A RABADA DA “ESPERANÇA”

Ernani Maller

Faltavam quinze dias para o fim de nossas férias, naquele ano de 1978, quando um amigo chamado Brás, nos convidou para passarmos uns dias em uma fazenda no município de Vassouras, estado do Rio de janeiro. Segundo o meu amigo a fazenda era uma maravilha e o fazendeiro, que era um parente afastado de sua família, tinha várias filhas, sobrinhas e muitas outras garotas bonitas freqüentavam a fazenda, o que tornava o convite muito tentador, certamente seriam dias muito divertidos. Iriam conosco ainda Gilmar, Jorge, e Cláudio, todos éramos estudantes do segundo grau, exceto Cláudio que cursava o quinto período de veterinária.

Gilmar que era muito debochado, tinha o domínio da técnica da flatulência, que ele conseguia provocar apertando do a barriga com as duas mãos, esse expediente geralmente era usado para envergonhar moças antipáticas que passavam sem dar atenção pra nossa turma, de vez em quando dava confusão com pai mais alterado, mas nada que uma boa corrida e alguns dias desaparecidos não resolvesse.

Jorge desenvolveu um sistema muito interessante, esticava a pele externa do penes com os polegares e os indicadores, formando uma bolha de urina na ponta do penes, conseguindo assim urinar com uma incrível pressão, atingindo comprovadamente mais de quinze metros de distância, essa técnica inusitada do Jorge teve papel preponderante certa noite em que voltávamos de ônibus de uma festa junina, éramos seis garotos com idades entre onze e quatorze anos e um outro grupo mais numeroso e de garotos maiores que nós, começou a nos provocar e a nos intimidar, era visível nossa desvantagem. Mas ao desembarcarmos do ônibus eles tiveram uma grande surpresa, ao colocarem os rostos através das janelas para nos xingar, Jorge saca do penes e urina na cara de pelo menos cinco dos mais exaltados do grupo, urinando por mais de uma vez na cara de cada um deles, que custaram a dar conta do que estava acontecendo, era mijo em alta pressão, saímos todos correndo, gritando, rindo e comemorando aquela inesperada vitória, e por muitos anos de nossa adolescência relembrávamos com muitas risadas esse fato.

Cláudio, o estudante de veterinária, teve um passado de envolvimento com drogas, que o levou aos roubos. Cláudio passou a cometer pequenos furtos em residências para sustentar o vício, roubava roupas, relógios, aparelhos de som e outras coisas de pequeno valor. Só que Cláudio tinha uma marca, sempre que realizava um furto defecava em cima do sofá ou da mesa da sala, certa feita, depois de separar o produto do roubo e defecar no sofá, resolveu tomar um pouco de whisky, se animou tomou mais uma dose, outra e mais outra, até que se embriagou e acabou pegando no sono. Foi encontrado pelo caseiro no dia seguinte, dormindo sobre o tapete da sala, este o amarrou e chamou a polícia, denunciado pelas próprias fezes, teve que responder por várias dezenas de assaltos, hoje, porém, está regenerado.

Brás, era muito um rapaz bonito, muito extrovertido e de muitas amizades, sempre tinha um programa em mente. E por sua alegria e simpatia era constantemente convidado pra as melhores festas, mas se por ventura não fosse convidado também não se fazia de rogado, possuidor de um grande poder de convencimento sempre conhecia o amigo, do amigo, do amigo do dono da festa o que sempre lhe garantia bom trânsito em todas as esferas sócias.

Era também muito distraído; certa vez chegou no Club de Regatas Flamengo, no Rio de Janeiro, vestido de Pierot, passou pala portaria sem maiores problemas, pois pensaram se tratar de um contratado para animar a festa de aniversário que se realizava aquela noite nas dependências clube. Entrou na festa, porem ninguém entendeu o por que da presença daquele Pierot. Até que Brás percebendo que estava na festa errada, foi se informar na secretaria, e soube que a festa à fantasia seria na semana seguinte.

Em outra ocasião foi convidado para ser padrinho em um casamento, que se realizaria em uma igreja próxima à sua casa. Quando ia saindo sua mãe pediu que levasse até o incinerador do prédio uma sacola de papel, dessas de supermercado, contendo algum lixo, pois havia restos de peixe e ela não queria que ficasse dentro de casa, distraído Brás passou pelo incinerador, se dirigiu à igreja, encontrou a madrinha que entraria com ele já à porta, esta estranhou a sacola na mão do Brás, mas pensando ser um presente para os noivos não fez nenhum comentário a respeito. Entraram solenemente sobre o tapete vermelho, ao som de Jesus a Alegria dos Homens, só depois de a cerimônia já iniciada, que alertado pelo mal cheiro de peixe, Brás percebeu que estava no altar da igreja com a bolsa de lixo na mão.

A viagem de ônibus até a cidade de Vassouras embora desconfortável, já que alguns de nos tivemos que viajar em pé, transcorreu sem maiores detalhes dignos de relato. Depois de chegarmos ao centro de Vassouras um táxi nos conduziu até a fazenda, não sem antes alguma barganha de preço, e um grande esforço para convencer o motorista a levar cinco passageiros e mais a bagagem, já que o trajeto era relativamente longo e a estrada muito ruim.

