Grande Prato
A ideia veio de Grande: construir a máquina e fazê-la funcionar. Como eu disse, a ideia veio de Grande, mas a realização, não. Grande era o cara das ideias e para nós era suficiente que ele continuasse assim. Prato era o cara do fazer. Grande Prato: dupla dinâmica.
Eu não faço parte dessa história como atuante. Observei tudo e anotei alguns acontecimentos. Minha memória está velha. Tenho 40 anos. Não digo que a minha memória está velha por não conseguir mais lembrar as coisas, mas que ela está velha porque essa memória, a da construção da máquina, não me acompanha mais.
O mais engraçado é que todos me procuram para saber se a máquina foi construída ou não. Eu sempre digo: não lembro. Os mais jovens, que só ouviram a história pelos feitos que foram realizados para a construção da máquina, são os que mais se decepcionam quando ouvem a minha negativa. Não posso culpá-los. A própria escola não consegue esquecer o fato. A cidade não consegue esquecer. O mundo não consegue esquecer. Para eles sou uma aberração.
Todos que me ouvem argumentam: mas são apenas vinte anos... Vinte anos é muito tempo quando se viveu algo. Cada dia se acumula de tantos detalhes costurados que quando se pára pra pensar não se consegue mais perceber qual o desenho do bordado. Minha mulher é que faz umas coisas meio assim. Faz, faz, faz e quando vê, não tem mais o que olhar. Melhor se afastar e ver de longe. Tudo fica lindo. Ela vende e faz sucesso.
Sobre a máquina... Era o que de melhor uma mente pode pensar. Engraçado dizer isso de algo que não se sabia para que servia. Aliás, os dois sabiam: Grande Prato. No caderninho que eu tinha, anotava algo do que eles diziam. Hoje soa quase que como uma fala sagrada: fazer o molde do pedaço do espírito que o universo deixou aqui; uma as partes que as vontades nos deram, mas uma do lado de baixo, vontade do lado de cima é algo que não serve.
Vez por outra, minha memória de tanto ser espremida dá alguns pedaços de história. Nesse momentos, eu anoto no mesmo caderninho. Mas, ele não serve de verdade. No caderninho só tem o que eu sei, o que eu senti. Se isso servisse para os outros, já tinha dado ele para o primeiro que me perguntou.
Lembro que eu vi a ideia da máquina aparecer. Grande estava sentado e olhava uma placa branca. Era dolorido ver a brancura da placa. Estávamos debaixo de sol. De longe, a placa parecia de outro mundo. Ele foi até ela. Era horrível de se ver, aquele homem, grande, corpulento, movimentando os braços e ferindo a claridade. Com uma pedra vermelha, ele riscava e aos poucos foi fazendo a brancura ganhar veias.
Ele começou pelo alto Desceu ate o meio, segurando a pedra com as duas mãos. Parecia fazer um sacrifício. Parecia estar imolando a placa a algum deus de dentro dele. Com as duas mãos moveu a pedra para a esquerda. Tal um pai nosso, levou a pedra para a direita e ali descansou. Um círculo bem ao centro. Na direita ao alto recomeçou a descer. Parecia se movimentar em busca de nada.
Eu, que estava apenas alguns metros de distância, me senti atraído por aquilo. O que aquele homem fazia com as mãos era um ritual. E naquele momento, era permitido a mim ver a cara de um deus. Ou, pelo menos, a manifestação desse deus.
Riscos e riscos e riscos e riscos... E todo aquele movimento ia de uma lado a outro sem unidade aparente. Era-me permitido perceber que a ordem não era a que este mundo queria, mas a ordem que em Grande conseguia se manifestar.
Pássaro, macaco, onça, uma mistura de todas essas coisas? Isso quem viu não conseguia definir. O desenho era algo que estava além e assim continuou. Não houve por parte de Grande a vontade de guardar aquilo. Ficava exposto no mesmo local onde havia sido concebido.
Prato viu o desenho. À essa época, Grande e Prato não se conheciam. Falei que eles eram uma dupla dinâmica. Quero dizer que se tornaram, ou na verdade, eu me confundi. Parece que eles nunca se conheceram. Essa mania de lembrar dos dois juntos e de chamar o tempo inteiro de Grande Prato é que me confunde. Bem, eles... Eles... Eles fizeram aquilo. Fizeram a máquina. Isso é o que importa.
