O Pequeno Príncipe
Incrível, linda, firmamento de surpresas. As outras à distâncias astronômicas, ela, aqui, dele. Vê-la, tê-la a poucos metros do olhar, delícia. A coisa mais certa de todas as coisas não vale o caminho até esta estrela. Demais. Sente-se dono da cocada preta, nesse momento memorial. Do terraço vidia a neta, quase adolescente, no pátio. O neto brinca, aos berros, no andar térreo. Acha normal a solidão, não se sente rejeitado. Nem pedófilo. A vida do idoso, isso mesmo. Fiador de imperfeições.
Resta-lhe o privilégio dessas coxas magras. Magras não, perfeitas. Síntese de todas as belezas dos membros das mulheres que existiram, das que existirão. Ouve os sussurros da voz das águas correntes no “subway” memorial. A parte do rio da vida subterrânea que lhe pertence. Refugia-se na terceira margem. Uma coisa tão fundamental, essa garota, a vontade espontânea sugerida pelo desejo. Pela primeira vez, em tanto tempo, não está sozinho.
A presença da companheira chama a chama da juventude. Afasta-se de toda mundividência anterior. Como pode ela estar presente aqui, como se fosse uma representação dos movimentos da neta? Delira? Estará intoxicado? Alguma droga consumida no almoço? A salada mal lavada, sem tempero? Sabe, que futuro poderia estar à espera? Vê, como se pela primeira vez, o sol poente tão diverso do sol madrugador.
Aquecem-no desse calor essencial de estar contigo. Os passos repetem-te, como no poema de Pasternak, ama as pessoas que passam, por que em cada uma delas há algo de ti. O coração pulsa como uma jangada sobre as ondas quentes da brisa matinal. Afaga a superfície do mar nos sonhos. Mergulha na enseada de suas glândulas mamárias, porto sedutor da novilúnia linguagem da língua. Os lábios roçam beiços, labirintos quentes, volúpias do vermelho carnudo da fenda bucal.
O barco da mocidade aporta na praia de teu ventre, penetra a intimidade do corpo pelo colo, os pentelhos nascentes, lenhas para estas chamas. Então é possível a vida voltar. A inesquecível descoberta da sexualidade. Gostar é isso. Não a obrigatoriedade para com as pessoas do lar. Amar, agora, é amar a ação desse fluxo, do paradoxo desse rio pelo qual navega, como se contra a correnteza, alhures. Esse momento vital.
O adolescente, simultaneamente mixando tempos tão diversos, que se fazem versos, que não foram em vão. Presente, essa realidade ilusória, como se fosse mito, semideus, herói da cosmogonia grego-romana. Ninguém nunca poderia observar esse personagem na intimidade dessa terceira margem, tão só dele. Esse acontecimento distante, realizando-se magicamente, outra vez, pela primeira vez, agora. As portas dessa fêmea acolhendo-o, a permitirem distanciar-se do esquife larbirinto.
Uma proeza essa, as idades interagindo-se através das reminiscências. Elas refulgem dos dedos, das unhas, do olhar adolescente, da pele, dos sons da paisagem. A suavidade dos odores juvenis da musa silvestre, somando-se à passionalidade do idoso. Da alma renovada, fluem odores de primavera nesse entardecer outonal. Matéria atrai matéria na razão direta das massas, na desrazão inversa do quadrado da distância.
Quantas décadas presentes agora. Olhar embassado contempla as crianças: sorrisos, gritos, chingamentos, folguedos. Nada se perde tudo se transforma. É verdade. Inútil querer explicar a vida que torna àquela estrela longilínea, remota, futura. Essas sensações, uma bendita graça da longevidade. A paixão move-se nele, bênção desse amor que engana a alma, chegando-se, benvinda, inesperada. Imprevisível, como certos lances intimistas das histórias de D. H. Lawrence, nas quais a sexualidade motiva o crescimento espiritual.
O casal antigo aqui, repete-se. Dissimula-se ela na idade da neta. Antanha Eva a trazer travez, os mistérios lunares das ninfas, náiades, dríades. Sente-se heleno sátiro. Doce monotonia preenche esse vazio que se amplia. Balbucia versos, talvez Woodswort:
“Ver o mundo num grão de areia
e o céu numa flor selvagem.”
— Vovô — repete a neta, a correr em sua direção. Na mão trêmula imobiliza-se a bengala. O pentelho do neto joga-lhe a bola na cara. Estranha que desta vez não a tenha pego, jogado de volta. O homem de pelos brancos ouve longe, outra vez, remotamente, a vozinha da neta: “Vovô, vovô”, insiste ela. Ele está vendo a neta, o netinho, a sala, as luzes, os movimentos, mas não participa deles. Então é isso, está a seguir rumo a terra de Rosebud.