A Menina da Carta

"Nobody knows it but you've got a secret smile

And you use it only for me...

...When you are flying around and around the world

And I'm lying alonely

I know there's something sacred and free reserved

And received by me only" (Secret Smile - Semisonic)

("Ninguém sabe disso, mas você tem um 'sorriso secreto'

E você o usa apenas pra mim...

...Quando você está voando ao redor e ao redor do mundo

E eu estou sozinho

Eu sei que há algo sagrado e livremente reservado

E recebido apenas por mim")

Era uma fria manhã de inverno, me espremi em meu casaco acizentado, toda encolhida e tremida. Meu bafo quente e de menta esvaía-se em uma fumacinha. E lá estava novamente... O demônio dos olhos verdes, cobertos por lentes divergentes. As sardas salpicavam-se em sua face como "micro-flocos de açúcar queimado"... Hmmmmmmmmm...

Vi um envelope amassado, quase "lixo" sobre o livro da invasora. Era quase como um pedido desesperado pela minha curiosidade de gato. Esperei dobrar a esquina dos volumes encadernados e me descobri pegando o conteúdo e o devorando inteiro. Além de poesias aleatórias (e maravilhosamente perfeitas), eu pude ver também cartas para um alguém. São as chamadas "cartas nunca-lidas e nunca-enviadas". Trechos desconexos de frases e dramas e sonhos e culpas e uma solidão quase selvagem que lhe afagava a massa cinzenta. E a minha também, e por culpa dela.

Seus olhos encararam os meus, também verdes, porém não contendo o mesmo brilho revelador. E eu me enrubesci. Era minha hora de admitir que eu estava me entregando... Mas ela já sabia. Todos já sabiam. Não era um segredo para ninguém, nem para nós mesmas, mas nós o criávamos. Criávamos o segredo das privações e proteções. Não tínhamos e tínhamos juízo perfeito ao mesmo tempo. Era completamente compreensível...

E eu escrevia coisas simples como que ia tocar em sua pele macia, que ia afagar seus lábios tão suculentos, vermelhos e vivos; que ia fazer todo o tipo de loucura obsessiva, mais do que já estava fazendo, o que era uma mentira... E tudo não passava de argumento falacioso. E nossos dias se preenchiam por aquelas frases como se a carta nunca chegasse ao remetente, porque ela nunca chegava. O cachorro a dilascerava com seus dentes e seu envelope, que possuía um conteúdo vivo e pulsante, simplesmente transformava-se em uma poça de sangue. A poça manchava o chão em que as pessoas caminhavam por cima... Sobre... E pisavam, marcando pegadas de seres que não tinham cérebro, mas fingiam ter.

E eu escrevia que continuaria a escrever pra todo sempre. E essa era nossa verdade. Eu podia beijar a boca daquele homem todos os dias. Eu podia dormir com ele numa cama grande e redonda. E era geralmente como as coisas terminavam... Onde começava a realidade e terminava a fantasia. A minha fuga do meu próprio escapismo. Onde eu estava com a cabeça!? Onde estavam meus pés!?

Cheirei a folha macia e branca, rabiscada. Cheirei mil vezes antes de contrair uma alergia à papéis empoeirados guardados. Queria envelhecer assim, ficar como aquele papel, cheia de doçuras e completamente amassada e amarelada. Eu era um desgaste, e ela era o meu. Às vezes, prendia seus cabelos num curto-coque cor-de-chamas e me sorria um sorriso tão sedutor quanto impossível. Eu via seus dentes em meus sonhos mais lindos. Eles refletiam minha própria felicidade.

Éramos reflexo de nossos erros bobos, de nossos medos, de nosso pecado... De nosso doce escondido e proibido.

FIM

AArK Kuga
Enviado por AArK Kuga em 14/03/2010
Código do texto: T2138629
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