Prato construiu e isso, eu vi. Esse homem viu o desenho lá, na placa, ainda debaixo do sol. Eu estava sentado no mesmo lugar. E da mesma forma que alguma coisa me atraiu para ver Grande desenhando, alguma coisa me atraiu para ver Prato construindo. Não teve palavra. Não teve pergunta sobre o que era aquele desenho. Não houve pergunta por quem desenhara.
Prato viu. Pegou a primeira rama de capim seco que tinha a frente e começou a montagem. Parou quando o mato seco acabou. Mas, não parou definitivamente, ainda levaria muitos dias para construir aquilo.
Ferro, bambu, cimento, tecido, plástico. A cada dia a máquina recebia um material diferente. E ao olhar aquilo tomando forma, não parecia ser de outra forma que a máquina deveria ser construída. Em Prato, com o passar do tempo, eu vi outro deus se manifestando. Não era algo para se perceber, como em Grande. Era algo que se sentia aos poucos. No ato do entrançar, no martelar, no soldar, no amarrar.
Aquele homem, construía com calma, com vagar. Era algo secreto. Algo que uma coisa que tava dentro de um e de outro tinha necessidade de fazer aparecer.
A construção parecia um balé. Prato caminhava com passos curtos para a parte superior e descia, como que vendo na placa uma planta baixa. Talvez, sentindo a força dos movimentos de Grande, caminhava para a esquerda e depois para a direita refazendo o sinal da cruz. Ele subiu e realizou o círculo ao centro. Parecia seguir as pegadas do outro, mesmo sem a sua participação.
Grande viu Prato construindo. Assistiu, também, como eu a materialização do algo que estava fincado na placa. Interessante perceber que eles não se falavam. Não havia interesse nenhum em conversar. Não se olhavam. Não havia o porquê, eu entendi depois. Eles se entregaram aquilo como algo que fosse superior. Falei que Grande realizava um ritual. Prato realizava outro. O primeiro era como uma missa. O outro era como a vida.
Não lembro. Simplesmente, não lembro mais. Falei tudo isso, mas sempre aparado no meu caderninho. Pro outros, isso parece uma coisa que não se pode esquecer. Eles não se deixam esquecer. E eu, pareço fazer questão de esquecer. Na verdade, não faço questão de lembrar.
Ficou pronto. A máquina ficou pronta. Era algo de uma beleza que paralisava. Lembro que a cidade, que foi tomada pela curiosidade, estava lá quando a máquina ficou pronta. Desse dia, lembro disso: ficamos parados por várias horas esperando que a máquina começasse a fazer alguma coisa. Olhando de hoje, parecíamos um bando de ridículos. O que esperávamos?
Aos poucos fomos indo embora. Cada um, decepcionado ao seu modo, foi deixando para trás aquilo. Eu fiquei por último. Ouvia cada um dos comentários: Grande Prato sem utilidade, Grande Prato vazio, Grande Prato emborcado. E eu ria. Grande Prato. Eu rio muito hoje quando penso que eu me alimentei naquele Grande Prato. Eu senti os gostos que ele proporcionou.
A máquina foi abandonada. Foi-se desfazendo e seguindo seu próprio rumo. Há alguns anos, o local sofreu um incêndio e o que ainda sobrava da máquina era cinza, metal retorcido e mais nada. É um local por onde se passa e não se consegue mais imaginar qualquer coisa outra no lugar. Nem eu, nem quem tem algum apreço a história – diga-se de passagem que a cidade tem isso como uma grande brincadeira – consegue pensar o lugar de outro jeito.
Meu Deus. Eu lembro disso. Eu lembro isso. Não faço questão de lembrar mais do que isso. Isso basta. Meu caderninho está cheio dessas impressões. Apenas impressões, pois não lembro. Desculpem tantos não lembro, mas não há outra coisa que eu possa dizer. Como eu disse, minha memória é velha. São tantas coisas costuradas que só olhando de longe é que o bordado é bonito.