Chegamos à fazenda já no fim do dia, a porteira estava meio caída, amarrada com corda; o mato cobria boa parte da estrada, o que dava um aspecto de que há muito tempo não passavam carros por ali, entramos e vimos que a fazenda estava completamente abandonada, Brás gritou pelo caseiro, que felizmente apareceu logo, era um senhor de cor preta e cabelos brancos e que nos olhava muito desconfiado. Brás teve muita dificuldade de explicar quem era e mais dificuldade ainda para convence-lo a nos deixar ficar na casa, já que o patrão, que não lê pagava os salários, nem outras despesas da fazenda há um ano e meio, não havia lhe comunicado a chegada de visitas nem dado ordem para que alguém se hospedasse ali.

Brás olhou intrigado para a sede da fazenda e disse:

_ É espantoso como essa fazenda se deteriorou tão rápido.

Por fim o caseiro foi convencido, nos instalamos de melhor forma possível, comemos biscoito e tomamos refrigerantes que tínhamos nas mochilas e fomos dormir, pensando nas garotas que esperávamos encontrar ali.

No dia seguinte acordamos tarde e desorientados, não sabíamos o que fazer, Brás se desculpava o tempo todo, o clima era de indecisão total, uns queriam voltar e outros até em solidariedade ao Brás, procuravam ver um lado positivo na coisa, poderíamos ficar um ou dois dias para espairecer um pouco. Havia até um lago na fazenda, quem sabe talvez tivesse peixe? foi então que eu que eu sugeri: _Vamos passear pela fazenda. E assim fomos, foi durante o passeio que Jorge perguntou:

_O que, que nos vamos comer? Já que o café da manhã havia sido apenas alguns biscoitos, sobra do dia anterior, ninguém respondeu à indagação até que apareceu uma vaca, e Gilmar olhando a coitada sugeriu:

_ Vamos fazer um churrasco. Brás questionou:

_ Mas quem vai matar a vaca?

_ O Cláudio que é veterinário, mata. Falou Jorge.

_ Eu não mato coisa nenhuma, eu estou estudando pra ser veterinário e não açougueiro e além do mais isso pode dar até cadeia, o dono da fazenda pode mandar prender a gente, e o que vamos fazer com o que sobrar, ossos, couro tripas e tudo mais?

Mas uma vez Brás interviu:

_ Posso dar uma idéia? Vamos fazer uma rabada, eu pego uma faca lá na casa e o Cláudio corta o rabo da vaca.

_ Eu não corto rabo nenhum, como é que eu vou cortar o rabo da vaca sem anestesia? E além do mas eu gosto muito dos animais e jamais faria uma coisa desta. Protestou Cláudio

_ Bem, eu vou buscar a faca. Falou Brás. Depois a gente vê quem corta.

Uma corda também foi providenciada, os pés e o focinho da vaca foram amarados, o focinho para que ela não fizesse muito barulho, Gilmar, talvez movido pela fome, depois de amolar bem uma faca se encarregou da amputação, que apenas Jorge teve coragem de presenciar.

Eu e Brás não conseguimos comer da rabada e era evidente o constrangimento geral, Cláudio, o estudante de veterinária, para surpresa de todos foi o que mais comeu, com o argumento de que a dor do bicho tinha que valer a pena.

No dia seguinte fomos ver a vaca, a encontramos caída, com muito esforço conseguiu se levantar e novamente ela caiu. Cláudio concluiu:

_ Ela perdeu o equilíbrio e quando tenta espantar as moscas com o rabo que pensa ainda ter, ela cai.

Voltamos pra a casa da fazenda para não ver mais a agonia do animal.

De vez em quando Brás olhava intrigado para a sede da fazenda e dizia:

_ É espantoso como essa fazenda se deteriorou tão rápido.

Anos depois ficaríamos sabendo que o seu espanto se justificava, é que Brás nos levou para a cidade errada, a fazenda dos seus parentes, ficava na verdade na cidade de Valença e não em Vassouras. Também o que esperar de um sujeito que chega vestido de Pierot para uma festa a fantasia com uma semana de antecedência e entra na igreja pra ser padrinho de casamento com uma bolsa de lixo na mão? Porém uma coincidência ajudou a manter a confusão, nas duas cidades havia fazendas com o nome de Santa Helena e ambos os donos, que eram primos, chamavam-se Eduardo Bueno.

Naquela mesma tarde a vaca morreu e quem a encontrou foi o caseiro, que chegou muito espantado dizendo que algum bicho havia comido o rabo da vaca. Brás cinicamente perguntou:

_Será que não foi um lobisomem? E o pobre homem ficou pensativo e depois de algum tempo falou:

_ É possível, meu filho, é possível.

Ajudamos no enterro e partimos a pé naquela mesma tarde, cabisbaixos, curvados sob nossas mochilas e nossas culpas, certamente, todos pensando “na morte da bezerra”, que era a única companhia daquele senhor, e que atendia pelo nome de Esperança.

Ernani Maller
Enviado por Ernani Maller em 11/03/2010
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