crítico para assim alcançarmos a realidade.

Esta história começa com o garçom que atende o casal até o momento de passar a cobrança da conta para o substituto noturno. Este, altas horas, estranha a demora de Dina e Xan em fazer algum pedido a mais nos comes e bebes. Normal estarem namorando abraçados, romanticamente, às três da manhã. Chove.

— Chato, está passando da hora de sair da jornada de trabalho, comenta o garçom e gerente noturno. Saco, rumina: esses pequenos burgueses filhos da puta, nunca pensam nos outros. Acham que são os donos do mundo.

Chega até a mesa com a bandeja na mão, depositando-a frente ao casal, sugere: "senhor, a conta, estamos fechando o restaurante”.

Depois de observar a face do rapaz, baixa as pupilas ao olhar a moça pelo lado direito do rosto de Dina. Com seus botões, rumina subjetivamente o refrão da canção: “alguma coisa está fora da ordem. Fora da nova ordem mundial”.

Os olhos demasiados abertos, esbugalhados, parecem fixar uma esperança inútil, uma longínqua realidade. Uma possibilidade que, existindo, em nada vai mudar a lucidez dessa opção extrema. Opção por uma possível, talvez inexistente, outra dimensão.

Excitados pelo "bright", teimam em permanecer adolescentes. A idade de ambos soma sessenta e nove primaveras. A atitude lembra a impulsiva libertinagem coletiva dos anos setenta. Após cinco anos de convivência, Dina e Xan comemoravam, a poucos momentos, a insustentável leveza do ser. A anfetamina fornece uma falsa sensação de excitação e bem-estar durante um período de 6 a 12 horas. O “brite” é um rebite que substitui a cocaína, altera as atitudes, mantem os neurotransmissores em estado de alerta.

As condições econômicas favoráveis ao casal garantem a rotina de mera dissipação. O delírio motivava a vivência da utopia, neles, mais forte que a realidade.

O gerente não consegue esconder a perplexidade. Tenta compreender por que um casal jovem, sarado, com tudo em cima, os caminhos abertos pela evidente condição social, apronta uma atitude radical dessa. Alguma coisa mudou, não apenas na rotina da casa, dentro dele mesmo, após o impacto interior causado pelas fotografias.

Uma tragédia ao modo de Peri e Ceci, Bentinho e Capitu, Tristão e Isolda??? À Marília de Dirceu, Romeu e Julieta??? A novela da vida quando presenciada é mais impactante do que as ficções amorosas do horário nobre.

O garçom que anteriormente os atendera presenciara Dina a levantar a voz, meio excesso etílico, excitada. O travo da cocaína nas mucosas, depois de um breve chupão de língua, entre os dois, o diálogo:

— Cara, divertido segurar essa onda... Provoca-se Dina, encarando Xan. — Sair fora das regras da gramática normativa, da vida na pauliceia desvairada. A vida nessa cidade de sombras sonâmbulas, a caminhar pelas ruas, em busca de um metrô, de um conflito, de se deparar com algum horror. Cada pessoa com quem se cruza mais parece um produto enlatado por um programa de TV visível nos horários nobres de uma novela criada no não tão longínquo Afeganistão.

— Para com essa bandeira de usar frases de efeito como se estivesse numa sala da Oficina da Palavra.

— Sem essa, pixação. Não corta o barato, sente a poesia deste momento de adeus.

— Sem autopiedade, tá valendo??? A vantagem da gente é poder contar com esse clima emocional energizado. — Ter a manha de sair fora dessa bolha. Numa boa. Embarcando na curiosidade de saber o que há pra lá, depois desse pesadelo.

Dina afeta a dicção, enrolando a língua após aspirar a branquinha a partir da ponta da unha grande do dedo mindinho.

— M a n e i r a m e n t e, tá sabendo??? Sem culpas, sem rusgas, sem pulgas no colchão.

— Quem vai gostar são teus irmãos, cara, o bolo da herança vai ficar maior, provoca ela. Xan sente um frêmito friozinho de gozo, calor de desejo, percorre a espinha, subindo, degrau por degrau, nas saliências discoides da coluna vertebral. A sensação ascendente chega ao nicho mais propício da alma do mundo em Xan. Ele repete baixinho:

“Nos confins inconscientes da mente

uiva o lobo, rapina a presa.

Do focinho cai a baba

Feroz. Inveja do fremir das asas

do Anjo da madrugada”.

Dina, displicente, imita o movimento sonoro da voz em câmera lenta do companheiro. Ela replica, fazendo uma careta, no ritmo de uma sonoridade à bossa nova:

— Chega de pastagem, a realidade é que sem delírio não pode ser...

Ele olha para a namorada, ciente do ritual, deposita a cápsula dentro da taça de vinho, enquanto afirma:

— Quer vir comigo vem sem crise. Limpa, cabeça feita por você mesma. Vem sem culpa, não força à vontade. É querer, ou não, conhecer, “in loco”, a fonte donde jorram todas as onomatopeias, tá sabendo???

— Bisbilha fonte chuáchuá

Os casais no verão se abraçam

Beijanjão-se. Nos dedos dédalos

100 unhas arranham-se nhéconhéco

Murmúrios e açoites se tocam:

Pling-plique-plong-plique. Silêncio

Uiva o vento insone desejo

A fria gota de chuva

Emplaca na ampulheta

A Quarta Dimensão sextavada

Dos que amam viajar no Tempo

Ping-Plique-tum-tu-tum-tu-tum...

Sabei que ela é cuincava no palco

Côncava e convexa: inexistia.

A poesia tinha escrito juntos há algum tempo, e decoraram os versos. Faziam parte do emocional de um certo momento especial de fruição, de descoberta entre eles de uma ponte, uma referência mental comum, só dele e dela: Xan continua:

— Sol a sol

Soluça só o diafragma

Sem arrimo, laço, lar

100 abrigos depois

Os corações contagiosos

Das Vênus Calipígias

Diziam “não se avexa

Pelo amor de Deus”

Ferem e vagam vagos

Cavalgam Eros

Os espíritos danosos

Contagiosos. No Porto Calvo

Das anorexias brotam

Flores do mal.

Xan sente a temperatura ambiente esfriar, a pressão arterial baixar rápido. Reage à inversão térmica do corpo, tentando persuadir Dina a ignorar a cápsula por sobre o guardanapo de papel, ao lado do prato vazio:

Não venha, Di, se não quiser. Ele volta a se sentir melhor. Já agora eufórico outra vez, energiza-se com outra carreirinha. A pressão acima do normal. Esquisito esse efeito da droga. A mesa em destaque lhes concede privacidade.

Dina sabe que é impossível estar com Xan e não se influenciar com sua visão da alma do mundo. A mimese agora mais forte. Ambos criam e recriam os pensamentos. Deles fluem fluidos da imaginação, dos gestos eróticos. Comunicam-se sem sons. Nela flui a dúvida: Ingeriu ou não a cápsula??? Tanto faz. O algoz pode esperar, enquanto a alma exulta.

Dina, calcanhar esquerdo sobre o assento, puxa e repuxa alguns pelos da xota, após despida a calcinha, enquanto interroga Xan com o olhar:

— Tô toda torta de querência, diz ela dengosa. Chega mais, chega mais, vem rosetar no banheiro, vem... Nessa hora não vai ter ninguém. Xan responde:

Você, manhã do todo meu...Você, que cedo entardeceu...Você, de quem a vida eu sou...Eu sei, mas eu serei Quem??? Dina, em contraponto:

— Foder, minha calcinha azul...

Foder...o seu cuzinho blue...

Foder...com essa vida eu vou...

Eu sei, mais foderei...

Xan muda, de repente, a direção das notas musicais:

— “Ideologia... — Dina, à Cazuza, canta:

Eu quero uma pra foder...

Ideologia...Eu quero uma pra foder...”.

No banheiro, sentada sobre o sanitário, rola um fuque-fuque à capitalismo selvagem:

Fode, amor, sem medo de ser feliz. Esse mercado de xotas, essa ideologia de meretriz... Assim amor, isso mesmo, sem medo de ser feliz. Sim, sou aquela balzaquiana com voz de Barbie, cara de bonequinha e cabeça de bundinha. Aquela balzaquiana com pinta na testa, que só vive rindo, como se estivesse nas motos de “Sem Destino”.

“Fode pra valer, com essa realidade de TV. Fode toda essa geração xuxada, desencana de vez. Fode essa bunda fofa, essa garota angelical. Dana-me como se fosse eu cada uma dessas atrizes desses conglomerados da telinha, que divulgam as políticas das máfias, que globalizam a baixaria animada das notícias... Que fodem as cabeças das crianças, e jogam a juventude no caldeirão fervente do delírio, das drogas, da pornografia, da ultraviolência”.

Xan enverniza no tom agreste da namorada:

— Consumo e vaidade. Você é aquela lourinha vagabunda, toda charminho e consumismo. A voz infantilizada, a cabeça globalizada. Ensinando toda uma geração de xuxetes a se preparar para o futuro das vovozinhas.

— Xuxa, me xuxa filho da puta. Assssiisisisimmsis. Fode essa vaidade de fancaria. Essa prepotência que se quer passar por infantil. Radicalmente brega. Essa indecência dos auditórios do tio Faustão, do tio Sílvio, da tia Ana Brega, do tio Huck. Sou uma dessas lourinhas vagabas da banheira do finado “Gugu do tio Silvio”, globalizando a libido anal, via cuzinho pela TV do filho do general.

O casal, de volta à mesa. Nem sabe porque ainda não desfaleceu. Di faz o jogo sadomasô e pergunta:

— Fodeu a fresta obscena da realidade??? Gozou na perereca vadia de tua galeguinha (imitando conhecida voz infantilizada): “isso mesmo, valeu meu baixinho’. Encostando com ternura a cabeça no ombro de Xan, ela finalmente desfalece. Ele já havia desfalecido.

O gerente do restaurante abriu caminho para que os policiais da investigação passassem.

O dono do restaurante, antes do fotógrafo policial, havia fotografado o casal. Nunca vira tal ternura em nenhum lugar. Não haveria de vê-la, acredita, em nenhum outro ambiente. Olha outra vez, com ares de estranhamento, os corpos inertes. Quem sabe poderia vender umas cópias, oferecer de brinde aos fregueses no próximo aniversário do restaurante.

Ao observar a imagem do casal, nas fotos da câmera, certa sensação inusitada, transcendente, de paixão. Uma oferta essencial, que não está nos anúncios, nem se compra nas butiques dos shopping-center dos corações solitários. Não adianta negar, a coisa, o sentimento está lá, nas imagens filmadas. Não sabe explicar. Como a máquina captou essa emoção??? Ele, um cara tão vivido, tão carente dela... Dessa densa emoção... Não sabe, mas aí está. Estranho como uma rosa azul a brotar no asfalto da Avenida Paulista.

Permite-se embalar pela suavidade de cada segundo, como se só agora houvesse despertado para a bela e admirável intensidade quântica do pendular tique-taque dos milhões de relógios nos pulsos dos habitantes da Pauliceia Desvairada.

Nas noites seguintes surpreendendo-se a bisbilhotar a onomatopeia cadenciada, a orbital balança do tempo, a tremular na frequência cardíaca do marcapasso: Tum-tu-tum-tu-tum-tum-tutum-tu-tique-taque-tique-tique-taque-tique-taque-tum-tu...Sente-se muito distante da possibilidade de imaginar como aconteceu. Por quê? Conseguiu fotografar, filmar, aquela essência infotografável. A coisa mais importante que poderia fazer na vida dele. Um acaso fortuito.

Pinta um branco na cabeça só em pensar no que poderia ter passado nas ideias do jovem casal. Um certo compasso. Repete sons impronunciáveis com o estalar dos lábios na boca seca na aura matinal que chuvisca pingos de chuva sobre a cidade. A garoa soa sons inusitados. Ele repete de si para consigo:

“Aquele carinho, aquela ternura, aquele olhar. Conclui ser, para ele, impossível viabilizar a empatia, aquela imagem do casal, dentro de si mesmo. Simplesmente inexplicável.

Por outro lado, sente-se privilegiado por ter capitalizado essa essência incapitalizável. Vai sim, distribuir cópias da foto, como se fosse um Papai-Noel a presentear conhecidos, vizinhos e clientes com algo simplesmente transcendental. Essa emoção incomunicável.

DECIO GOODNEWS
Enviado por DECIO GOODNEWS em 04/04/2010
Reeditado em 29/11/2023
Código do texto: T2176151
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